Matar a charada da reificação contemporânea

Imagem: fernando zhiminaicela (Pixabay)

Por Silvia Viana

Ao se afastar uma braça daquele muito que aflui das telas, Anna Kornbluh percebe que nossa cultura ainda confere a tudo um ar de semelhança. E assim ela a apresenta: uma torrente interminável de eus automanifestados em cada partícula de acontecimento de suas rotinas, em cada poro de seu corpo, a cada descompasso do coração ou espasmo no fígado, com uma ou outra pitada dalguma convicção que a eles ocorra num momento qualquer a respeito de tanto faz.

Não sem razão, mas com a razão dos paranoicos, o gato escaldado decidiu se livrar de tudo aquilo que percebe como índice de logro. A representação nas artes ou o conceito na teoria deslocam a voz singular, genuína. O personagem devo ser eu; o conteúdo, minha experiência; o resultado: enfim, a realidade! Daí o estilo da imediatez se afigurar como instantaneidade, presença e ultrassaturação.

Apesar de todo esse furor a coisa toda resulta frígida. Senão, vejamos: sejam os laureados pelas instituições culturais, sejam aqueles que permanecem no aguardo ansioso por um punhado de likes, todos iniciam seus textos apresentando um crachá com os seguintes dados: nome, profissão, cor da pele, sexo, gênero, classe social, sofrimento passado e/ou privilégio presente ou vice-versa. Depois dos prolegômenos, o autodeclarado “textão” acaba, que era só isso mesmo. Só isso: um acúmulo sem fim do que há em mim. O outro nome disso é capital humano.

Kornbluh mata a charada da nova reificação que brota do solo que a quer expurgar. O problema da paixão pelo real é que, de fato, não faz mais que reiterar o que já está posto. A proximidade que a imediatez ostenta orgulhosa são os rostos espremidos uns contra os outros na estação da Luz. Esta constatação não é exatamente uma descoberta, como demonstram alguns dos artistas e intelectuais aqui citados ao exibirem, combinados, seus orifícios e cálculos.

O que Kornbluh nos relembra, à luz do bom e velho materialismo histórico, é que a tautologia do estilo que se imagina sem estilo, ao contrário da ficção que ele busca aniquilar, mente. Mente a mesma mentira que o termo “feminicídio”. Pois nenhuma mulher é assassinada “só por ser mulher”. Elas morrem em fuga. Ao recusarem a apresentação do crachá já não são quem são, não mais “só isto”. É a dilatação do não estar mais aqui e assim já não ser só que a mediação possibilita, um pouco de oxigênio. O fato de não vir sem risco demonstra ser mais real que a realidade.

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Silvia Viana é professora de Sociologia na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutora pela USP. Pela Boitempo, publicou Rituais de sofrimento (2013).


O que a autobiografia de Michelle Obama, a onda de exposições artísticas imersivas e a série Fleabag têm em comum com a catástrofe climática, o sucateamento das universidades e a uberização do trabalho? Imediatez parte do gesto audacioso — e fora de moda — de propor uma chave mestra para diagnosticar o capitalismo contemporâneo

Seja você mesmo, sem filtro, fale a real, conte sua própria história, sem artifícios ficcionais ou estéticos, promova uma conexão direta, sem média nem mediação… Anna Kornbluh identifica que os valores que marcam a paisagem cultural hegemônica do nosso tempo não apenas são enganosos — um estilo caracterizado por uma pretensa “ausência de estilo” —, como são imperativos decalcados da nova fase que o capitalismo ingressou nas últimas décadas.  

Atualizando o diagnóstico de Fredric Jameson que marcou época, Imediatez: ou o estilo do capitalismo tardio demais indaga o que vem depois do pós-modernismo e formula uma resposta à altura. Em um momento no qual as urgências econômicas, ecológicas e sociais do presente transformaram em um luxo supérfluo a opacidade das obras de arte, desvios literários e reflexão demorada, este livro aposta no poder de revelação da crítica cultural dialética para reabilitar o espaço da política no século XXI.  

Kornbluh se debruça sobre a forma e o conteúdo dos filmes e séries mais comentados do streaming, os queridinhos de crítica e público da literatura de autoficção, as tendências do mundo da arte e até as modas acadêmicas para explicar o que está por trás da atual intolerância à mediação e à representação. Mas não só, aponta também alternativas presentes nos produtos culturais e teóricos mais desafiadores que priorizam a distância, a impessoalidade e as grandes ideias: “A recusa ética e política ao ‘capitalismo de imediatez’ aparece como fissura no tecido discursivo da catástrofe e do colapso que tenta nos impedir de ver que, embora pareça ‘tarde demais’, o tempo de agir é sempre o nosso tempo de vida”, escreve Rita von Hunty no prefácio. 

“Kornbluh mata a charada da nova reificação”
— Silvia Viana, autora de Rituais de sofrimento

“Brilhantemente escrita, esta montanha-russa em forma de livro é uma intervenção combativa urgente.”
— Jonathan Crary

“Uma revitalização primorosa da crítica para uma época chafurdada no dilúvio da autoapresentação. Ao priorizar estrutura sobre estilo, representação sobre personalização e coletividade sobre narcisismo, Kornbluh cria um espaço para o pensamento — o espaço necessário para a política.
— Jodi Dean, autora de Camarada e Multidões e partidos

“O título o posiciona como sucessor da obra de Fredric Jameson que definiu toda uma era. Mas não é presunção se você bancar — e Imediatez está à altura da comparação.”
— ArtReview


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