50 anos do massacre contra o PCB: por memória, justiça e reparação
Missa em homenagem a Vladimir Herzog, que reuniu 8 mil pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, no dia 31 de outubro de 1975. Foto: WikiCommons.
Por Milton Pinheiro
A história do golpe burgo-militar1 de 1964 é fartamente comprovada por, entre outros, três objetivos básicos: atacar os interesses da classe trabalhadora, destruir a crescente organização popular e destruir o principal operador político2 dos comunistas brasileiros, o PCB, que era a força hegemônica na esquerda daquela quadra histórica. Embora as marchas e contramarchas que constituíram as balizas do cenário ampliado do golpe desvelassem um conjunto importante de problemas na análise da realidade concreta por parte dos comunistas brasileiros, a reação inicial do partido foi organizada para operar na perspectiva de aglutinação de forças democráticas e nacional que, em princípio, estariam insatisfeitas com a ruptura na legalidade da democracia formal e a ordem institucional em vigor.
Os comunistas até esboçaram um movimento interno para construir uma reação armada ao golpe, todavia essa tímida iniciativa esbarrou na incapacidade de previsibilidade do cenário do golpe e na queda de setores das Forças Armadas onde seriam razoáveis essa possibilidade de reação, a exemplo dos postos sob a direção dos Comandantes Teixeira e Aragão.
Encerrada qualquer possiblidade dessa reação armada, e mesmo com um período em que a direção afundou na clandestinidade, o retorno ao contra-ataque organizado pelo Comitê Central do PCB foi majoritariamente centrado na articulação política de uma Frente Democrática e Nacional que aglutinasse um conjunto expressivo de setores da burguesia legalista, militares de alta patente que seriam contra a quebra na estrutura da hierarquia militar, forças proletárias e populares, camponeses, parlamentares contrários ao golpe, militares de baixa patente rebelados em revoltas recentes e a forte juventude estudantil.
O arcabouço dessa Frente política de contenção do golpe foi, paulatinamente, sendo esvaziada pela crescente ação de coerção dos golpistas estabelecidos no poder. Prisões, violência política, assassinatos já no primeiro momento do golpe armado, cassações e atos discricionários compuseram o arcabouço que fortaleceu os golpistas, além, evidentemente, das manifestações de apoio na sociedade, imprensa e de figuras proeminentes do exercício da política.
A tática do PCB foi apartando-se da estratégia e o debate no ambiente interno procurava centrar-se nas causas do golpe. Esse roteiro político foi super aquecido em virtude da convocação do VI Congresso do partido. A ruptura orgânica foi inevitável e o partido foi fracionado por diversos grupos que saíram do PCB para construir organizações que iriam para o confronto armado contra a ditadura instaurada no país. É importante registrar que no debate interno, entre aqueles que ficaram no PCB, chegou-se a analisar a possibilidade de enfrentamento armado ao regime militar, mas essa posição não foi em frente.
O PCB procurou operar sua tática política no sentido da construção da Frente Democrática, apesar dos espaços fechados, das prisões e dos assassinatos de militantes que ocorreram já no mês de abril de 1964 (Ivan Rocha Aguiar e Antogildo Pascoal Viana), o elemento central da organização da política dos comunistas brasileiros era a resistência democrática. Essa chave para ação começou a gerar avanços políticos no início dos anos 1970, quando a luta armada desenvolvida pelas organizações da guerrilha urbana e algumas da guerrilha rural foram paulatinamente derrotadas.
A partir das eleições de 1972 e 1974, ano em que a oposição obteve uma grande vitória, as forças do aparato policial-militar da ditadura passaram a se movimentar tendo como eixo central o combate ao PCB, tido como o inimigo número 1 (Coronel Paulo Manhães). Com a finalidade de destroçar o PCB, foi organizada a “Operação Radar”, em 1973, que funcionou até 1976 e que tinha variadas denominações em outros estados da federação, a exemplo de “Barriga Verde”, em Santa Catarina, e “Cajueiro”, em Sergipe.
A política de cerco e aniquilação levada à frente pelos órgãos da repressão policial-militar que agiam de forma letal através dos agentes que compunham os “Porões” da ditadura, ordenados pelo aparato político-militar do regime, com total autorização inicialmente do general Médici e posteriormente, de forma mais brutal ainda, com a anuência e consentimento do general Geisel, teve um papel comprovadamente assassino no sentido de eliminar os quadros referenciais do PCB, principalmente em 1975.
A lógica do cerco e aniquilação contra o PCB teve seu momento mais violento durante o ano de 1975. Foram centenas de prisões, centenas de processos, muitos comunistas fugiram para o exílio como forma de proteger suas vidas. No entanto, o terror do Estado policial atingiu de forma covarde e assassina 12 membros do partido. Heroicos militantes das mais diversas lutas do povo brasileiro.
No auge desse terror, a “Operação Radar”, em 1975, ou seja, há 50 anos, matou seis membros do Comitê Central do partido, outros militantes de importância seminal para a ação do PCB e o encarregado do trabalho entre a juventude. Isso era o contragolpe da ditadura diante da vitória política do partido nas eleições de 1974, quando o PCB elegeu 22 deputados federais e dezenas de deputados estaduais e a oposição teve uma vitória que poderia ser determinante para a mudança no quadro institucional. Nesse cenário político, o governo da ditadura ameaçou suspender as eleições municipais de 1976, porém a repercussão política e social impediu mais esse golpe.
Na lógica do cerco e aniquilação contra o PCB, que marcou o trágico ano de 1975, foram assassinados, no dia 15 de janeiro, o caminhoneiro Elson Costa e o administrador público, Hiran de Lima Pereira, ambos membros do Comitê Central. No dia 4 de fevereiro, foi morto o advogado e jornalista Jayme Miranda, membro destacado do CC do partido. Em abril (?) foi preso e assassinado o líder camponês, Nestor Vera, também membro do Comitê Central. Em 25 de maio, foi preso e assassinado o operário e líder dos trabalhadores da construção civil, Itair José Veloso, integrante do Comitê Central. No dia 7 de agosto, foi assassinado o militante e operário gráfico, Alberto Aleixo. No dia 8 de agosto, foi assassinado, sob forte tortura, o militante e Tenente da PM/SP, José Ferreira de Almeida. Ainda no mês de agosto, no dia 18, foi morto sob tortura o militante e Coronel da PM/SP, Maximino de Andrade Netto. Em 17 de setembro, foi assassinado o militante e comerciário, Pedro Jerônimo de Souza. A matança continuou no mês de setembro, quando no dia 29 foi morto o líder estudantil José Montenegro de Lima. Em 8 de outubro foi assassinado o jornalista e advogado Orlando Bonfim Júnior, ex-vereador de Belo Horizonte e membro do Comitê Central. Fechando o massacre de 1975, no dia 25 de outubro, o militante e jornalista Vladimir Herzog foi assassinado.
Do dia 1º de abril de 1964 até o dia 24 de setembro de 1979, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) teve um conjunto de 43 membros assassinados. Só no ano de 1975 foram 12 dirigentes e militantes. O PCB sofreu dezenas de processos, teve milhares de militantes processados, presos, torturados, exilados ou mortos. Mesmo usando a tática política da luta através da resistência democrática, do trabalho entre as massas e da articulação de forças democráticas e nacionais para derrotar a ditadura, o partido foi considerado o inimigo número 1 do Estado policial e terrorista que se estabeleceu em 1964 e permaneceu até 1985.
Nessa efeméride dos 50 anos, quando em 1975 a ditadura operou uma covarde ação de cerco e aniquilação contra o PCB, se faz necessário que a recente recriada Comissão da Anistia institua um processo pela memória, justiça e reparação ao PCB. A estrutura histórica do partido, para além do martírio de sua militância e direção, sofreu um ataque sem trégua que colocou em risco a sua existência e o que representa o partido enquanto patrimônio histórico, político e cultural na vida social e na história política brasileira.
A tática política do PCB contribuiu de forma expressiva para derrotar o arbítrio e colocar fim ao regime burgo-militar em 1985. A partir desse ano, o partido voltou a legalidade jurídica e política, mesmo com os tradicionais impedimentos que a lógica da política burguesa opera contra os comunistas na longeva história brasileira, afinal são 103 anos da mais odiosa perseguição.
Essa ação por Memória, Justiça e Reparação deve ser levada aos órgãos competentes do governo federal em caráter de urgência, afinal a memória e a história brasileiras precisam ser preservadas e o PCB deve ter justiça e reparação.
Notas
- O golpe de Estado de 1964 caracteriza-se pela ação articulada de diversas frações da burguesia interna, organizadas por suas representações em entidades como a FIESP e congêneres, com a ativa participação também de entidades representativas dos latifundiários. Essa classe social (burguesia) detinha o controle de blocos de parlamentares para se fazer representar no parlamento e nos partidos da ordem a partir do perfil das diferenciadas frações burguesas. Essas forças da ordem consolidaram no pré 1964 importante ação político-ideológica que foi desenvolvida por aparatos ideológicos, a exemplo do IPES, IBAD, ESG, segmentos reacionários da Igreja Católica e mídia corporativa, em consonância com a liderança dos militares na logística da intervenção. O pacto burguês, com total apoio do imperialismo estadunidense, foi operado e dirigido pelos militares enquanto burocracia de Estado, agindo acima das classes como instituição de forma bonapartista para preservar os interesses burgueses. Esses militares se orientavam pela ideologia da segurança nacional, cuja centralidade era o extermínio do inimigo interno e a subordinação ao imperialismo. Essa burocracia de Estado (militares), intervindo de forma bonapartista enquanto instituição, autonomizou-se politicamente durante o processo golpista para comandar e gerenciar (a partir de um perfil tecnocrata) o Estado capitalista em seus diversos governos de 1964 até 1985. Construindo, a partir daí, uma forte intervenção na dinâmica social para controlar e tutelar as relações sociais e políticas. Portanto, esse processo político de ruptura institucional e os governos de exceção que duraram 21 anos se configuraram como um golpe e uma ditadura burgo-militar (Pinheiro, 2024). ↩︎
- Categoria explicativa que utilizo em minhas pesquisas, a partir de 2009, para entender e qualificar o sujeito coletivo revolucionário, dotado de projeto universal, que age a partir da representação política da classe trabalhadora para operar, enquanto agente estratégico, o processo revolucionário de conquista do poder. ↩︎
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Milton Pinheiro é cientista político, professor titular de história política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e militante do PCB. É autor/organizador de diversos livros, entre eles, Partido Comunista Brasileiro: 100 anos de história e lutas (Lutas Anticapital, 2023) e Ditadura: o que resta da transição (Boitempo, 2014).
PARA SE APROFUNDAR NO TEMA

Ditadura: o que resta da transição, organização de Milton Pinheiro
Coletânea sobre o golpe militar no Brasil reinterpreta os diversos aspectos da ditadura e sua transição. Renomados autores abordam temas como economia, lutas sociais e a campanha pelas Diretas Já, destacando a dimensão de classe do regime e revelando a complexidade desse período na história do país.




Sinfonia inacabada, de Antonio Carlos Mazzeo
Análise apaixonada e crítica do PCB e da esquerda no Brasil, traça a história destacando erros e acertos, e examina a luta por um futuro melhor, tudo no contexto dos 100 anos de fundação do PCB. Um olhar essencial sobre a esquerda no Brasil.
Formação do PCB, de Astrojildo Pereira
Conjunto de textos sobre a formação do PCB, escritos por um de seus principais protagonistas. Com base em documentos pessoais e memórias, o autor oferece insights valiosos sobre as lutas operárias e a transformação do movimento comunista brasileiro.
Memórias, de Gregório Bezerra
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Viver é tomar partido, de Anita Leocadia Prestes
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