A Argentina e os dilemas da esquerda

Tomara que a esquerda argentina, a verdadeira, aquela que quer ir à raiz estrutural dos problemas que afligem sua sociedade, acorde desse golpe e se reorganize!

Foto: Luis Robayo/AFP

Por Carlos Rivera Lugo

Confesso que mais do que tristeza, sinto muita raiva por esse desfecho que, como bem alertado, já se suspeitava ser uma possibilidade real. Enquanto a esquerda – agora renomeada hoje, a partir de seu notório possibilismo, como progressista – se contenta em representar essencialmente mais do mesmo, abandonando a crença na necessidade e possibilidade de revolucionar o existente, a ultradireita ocupará, como neste caso, o espaço da mudança. Milei ofereceu “o novo”, uma rebelião contra o existente que se reduz mais a um retorno ao liberalismo e ao privatismo selvagem, embora na realidade seja apenas para que nada mude no fundo. Em qualquer caso, tudo piorará.

Tomara que a esquerda argentina, a verdadeira, aquela que quer ir à raiz estrutural dos problemas que afligem sua sociedade, acorde desse golpe e se reorganize! Já discutimos sobre isso: a esquerda precisa repensar além da política eleitoral e da idealização de uma democracia liberal feita para facilitar esse tipo de alternância que busca sustentar a dominação. Não nos enganemos: para isso, o capital criou a democracia liberal, da qual tanto se fala, mas tão pouco se compreende. Seu horizonte é limitado ou, pior, é um pântano que acaba cooptando nossas lutas para que não avancem mais. Era triste ver como a esquerda argentina teve que reduzir imediatamente suas aspirações para apoiar um candidato, o peronista conservador Sergio Massa, que prometia seguir pelo mesmo caminho tumultuado que levou o atual presidente Alberto Fernández ao fracasso.

Prevalece um maldito fetichismo da democracia liberal e sua forma jurídica, o chamado Estado de direito, e esquece-se que sob essas estruturas se persegue e prende arbitrariamente aqueles que são confundidos com suas canções de sereia. É a mesma democracia e o mesmo Estado de direito sob os quais Cristina Fernández foi criminalizada, anulando-a como opção eleitoral. Algo semelhante aconteceu no Brasil quando criminalizaram arbitrariamente Lula para facilitar a eleição de Bolsonaro.

O que é chamado de esquerda hoje deu as costas à contradição capital-trabalho e à luta de classes para abraçar a ilusão da conciliação. A contradição foi reduzida a mera diferença e o inimigo foi redefinido como mera oposição.

Confunde-se a chamada autonomia da política estatal com a independência desta em relação ao econômico e social. Julga-se impossível, nestes tempos, a tomada do poder por assalto, mas não soube potencializar, como alternativa, a guerra de trincheiras na economia e sociedade, a partir da qual construir um poder muito diferente para avançar além da institucionalidade democrático-burguesa. Refiro-me à guerra de posição proposta por Gramsci. Eis o horror! A isso levou o pós-marxismo de Laclau e Mouffe, assim como o liquidacionismo eurocomunista, e todas as propostas teóricas alternativas ultrapassadas diante da alegada morte de Marx e do marxismo. E isso desarmou estrategicamente a esquerda em geral. É a esquerda do “fim da história”, aquela que não vê outra possibilidade além do eterno retorno do mesmo, que não é senão o novo horizonte de sua prática reformista. É o novo niilismo que nega a possibilidade mesma do novo, do realmente novo. Ideológica e politicamente, colocou-se em um beco sem saída.

Enquanto isso, a direita e a ultradireita, neoliberal ou fascista, tanto faz, realizam suas festas por toda parte, com realismo de classe e vontade de poder. Não se importam com a hegemonia, mas sim com a dominação, e menos ainda com a democracia ingênua e defensiva da esquerda progressista, pois sabem que, no final das contas, ela sempre carrega em seu seio a ditadura do capital.


***
Carlos Rivera Lugo é doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do País Basco (Espanha) e mestre em Direito pela Universidade de Columbia, Nova Iorque. Possui doutorado em Jurisprudência (J.D.) e bacharelado em Ciência Política pela Universidade de Porto Rico. Foi reitor e professor de Filosofia e Teoria do Direito na Escola de Direito Eugenio María de Hostos, em Mayagüez, Porto Rico (1993-2013). É professor colaborador do Programa de Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Autônoma de San Luis Potosí, no México, e Membro do Grupo de Trabalho sobre Crítica Jurídica e Conflitos Sócio-Políticos do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), Buenos Aires. É editor da revista Crítica jurídica y política en nuestra América.

Deixe um comentário