O olhar literário do operariado: a obra de Roniwalter Jatobá

"Para além de uma literatura que descreve, em posição passiva ou contemplativa, a realidade, trata-se de uma literatura que consegue trazer as armas da crítica ao processo histórico"

“A pedra é uma arma para o proletariado”, escultura de Ivan Shadr (1927). Imagem: Wikimedia Commons

Por Luiz Fernando Pereira de Oliveira

Era 2019, eu estava atordoado em minha casa, sozinho e solitário, e avistei um livro que havia comprado. O título: Crônicas da vida operária, de Roniwalter Jatobá. Com a ajuda do magistral prefácio de Fernando Morais, eu mergulhei no universo de sua obra e me encaminhei por sua visão bela, esperançosa, mas também sofrida, como os trabalhadores de seus contos. Se naquele momento o Brasil vivia uma espécie de discussão em torno de um período cruel e violento como a ditadura militar — ou mesmo, para alguns, sua negação completa —, a leitura de Jatobá me defrontava com os horrores e a violência intensa provocada pelos militares e a burguesia nacional e internacional. Por um olhar sofrido, vemos os trabalhadores tentando a sorte em meio ao desconhecido.  

Isso não é ao acaso. Segundo Adalberto Cardoso, em seu livro A construção da sociedade do trabalho no Brasil, trabalhar nos grandes centros urbanos era um desejo comum, dadas as condições de assalariamento e o imaginário de ascensão social e acesso à infraestrutura necessária para a constituição do indivíduo. Assim, o trabalhador passa a fazer do seu trabalho o sonho, o desejo e a realização — tudo o que perpassa a literatura do escritor ao longo de suas obras em que mais se destaca o proletariado. Como diria Jatobá, ele escreve sobre aquilo que é, e essa foi a forma de representar na escrita o seu próprio cotidiano como trabalhador em São Paulo. Foi como trabalhador e, no mais, como ser humano sensível, que escreveu aquilo que se constitui como literatura proletária urbana no Brasil. 

Em sua obra, o proletário, além de relatar, reage às condições e contradições capitalistas. Parafraseando Paulo Arantes em Sentimento da dialética, há um sentimento dialético na construção de nossa literatura e que compõe o nosso horizonte. Essa tese em vigor nos permite pensar sobre a figuração ficcional do trabalhador que se depara com as condições escassas de sobrevivência. Embora as relações de desumanização social estejam presentes desde os primeiros momentos na literatura brasileira — algo já apontado por vários teóricos, como Antonio Candido em Formação da literatura brasileira e Alfredo Bosi em História concisa da literatura brasileira, para citar somente alguns —, as obras que discutem as vidas de trabalhadores, em sua maioria, abarcam as condições do meio rural. Em boa parte delas, o trabalhador se desumaniza, pois as condições sociais e econômicas a serem enfrentadas reagem e se inserem, elas próprias, também como personagens que atuam de forma intensa sobre ele. No que se concebe como o romance regionalista ou seus pontapés anteriores, há uma ordem de aceitação e naturalização das condições que formam esse trabalhador, devendo ele se sujeitar à sua dinâmica. Essa relação, provocada por inúmeros fatores, é uma forma de apresentar a resiliência e a capacidade de sobrevivência da personagem. O confronto não é aceito, somente a saída da terra ou a procura pela amenização das condições provocadas por fatores externos. Sendo assim, estabelece-se a produção e a sedimentação de relações nas quais o seu trabalho seja necessário. A mínima consciência de luta e confronto estabelece uma relação de perda do medo e acréscimo da coragem. Essa rebeldia é punida por meio de prisões, ameaças, coerções e até a morte. Logo, a condição do migrante em determinado momento de nossa literatura era a busca de redenção pelo existir ou a procura da migração para a sobrevivência. 

Tendo isso em vista, a literatura produzida por Roniwalter Jatobá se torna pioneira e relevante. As personagens, agora, estão migrando para o grande centro urbano e industrial brasileiro. Há um outro contexto caracterizado por uma maior ampliação das relações de trabalho por leis trabalhistas, uma dinâmica industrial e condições de sobrevivência. Nesse caso, o trabalhador não procura a grande porção de água, mas encara a hostilidade da cidade, a oferta de trabalho e seu descarte no processo.  

O autor, assim, consegue captar as mudanças que vinham ocorrendo no país e cuja força estava no proletário à procura da sonhada carteira de trabalho e melhores pagamentos. Um proletariado que, todavia, compreende que o Eldorado brasileiro estava mais para miragem do que para um oásis em meio ao deserto, pois a cidade era mais cara para sobreviver e possuía uma intensa desigualdade social. Se antes o medo era não encontrar água para prosseguir a existência de sua vida, agora o medo retratado é o do desemprego. A falta de dinheiro gera a escassez e pode levar à inexistência ou mesmo à morte. O dinheiro já fora retratado na nossa literatura por parte de alguns livros, porém em nenhum deles o trabalhador em questão é um proletário. O dinheiro é o mote principal das relações nas histórias, mas não relação que estas personagens têm para com o seu trabalho. 

Nesse aspecto, iremos nos pautar no conhecimento da forma e do conteúdo. Parafraseando Leandro Konder em Os marxistas e a arte, a forma e o conteúdo são necessários para a literatura, pois é a partir da relação intrínseca que estabelecem que podemos realizar a análise, conceber rupturas e caracterizar certas colocações acerca do processo estético. Nisto, ao apresentar o trabalhador urbano e seu cotidiano, o autor introduz, de fato, uma literatura proletária. O operário passa a figura central dos dilemas das constantes aflições que cercam a narrativa desenvolvida. O rompimento no conteúdo apresentado permite ao leitor vislumbrar e se aventurar no contexto em que se inserem suas obras, experimentar as contradições enfrentadas pelos trabalhadores e a dificuldade com que se adequavam à dinâmica da cidade. Alinhado a isso, impõe-se o medo do desemprego, o salário e as condições de sobrevivência e de salubridade à época. 

O modo de produção capitalista se sedimenta e se impõe como a única maneira possível para que o trabalhador consiga sobreviver e existir na cidade. Aqueles que não se encontram aptos ao trabalho são descartados do processo e passam a conviver com a miséria ou os bicos para manutenção da vida na cidade. Com isso, os trabalhadores, migrantes ou residentes, ainda se apegam à ideologia propagada de que as condições, quando atingidas, garantem o sustento e até permitem pensar em algo além, como mandar dinheiro para familiares ou mesmo constituir uma família. Aqui, o sonho em sua literatura é apenas um desejo que, ao ser confrontado com a realidade, torna-se um suspiro que pouquíssimos irão realizar, um breve suspiro em meio ao fim. 

Ao olhar para o presente, a sociedade brasileira e o proletariado passaram por inúmeras modificações no tange ao Brasil. A sociedade brasileira saiu da ditadura e passou a conviver com a democracia representativa, houve uma nova Constituição, além de ciclos e crises econômicas e sociais caracterizadas pela fragmentação dos trabalhadores e a redução na crítica ao capitalismo — o que faz com que, hoje, o sentimento seja de desolação e pouca resolução do cenário. Nesse contexto, o trabalhador continua a ser impedido de se realizar e de se reconhecer naquilo que realiza. 

Nisto, a obra de Jatobá dialoga com questões universais à classe operária. Portanto, uma consolidação do modo de produção capitalista e sua hegemonia junto à inserção de empresas e corporações que utilizam de sua força e repressão para com os trabalhadores. Assim sendo, a obra produzida por Roniwalter Jatobá é um termômetro de um momento tão intenso e pouco abordado pela ótica da literatura no país, cuja pesquisa é tão escassa que somente recentemente a fortuna crítica tem de desdobrado para reconhecer e estudar um autor tão único e singular. 

Ao transpor a obra em análise para o presente, verificamos as constantes ameaças da burguesia, como percebido pelo sociólogo Nildo Viana, que cunha a noção de regime de acumulação integral e aponta o neoliberalismo como essa extensão que não permite uma exploração singular ou específica, inserindo os trabalhadores numa constante exploração de seu tempo e sua força de trabalho. Logo, para além de uma literatura que descreve, em posição passiva ou contemplativa, a realidade, trata-se de uma literatura que consegue trazer as armas da crítica ao processo histórico. Nisto, a literatura de Roniwalter Jatobá é essencial e única no que tange o olhar do trabalhador para sua formação, constituição, sem o subestimar ou mesmo torná-lo um ser abjeto.

Referências:

ARANTES, Paulo. Sentimento da dialética. São Paulo: Paz & Terra, 1992.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos 1750-1880. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.

CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: Uma investigação sobre a
persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: FGV, 2019.

KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MORAIS, Fernando. Operários no Prêmio das Américas, em Cuba. In: JATOBÁ, Roniwalter. No chão da
fábrica
: contos e novelas. São Paulo: Nova Alexandria, 2016. p. 246-248.

RUFFATO Luiz. Roniwalter Jatobá e a literatura proletária. In: JATOBÁ, Roniwalter. Contos
antológicos de Roniwalter Jatobá
. São Paulo: Nova Alexandria, 2009, p. 13-17.

VIANA, Nildo. Capitalismo na era da acumulação integral. São Paulo: Ideias & Letras, 2009.

***
Luiz Fernando Pereira de Oliveira é graduado em Letras pela Universidade Federal de Goiás e mestre em Sociologia pela mesma instituição, defendendo a dissertação Roniwalter Jatobá e a rememoração da vida operária (2023).


Crônicas da vida operária, de Roniwalter Jatobá
Pioneiro ao mover para o centro da literatura o operário, Roniwalter Jatobá traz em Crônicas da vida operária uma série de textos que reconstrói o universo dos trabalhadores fabris dos anos 1970. Com sensibilidade e rigor textual, o autor explora o intenso fluxo migratório do período, quando milhares de pessoas foram empurradas de seus locais de origem para servir de mão de obra barata para o “milagre econômico brasileiro”.


Paragens, de Roniwalter Jatobá
Migração é a experiência que une os três textos e revela as mazelas de um país marcado por mudanças violentas: do tráfico negreiro às peregrinações cotidianas nas grandes cidades, chegando ao êxodo rural do Norte e Nordeste rumo ao Sul do país. O operário migrante, homens e mulheres comuns que enfrentam as agruras do dia a dia, é o tema central do trabalho de Roniwalter. Este livro reúne três novelas: “Pássaro Selvagem” conta a história de um menino que se muda para a cidade grande, saindo de uma povoação impactada pela construção da rodovia Rio-Bahia. “Paragens”, que dá título ao volume, evoca o mergulho em si mesmo de um personagem que, depois de várias migrações, percorre as ruas inundadas de São Paulo e as estações de trem, até seu destino, que é nenhum. Sua última frase é: “Sigo calado, molhado, bestando”. Já em “Tiziu”, Agostinho Xavier conta sua jornada. Após perder a mão em um acidente de trabalho, se vê solitário na cidade grande. Desesperado pela falta de auxílio que não chega, deixa-se tomar por um arroubo de violência.


Sabor de química, de Roniwalter Jatobá
O campo e a cidade são os polos que se encontram neste livro de estreia de Roniwalter Jatobá. Escrito no fervor da ditadura civil-militar, a obra carrega a característica central que irá marcar todos os demais trabalhos do autor, o de trazer para o centro aqueles que sempre ficaram às margens. Os despossuídos, desenraizados, as ruas de terra com moradias precárias, a falta de saneamento básico, os salários que não chegam ao fim do mês, os transportes públicos lotados e insuficientes e as humilhações corriqueiras aparecem aqui como protagonista de uma literatura que incomoda e chacoalha o leitor.


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1 comentário em O olhar literário do operariado: a obra de Roniwalter Jatobá

  1. Avatar de Desconhecido Andiara Carvalho // 27/06/2025 às 12:32 pm // Responder

    Parabens pelo excelente trabalho…

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