O teatro épico de Brecht e suas lições revolucionárias
Bertolt Brecht e Walter Benjamin em Svendborg, Dinamarca (1934).
Por Walter Benjamin
[…] Um autor que não ensina nada aos que escrevem não ensina nada a ninguém. Dessa maneira, o caráter de modelo da produção é decisivo: primeiro, deve-se orientar os outros produtores na produção e, em segundo lugar, disponibilizar-lhes um aparelho melhorado. E esse aparelho é tanto melhor quanto mais consumidores levar de volta à produção; ou seja, quanto mais for capaz de transformar leitores ou espectadores em colaboradores. Já dispomos de um modelo desse tipo, mas ao qual aqui só posso fazer alusões. Trata-se do teatro épico de Brecht.
Vez ou outra, são escritas tragédias e óperas às quais aparentemente se disponibiliza um aparato cênico já bastante garantido, mas na realidade elas são abastecidas por um aparado obsoleto. “Essa falta de clareza reinante entre músicos, autores e críticos sobre sua situação”, diz Brecht, tem extraordinárias consequências pouco levadas em consideração. Ao acreditar que estão de posse de um aparelho que, na realidade, os possui, eles defendem um aparelho sobre o qual não têm mais controle, que não é mais — como ainda acreditam — um meio para os produtores, mas que se tornou meio contra os produtores.
O teatro das engrenagens complicadas, do enorme engajamento de figurantes e dos efeitos refinados tornou-se um meio contra os produtores não apenas porque procura recrutar os produtores para a concorrência desesperançada na qual o cinema e o rádio os meteram. Esse teatro — independentemente de pensarmos naquele de formação ou naquele de lazer, pois ambos são complementares – é o de um estrato saturado; tudo o que cai em suas mãos se torna estimulante. O lugar que ocupa é um lugar perdido. Não é esse o caso de um teatro que, em vez de concorrer com os novos instrumentos de publicação, procura aplicá-los e aprender com eles, ou seja, confrontá-los. O teatro épico tomou esse confronto como causa. Comparando-o com o estágio atual do desenvolvimento do cinema e do rádio, é o mais contemporâneo.
No interesse daquele confronto, Brecht se voltou aos elementos mais primordiais do teatro. De certa maneira, ele se contentou com um pódio. Abriu mão de ações espaçosas. Assim, foi possível modificar a relação funcional entre palco e público, texto e encenação, diretor e atores. O teatro épico, ele explicou, tem menos de desenvolver ações do que apresentar situações. Ele obtém tais situações, como veremos a seguir, ao interromper as ações. Recordo-lhes aqui as canções, que têm como função principal a interrupção da ação. Nesse momento, fica claro que o teatro épico – ou seja, que aplica o princípio da interrupção — adota um procedimento que lhes é conhecido nos últimos anos de cinema e rádio, imprensa e fotografia. Refiro-me ao procedimento da montagem: a montagem interrompe o contexto no qual está inserida. Permitam-me justificar brevemente por que esse procedimento tem aqui sua legitimidade total.
A interrupção da ação, motivo pelo qual Brecht designou seu teatro como épico, confronta constantemente a ilusão do público. É que tal ilusão é inadequada para um teatro que pretende examinar os elementos da realidade no sentido de uma ordenação experimental. Mas as situações estão no final dessa experiência, não no começo. Situações essas que, de uma maneira ou de outra, sempre são as nossas. Elas não são aproximadas do público, elas se distanciam dele. Com espanto, o público as reconhece como as verdadeiras situações – e não como no teatro do naturalismo, com presunção. O teatro épico não reproduz as situações; antes, as descobre. A descoberta das situações acontece por meio da interrupção do curso dos acontecimentos. Entretanto, a interrupção aqui não tem um caráter de excitação, mas uma função organizativa. Ela congela a ação que se desenrola, obrigando o espectador a tomar posição em relação à ação e ao ator, em relação a seu papel. Quero lhes mostrar, com um exemplo, como a descoberta e a figuração do gestual de Brecht são uma reconversão dos métodos de montagem (decisivos no cinema e no rádio), passando de mero procedimento que muitas vezes está em voga para um acontecimento humano. Imaginem a seguinte cena de família: a mulher está em vias de pegar uma estatueta de bronze para lançá-la contra a filha; o pai, prestes a abrir a janela para pedir ajuda. Nesse momento, um estranho entra. A ação é interrompida; o que surge em seu lugar é a situação sobre a qual o olhar do estranho recai: expressões alteradas, janela aberta, móveis danificados. Mas há um olhar diante do qual nem mesmo as cenas mais convencionais são tão diferentes. Trata-se do olhar do dramaturgo épico.
Ele opõe a obra de arte total ao laboratório dramático. Ele retrocede, de uma nova maneira, à antiga grande chance do teatro — à exposição do que é presente. O ser humano está no centro de suas experiências. O homem de hoje; ou seja, um homem reduzido, resfriado num ambiente frio. Mas como esse é o único que está à disposição, temos interesse em conhecê-lo. Ele passará por provas, avaliações. O resultado é o seguinte: o acontecimento não pode ser alterado em seus pontos altos, não por meio da virtude e decisão, mas simplesmente em seu transcurso rigidamente habitual, por meio da razão e do exercício. O sentido do teatro épico é construir a partir dos menores elementos dos modos de comportamento aquilo que na dramaturgia aristotélica é chamado de “agir”. Por essa razão, seus meios são mais modestos que os do teatro tradicional — seus objetivos também. Seu objetivo é menos preencher o público com sentimentos, ainda que de revolta, do que fazer com que esse público sinta um estranhamento duradouro em relação às condições em que vive. Observemos, ainda que de modo casual, que para o pensar não há melhor começo que o rir. E uma agitação do diafragma geralmente oferece melhores condições ao pensamento do que a agitação da alma. O teatro épico é copioso apenas em motivos para rir. Talvez vocês tenham notado que os processos de pensamento — de cujas conclusões nos aproximamos — apresentam ao autor apenas uma exigência, a exigência de refletir, de meditar sobre seu lugar no processo de produção. Podemos nos fiar nisto: essa reflexão faz com que os autores que importam — quer dizer, os melhores técnicos de sua especialidade — cheguem, cedo ou tarde, a conclusões que justificam da maneira mais sóbria sua solidariedade com o proletariado.
* Este é um trecho de “O autor como produtor”, publicado integralmente junto a outros textos de Walter Benjamin sobre o dramaturgo no livro Ensaios sobre Brecht.
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Ensaios sobre Brecht, de Walter Benjamin
Um diálogo extremamente atual entre duas grandes mentes do século XX. Uma coletânea única de ensaios sobre a obra dramática e poética de Bertolt Brecht. O filósofo conceitua o teatro épico, discute Marx e sátira, e revela trechos de sua intensa correspondência com Brecht exilado na Dinamarca.
Versos de bichos, de Bertolt Brecht, com ilustrações de Marcelo Tolentino
Bertolt Brecht foi um dos mais importantes escritores alemães do século XX. Escreveu drama, poesia, prosa, ensaios, roteiros cinematográficos e trabalhou como diretor de teatro. Mas não só. O autor escreveu alguns poemas infantis ao longo da vida, como brincadeira ou homenagem aos filhos e amigos. Versos de bichos, que chega pela Boitatá ilustrado pelo artista Marcelo Tolentino, foi escrito para o filho Stefan em 1934.
Cada estrofe traz uma fábula sobre um bicho diferente. Por meio da ironia e do humor, Brecht transmite às crianças sua crítica ao militarismo, às religiões, à opressão, à exploração do homem pelo homem, faz um elogio da liberdade e então nos diverte com jogos de palavras nonsense. As ilustrações de Tolentino instigam, de maneira sutil e sensível, a refletir sobre o que há em comum entre os bichos e os homens. Traduzido para o português por Maria Gutierrez, Versos de bichos é uma belíssima obra tanto para os pequenos quanto para os adultos.
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