Fontes da resistência palestina

Os conflitos bélicos em curso têm alcance mundial e não toleram posições de neutralidade, pois neles se joga o futuro da humanidade, que hoje depende, em parte substantiva, da sorte e destino do povo palestino, os “condenados da terra” do século XXI.

Imagem: Leon Ferrari

Por Osvaldo Coggiola

As raízes do Hamas remontam a quase meio século atrás, e não remetem a qualquer espécie de “terrorismo islâmico”. Na década de 1970, o xeique palestino Ahmed Yassin, que se movimentava em cadeira de rodas, fundou uma organização baseada no integrismo islâmico, que foi vista inicialmente com bons olhos por Israel, por acreditar que ela enfraqueceria Al Fatah, principal organização da OLP (Organização para a Libertação da Palestina).

No início da década de 1980, no esteio da revolução iraniana, Ahmed Yassin criou a Majd al Mujaidin [“Glória dos Combatentes do Islã”] sendo detido em 1984 pelo Shin Bet1 por terrorismo anti-israelense. Permaneceu um ano em prisão, libertado por uma troca de prisioneiros. Em dezembro de 1987, Ahmed Yassin fundou o “Movimento de Resistência Islâmica”, que deu origem ao Hamas.

Preso novamente em maio de 1989, Ahmed Yassin foi condenado à prisão perpétua em outubro de 1991. Imperturbável, escutou o veredicto respondendo: “O povo judeu bebeu do copo do sofrimento e viveu disperso pelo mundo. Hoje, é esse mesmo povo que quer forçar os palestinos a beber desse copo. A história não os perdoará, e Deus nos julgará a todos”. Ahmed Yassin foi libertado em outubro de 1997 por ordem do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e exilado para a Jordânia, graças à intervenção do rei Hussein, que prestava discreto apoio ao Hamas.

O jornalista inglês Robert Fisk sublinhou a responsabilidade israelense no surgimento do “fundamentalismo islâmico”: “Hamas, o principal alvo da ‘guerra ao terror’ de Sharon, foi originalmente patrocinado por Israel. Nos anos 1980, quando Arafat era o ‘super-terrorista’, e o Hamas era uma pequena e agradável instituição muçulmana de caridade, embora venenosa em sua oposição a Israel; o governo israelense encorajou seus membros a construir mesquitas em Gaza. Algum gênio no exército israelense decidiu que não havia melhor meio de minar as ambições nacionalistas da OLP nos territórios ocupados do que promover o Islã. Mesmo depois do acordo de Oslo, durante uma desavença com Arafat, altos oficiais do exército israelense anunciaram publicamente que estavam conversando com funcionários do Hamas. E quando Israel ilegalmente deportou centenas de homens do Hamas para o Líbano em 1992, foi um de seus líderes, escutando que eu viajava para Israel, que me ofereceu o telefone da casa de Shimon Peres de sua agenda”.2

Foi no quadro criado pela sobrevivência, surpreendente para muitos, da “República Islâmica” iraniana, que mudou a composição política da luta árabe contra Israel, com o surgimento e crescimento de grupos político-religiosos, destacando-se o Hezbollah, a organização xiita libanesa apoiada pelo Irã, o Hamas criado por palestinos sunitas quando se iniciou a primeira Intifada, e a “Jihad Islâmica”, formada por jovens palestinos no Egito desde 1980.

Contrastando com a decadência política crescente de Al-Fatah e da OLP, organizações islâmicas de variado cunho ganharam rápido destaque no cenário político palestino e árabe em geral. As velhas direções nacionalistas, como o governo de Egito, haviam compactuado estrategicamente com Israel. Essa posição das correntes árabes laicas e/ou de esquerda, abriu espaço para que as organizações islâmicas que mantiveram a intransigência em relação a Israel, como o Hamas e o Hezbollah, ganhassem influência de massas.

O fracasso do nacionalismo secular árabe na tarefa de colocar a luta nacional numa perspectiva anti-imperialista (o que teria exigido romper seus laços com as castas dirigentes dos Estados árabes monárquicos e reacionários), devido à formação de uma burocracia estatal parasita e enriquecida, levou ao fortalecimento do movimento religioso, que possuía uma longa tradição e bases organizativas. O Hamas (“ardor”) palestino elaborou uma resposta ao Estado sionista pela via da proposta de um “Estado Islâmico”, e disputou vitoriosamente espaço político contra a OLP.

Não é um paradoxo que a fundação do grupo, em 1988, fosse bem vista pelos políticos israelenses. A rede de ajuda social do islamismo, sunita especialmente, teve um papel essencial na sua expansão em todas as sociedades islâmicas. Um “historiador” escreveu: “O Hamas é uma extensão da Irmandade Islâmica [do Egito]. A linguagem dos dois grupos é a mesma. O território de Israel é qualificado de islâmico, não de palestino. O Hamas e a Irmandade se referem a uma espécie de república islâmica planetária”;3 nessa observação, toda a história fica reduzida ao “discurso”; seus componentes econômicos, sociais, políticos, ficam minimizados, transformados em uma alavanca secundária da ideologia.

Na Palestina, a segunda Intifada ou “Intifada Al-Aqsa” iniciou-se em setembro de 2000 (a primeira foi em 1987). O movimento ocorreu dentro de um contexto marcado pelo impasse no “processo de paz”, pela retirada israelense do sul do Líbano (interpretada como uma vitória do Hezbollah), pela disputa de influência entre as facções palestinas do Fatah e do Hamas e pelo desagrado de uma parte da população israelense em relação às concessões feitas pelos acordos de Camp David (de julho de 2000) e por ataques terroristas.

Em 27 de setembro de 2000 um atentado palestino provocou a morte de um colono judeu no assentamento israelense de Netzarim, na Faixa de Gaza. No dia seguinte, Ariel Sharon, à época um parlamentar do partido Likud, de oposição ao governo de Ehud Barak, visitou, protegido por um grande aparato de segurança, a Esplanada das Mesquitas/Monte do Templo, em Jerusalém. Mais de mil palestinos estavam presentes. A visita foi interpretada pelos palestinos como uma provocação, e originou a segunda Intifada.

Após a partida de Ariel Sharon, violentos confrontos opuseram palestinos e israelenses junto ao Muro das Lamentações. Sete palestinos foram mortos e centenas foram feridos. Nos dias seguintes, a violência prosseguiu com ataques palestinos ao exército israelense nos territórios ocupados por Israel, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. O conflito, que durou do final de 2000 até o começo de 2005, deixou centenas de mortos.

Violentos combates em áreas urbanas, atentados e bombardeios e ataques em regiões muito povoadas deixaram um alto saldo de perdas de vidas civis. Os palestinos recorreram ao lançamento de foguetes katiusha (quase artesanais, tipo rojões) e também, principalmente, a atentados suicidas. Já os israelenses usaram tanques, artilharia e aeronaves. A infraestrutura dos territórios ocupados por Israel ficou devastada. Entre combatentes e civis, estima-se que mais de três mil palestinos e quase mil israelenses teriam morrido, além de 64 estrangeiros.

Um ano depois do início da Intifada, no dia dos atentados de Al-Qaeda contra as Torres Gêmeas em Nova York, ao mesmo tempo em que se buscavam sobreviventes nos escombros na cidade norte-americana, Israel invadia Jericó, primeira cidade palestina a conseguir autonomia na Cisjordânia (em 1994), deixando um saldo de treze mortos e mais de cem feridos. Em 2002, recrudesceram os ataques contra Palestina, sua Autoridade Nacional e o líder da OLP Yasser Arafat, ataques desferidos pelo governo Sharon-Peres com total apoio dos EUA. A FDI (Força de Defesa Israelense) fez um cerco a todas as cidades palestinas e à sede da Autoridade Nacional Palestina em Ramallah, onde o próprio Arafat foi mantido refém.

Israel invadiu a margem ocidental do Jordão usando métodos de terror: massacre de civis indefesos, incluindo idosos, mulheres e crianças, assassinatos e execução de prisioneiros desarmados, prisões em massa e detenção em campos em terríveis condições, demolição de edifícios, destruição dos sistemas hidráulico e elétrico, dos recursos e infraestrutura social e da saúde. A expulsão de jornalistas estrangeiros, de equipes médicas e de observadores internacionais tinha como principal objetivo impedir o conhecimento internacional desses fatos.

Tentando fugir de uma situação de guerra permanente, o governo dos EUA formulou uma proposta política. O “Mapa da Estrada” proposto pelo governo Bush foi uma caricatura dos Acordos de Oslo celebrados em 1993-1995, que eram também a caricatura de uma solução democrática para a questão palestina. O principal triunfo da proposta era político. A Autoridade Nacional Palestina informou que “a OLP realizou um compromisso histórico em 1988, reconhecendo a soberania de Israel sobre 78% da Palestina histórica, na compreensão de que os palestinos seriam capazes de viver em liberdade no restante 22% sob a ocupação israelense desde 1967”.

O “processo de paz” fora usado como cortina de fumaça para continuar a confiscação de terras, que duplicou o número de colonos judeus que viviam na margem ocidental do Jordão, na Faixa de Gaza e em Jerusalém Oriental – aproximadamente 400.000 – e para levar adiante a política de confinamento da população dos territórios ocupados, substituídos em Israel por trabalhadores estrangeiros trazidos de todo o mundo. A asfixia econômica dos trabalhadores da margem ocidental do Jordão e de Gaza – onde o desemprego crescera 65%, e 75% da população vivia abaixo da linha de miséria de dois dólares diários – foi a razão do colapso dos Acordos de Oslo.

Essa catástrofe econômica era o resultado de um objetivo de longo prazo, compartilhado por todos os partidos sionistas, de se desfazer dos palestinos em toda Eretz Israel. A temporária vitória dos EUA no Iraque encontrou sua contrapartida nos territórios ocupados no desenho da formação de um novo gabinete, depois de que Arafat fora declarado “incompetente”. Israel começou a construir, em junho de 2002, na fronteira da Cisjordânia, um muro de isolamento.

Com extensão prevista de 350 km, ele devia cobrir do norte ao sul a “Linha Verde” e englobar também o setor oriental de Jerusalém, anexado por Israel desde 1967, onde os palestinos reivindicavam a capital do seu Estado. Em certos lugares, como na cidade palestina de Qalqiliya, que ficaria dividida, o muro chegaria a oito metros de altura. O que estava ocorrendo na margem ocidental do Jordão era um processo de confiscação de terras e de segregação.

A construção do muro levaria à confiscação de aproximadamente 22% da margem ocidental, incluindo 80% das terras agrícolas, a extirpação de dezenas de milhares de árvores e a alienação pelo Estado de Israel de 20% dos recursos de água da população palestina. Ao menos quinze aldeias ficariam presas entre o muro e a “Linha Verde”, em áreas militares fechadas controladas pelo Tsahal.

O muro significava a inclusão em Israel de um vasto número de assentamentos judeus ilegais, e transformaria as aldeias e cidades palestinas em campos similares aos existentes na Faixa de Gaza. O muro cortaria o vale do Jordão, deixando ao chamado “Estado palestino” só 50% da margem ocidental. Na realidade, esse “Estado” consistiria em oito “bantustões”, separados, isolados e controlados por Israel: Jenin, Nablus, Qalqilia, Tulkarem, Jericó, Ramallah, Bethlehem e Hebron.

Os civis palestinos não seriam autorizados a transladar-se de uma dessas áreas para outras sem autorização especial das autoridades de ocupação. O “Estado palestino” no seria mais que um conjunto de cantões, pontilhado por rotas controladas pelo exército israelense, sitiados pelas colônias sionistas e os estabelecimentos militares. Nessas condições, Gaza foi palco de uma disputa de poder entre a “velha guarda” da Autoridade Palestina, liderada por Arafat, e uma geração mais jovem de militantes armados, que queriam reformas na estrutura de poder palestina.

A velha guarda foi acusada de corrupção e de não ter agido para garantir aos palestinos segurança e vida melhor. Também o foram de não terem conseguido formar instituições capazes de sustentar um Estado palestino. A invasão israelense da Cisjordânia em março/abril de 2002 e o cerco a Arafat em Ramallah, mantido até sua morte em novembro de 2004, foram significativos. O nome com que a invasão foi batizada – Operação Escudo de Defesa – escondia, na realidade, o objetivo político de sufocar a ANP e inviabilizar a construção de um Estado palestino independente.

Em resposta a um atentado suicida realizado em Jerusalém por um militante do Hamas, o exército israelense realizou em meados de 2003 fortes ataques na faixa de Gaza, nos quais feriu o máximo dirigente do Hamas, Abdul Aziz al-Rentisi, e matou 25 palestinos. Estes fatos colocaram em crise o “Mapa da Estrada” proposto pelos EUA. O plano tentava desmontar a bomba de tempo da rebelião do povo palestino ante os reiterados fracassos da repressão israelense, num momento em que se complicava a ocupação militar do Iraque.

O primeiro passo desse projeto era fazer com que fossem as próprias autoridades palestinas a reprimir seu povo. O plano foi aceito por Yasser Arafat, impotente para deter a Intifada e acusado por Sharon de não ser duro contra ela. Com alguma resistência, Arafat aceitou a designação de Abu Mazen (Mahmoud Abbas, homem de confiança dos EUA e de Israel) como primeiro-ministro palestino. Além disso, corpos policiais palestinos começaram a ser treinados por especialistas ianques. Nos territórios ocupados, Israel deveria retirar-se para que fossem cumpridas as resoluções de 1967 da ONU.

O “Mapa da Estrada” fora rechaçado por diversas organizações palestinas, entre elas as Brigadas dos Mártires de Al Aqsa, a Frente Popular pela Libertação da Palestina e as correntes islâmicas Hamas e Jihad. Sharon aceitara o plano de Bush que, na sua primeira etapa, apenas exigia de Israel medidas de colaboração em dois aspectos: começar a liberar os presos palestinos e iniciar o desmonte dos assentamentos ilegais de colonos judeus (cuja cifra crescera de 70 mil para 200 mil na última década) em territórios que pertenciam à Autoridade Palestina.

Diante do panorama desalentador, em entrevista realizada em junho de 2003, na proximidade de sua morte, o destacado intelectual palestino Edward Said manifestou: “A única fonte de otimismo, a meu ver, continua sendo a coragem dos palestinos para resistir. Foi por causa da Intifada e porque os palestinos se recusaram a capitular diante dos israelenses que chegamos à mesa de negociação. O povo palestino vai continuar se opondo aos assentamentos ilegais, ao exército de ocupação, aos esforços políticos para pôr um ponto final em sua aspiração legítima de ter um Estado. A sociedade palestina vai subsistir, apesar de todos os esforços que têm sido feitos para sufocá-la… (O plano de paz) não aborda os problemas e as reivindicações reais do povo palestino. Estamos falando de uma nação que foi destruída mais de cinquenta anos atrás. Sua população foi privada de suas propriedades, 70% dela ficou desabrigada. Ainda hoje, quatro milhões de palestinos vivem refugiados no Oriente Médio e em outras regiões do mundo. Desde 1948 a ONU reafirma a ilegalidade dessa situação e diz que essas pessoas deveriam ser indenizadas ou repatriadas. O plano de paz, no entanto, não toca nesse ponto. O plano também não diz nada sobre a ocupação militar que começou em 1967”.

“Estamos falando da mais longa ocupação militar da história moderna. Milhares de casas foram destruídas e, em seu lugar, surgiram quase 2.000 assentamentos israelenses com cerca de 200.000 colonos. A seção Leste de Jerusalém foi indevidamente anexada por Israel, que, além disso, nos últimos dois anos e meio, manteve os três milhões de habitantes da Faixa de Gaza e da Cisjordânia sob toque de recolher e restrições de direitos humilhantes. Nada disso foi mencionado pelo plano de paz. E tampouco a questão das fronteiras de um futuro Estado palestino foi abordada com clareza. Não havia menção às fronteiras que existiam antes de 1967, muito menos à ideia de restabelecê-las. Ou seja, Israel se propunha aparentemente reconhecer um Estado palestino, mas provisório e sem território estabelecido. Na essência, tudo que o plano dizia é que os palestinos deviam abrir mão da resistência, parar de lutar. Em contrapartida, Israel eventualmente levantaria algumas das restrições que impõe ao povo palestino, sem maiores especificações. O plano não previu mecanismos efetivos de implementação de suas fases. Assim como ocorreu nas negociações de Oslo, em 1993, as decisões ficariam a cargo dos israelenses. Em resumo, estamos falando de um plano que não leva a lugar algum”.

Em 2004, 7.366 palestinos encontravam-se detidos por Israel, 386 das quais eram crianças; 760 deles encontravam-se em detenção administrativa sem terem sido formalmente acusados ou julgados. De 2000 a 2004 o exército israelense demoliu cerca de 3.700 casas palestinas: 612 casas foram destruídas como castigo contra famílias de palestinos suspeitos de tentar realizar ou de ter cometido ofensas violentas contra civis ou forças de segurança israelitas; 2.270 foram demolidas pelo argumento de “segurança”; mais de 800 demolições administrativas foram realizadas contra casas construídas sem permissão israelense. Foi também durante a segunda Intifada que a ativista membro do International Solidarity Movement (ISM) Rachel Corrie foi morta em 16 de março de 2003 pelas Forças Armadas de Israel enquanto tentava, juntamente com outros ativistas, impedir a destruição de casas de civis.

A crise do “processo de paz” dava-se em momentos em que Israel vivia sua maior crise econômica desde 1948, com desemprego crescente, corte dos gastos sociais, queda de amplos setores da população judaica e árabe para o nível de pobreza, e uma forte recessão. O prosseguimento do esforço de guerra prometia atingir ainda mais os árabes e judeus vivendo dentro da “Linha Verde”, com o corte de mais de dois bilhões de dólares do orçamento do governo, para fins militares.

Em 2005, Abbas foi eleito presidente da ANP, passando a administrar na Cisjordânia com poderes extremamente limitados. Em 2005 também, Israel se retirou da Faixa de Gaza, território ocupado por suas tropas e colonos. Com sua saída, Israel encerrou 38 anos de ocupação. A retirada fez parte dos acordos do “processo de paz”: centenas de colonos judeus assinaram acordos de compensação com o Estado israelense, cerca de cinco mil pessoas que se opunham à retirada entraram na região para encorajar a resistência à desocupação. Tropas bateram nas portas das casas para dizer aos moradores que tinham 48 horas para evacuar suas casas. A execução do plano de retirada não foi tranquila.

Na colônia de Neve Dekalim, considerada a capital das colônias israelenses, a polícia e os militares tiveram de intervir com força. Os colonos, ajudados por ultranacionalistas, infiltrados nas colônias para impedir as evacuações, ofereceram muita resistência. A polícia teve de serrar os portões de aço da colônia, de madrugada, para permitir a entrada no local dos caminhões para levarem os bens das famílias que aceitaram deixar as suas casas. Em Neve Dekalim viviam 2.500 pessoas. Os que aceitaram deixar as suas casas teriam direito a uma compensação entre150 mil e 450 mil euros por família.

O presidente israelense, Moshe Katzav, pediu “perdão” aos colonos: “Em nome do Estado de Israel, peço perdão porque exigimos que eles abandonem os locais onde moram há décadas”, declarou na televisão. Segundo o plano de retirada do premiê israelense, Ariel Sharon, seriam retirados os colonos da faixa de Gaza e de quatro colônias isoladas no norte da Cisjordânia.

A isso se somou o anúncio, pelo chefe do exército israelense, Dan Halutz, de prováveis deserções em massa de soldados, e formação de milícias irregulares, em oposição à retirada,4 que foi precedida, em julho, por uma “limpeza étnica”, com ataques de mísseis incluídos, na própria Gaza; pela destruição, pelos colonos da maioria das estufas dos assentamentos judeus; e pela construção da barreira interna da Jerusalém, que deixou 55 mil palestinos fora da “Cidade Santa”.5 E, principalmente, pelo reforço da presença militar de Israel na Cisjordânia, onde se encontrava a maioria dos assentamentos israelenses ocupados durante a guerra de 1967: no total, menos de 4% dos quase 250 mil colonos israelenses seriam afetados pela retirada.

“A colonização vai prosseguir”, declarou Ariel Sharon no momento da retirada da Faixa de Gaza. O primeiro-ministro garantiu que não abdicaria das colônias da Cisjordânia, apesar da retirada em Gaza: “A colonização é um programa sério que vai prosseguir e desenvolver-se”. A Autoridade Palestina condenou as declarações, classificando-as como “inaceitáveis”. Pouco depois do início da retirada de Gaza, o ministro da Defesa israelense anunciou que iria manter o controle sobre seis colônias na Cisjordânia, independentemente dos acordos concluídos com os palestinos.

Nesse período, deu-se início a uma nova onda de antissemitismo europeu, com ataques contra as sinagogas e os judeus na França e na Bélgica, com forte atuação de grupos neonazistas e de extrema direita. Em Israel, o “campo da paz”, os herdeiros do sionismo de esquerda e da tradição comunista, e os intelectuais denominados pós-sionistas, passaram a defender a “solução dos dois Estados”, denunciando os horrores do passado e do presente, a dinâmica colonialista do sionismo, os mecanismos de expulsão dos árabes, as constantes alianças e tentativas de aliança dos sionistas com potências imperialistas, a possibilidade legal do emprego da tortura e a própria ausência de uma constituição israelense, a natureza confessional do Estado, o racismo contra palestinos e judeus não europeus, as semelhanças entre a “Lei do Retorno” e o código nazista de Nuremberg, mas sempre enxergando o Estado de Israel como um fato consumado e irreversível, ou seja, não superável por uma república laica e democrática.

Depois dos acordos Israel/OLP, nas eleições de Gaza de janeiro de 2006 o aspecto mais espetacular foi a participação do grupo Hamas. Na ocasião, este omitiu de seu manifesto político toda referência ao fim de Israel, sua marca registrada depois do reconhecimento de Israel pela OLP. A declaração de que todas as terras ao Oeste do rio Jordão deveriam pertencer a um Estado islâmico palestino – em outras palavras, que o território de Israel devia se tornar território palestino – figurava, no entanto, na carta de fundação do Hamas.

Apesar dessa omissão no manifesto eleitoral, constava nele o compromisso com “um Estado palestino totalmente soberano” e com “a resistência armada para pôr fim à ocupação israelense”. A crise da Autoridade Nacional Palestina e do movimento nacional palestino era gritante, chegando-se até a levantar a possibilidade de uma guerra intestina no caso em que o governo de Abbas continuasse a atacar o Hamas, consoante com o cerco que lhe pretendia tender o governo de Israel.6 Isto pese à vontade declarada do Hamas, que derrotara Al-Fatah nas eleições municipais de dezembro de 2005, de integrar suas milícias em um só corpo armado palestino.7 Al-Fatah parecia encontrar-se em crise terminal.

Em Israel, os abalos políticos provocaram uma “revolução” dentro do Partido Trabalhista, com a derrota interna de seu líder histórico Shimon Peres, e a explosão do Likud, abandonado por Sharon para formar a coalizão Kadima, nova formação política capaz de garantir, com seu suposto “centrismo”, a estabilidade de um regime que fazia água por todos os lados, cuja instabilidade se media pelo fato de pretender levar como cabeça de chapa o próprio Ariel Sharon, apesar de que este estava definitivamente afastado do mundo da política por graves razões de saúde.

Esquerda e direita israelenses coincidiam em qualificar o agonizante Sharon como a própria encarnação do Estado, em crise econômica profunda devido à crise mundial e aos minguados subsídios externos,8 e obrigado a sustentar uma economia de guerra e um estado policial mal encoberto. Em agosto de 2005, no mesmo momento da retirada de Gaza, foi aprovada pelo parlamento israelense uma lei que não concedia cidadania nem residência permanente aos palestinos casados com israelenses, atingindo mais de um milhão de árabes residentes em Israel.

A eleição do secretário geral da Histadrut (central sindical), Amir Peretz, como presidente do Partido Trabalhista, precipitou a crise de todo o sistema político, tirando o trabalhismo do governo de unidade nacional com Sharon, provocando um chamado a eleições para inícios de 2006, e dividiu o Likud. Amir Peretz se distanciara em 1996 do Partido Trabalhista (PTI) para formar um novo partido, Am Hehad (Povo Unido).

Pela primeira vez o PTI seria governado por um israelense nascido em um país árabe: Amir era marroquino e migrara com seus pais para Israel quando tinha quatro anos de idade, em 1956. Na sociedade israelense sempre prevalecera a dominação dos descendentes e mesmo dos imigrantes vindos da Europa. Os judeus imigrantes de países árabes, do Norte da África e do Oriente Médio sempre foram considerados uma espécie de cidadãos de segunda classe.

O próprio ex-primeiro ministro Menachem Beguin, direitista, usara essas divisões e diferenças para vencer as eleições em 1977 pela primeira vez, pelo Partido Likud, quebrando uma hegemonia de trinta anos do trabalhismo, que governava e dava os rumos de Israel desde sua criação pela ONU em 1947. Durante a gestão de Peretz, a Histadrut vendeu – privatizou – o Bank Hapoalim (banco “operário”), o maior serviço de saúde de Israel (Kupat Holim Klalit) e o conglomerado de indústrias Klal, além de grandes e médias empresas que estavam em seu poder.

Em finais de 2005, Sharon declarara querer instituir um regime presidencialista em Israel. Depois de sua retirada unilateral de todos os assentamentos na faixa de Gaza e do acordo para abrir a fronteira palestina com o Egito, as divergências internas no seu partido estavam ficando incontornáveis. Diversos ministros mais à direita, radicais, estavam saindo do governo com duras críticas a Sharon. A sustentação de seu governo só acontecia pela decisão do PTI de voltar a participar dele. Essa situação reverteu-se completamente com a eleição de Peretz para líder do partido e com o pedido expresso deste para que novas eleições fossem convocadas.

No entanto, o mais inusitado foi o anúncio, por parte de Sharon, de sua desfiliação do Likud, partido que ajudara a formar em 1973, quando ainda era general e ativo participante de todas as guerras em que Israel se envolvera em seus sessenta anos de existência. Essa decisão foi classificada pelo maior jornal de Israel, o Yediot Aharonot, como um “terremoto político sem precedentes”.

Ao tomar essa decisão, Sharon, seguindo a constituição israelense, pediu ao presidente de Israel a dissolução do parlamento, que, no caso israelense, é apenas unicameral (não tem senado). O governo britânico denunciou a “judaização” de Jerusalém oriental, realizada através da expulsão de palestinos, a construção de um muro divisório e de milhares de casas para a população judia.

Os Estados Unidos pediram que a evacuação israelense da Faixa de Gaza “acontecesse de forma pacífica”, para que o plano fosse bem-sucedido e “impulsione o processo de paz entre Israel e os palestinos”. “Nosso objetivo é, principalmente, que seja um sucesso”, disse o porta-voz do Departamento de Estado, Sean McCormack: era preciso voltar as atenções para que houvesse “um horizonte político neste processo”, sobre a intenção de que a implementação do Plano de Desligamento ajudasse a melhorar as perspectivas do processo de paz.

Para isso, o porta-voz disse que o presidente da ANP, Mahmoud Abbas, “deve obter êxito em sua luta contra o terrorismo”: “Abbas compreende que tem a obrigação de desmantelar as redes terroristas”. Mas, antes da retirada, o Hamas deixou claro que manteria a luta armada. Além de terem subsidiado a ocupação de Gaza durante quase quatro décadas, Israel deu a cada família evacuada US$ 200 mil a título de indenização.9 Ou seja, que além dos subsídios de 38 anos, Israel (e os EUA através dele) empregariam, no mínimo, 600 milhões de dólares, só para as famílias evacuadas, para garantir o equilíbrio político regional.10

O custo total da retirada chegaria, com todos os gastos, a US$ 2 bilhões, o equivalente de todo o orçamento militar anual de Israel, o mais alto per capita do mundo.11 E, ainda assim, o colono judeu que assassinou quatro palestinos, a 17 de agosto de 2005, Asher Weissgan, declarou, na Corte de Jerusalém encarregada de julgá-lo: “Não me arrependo de nada”, e “espero que alguém mate Sharon”.12 Antes de ir a Washington, Sharon visitou Maale Adumim, em Jerusalém Leste, o maior assentamento da Cisjordânia. Dirigindo-se aos colonos, lhes prometeu que suas casas continuariam sendo parte de Israel ‘para toda a eternidade’”.13

Havia 21 assentamentos judeus em Gaza, com 9.500 colonos, em meio a 1,4 milhão de palestinos; na Cisjordânia os assentamentos eram 120, com 230 mil judeus em meio a 2,4 milhões de palestinos (só estava prevista a retirada de quatro assentamentos). E havia o problema do fornecimento de água para Israel, dos lençóis subterrâneos da Cisjordânia. Todos os assentamentos foram favorecidos pelo governo israelense com subsídios à moradia e custos de vida muito inferiores aos de Israel, via subsídios estatais.

Na Cisjordânia, durante o primeiro semestre de 2005, o ritmo das construções nos assentamentos cresceu em 85%. Os palestinos árabes, por sua vez, eram 3,8 milhões distribuídos pelas faixas de Gaza e Cisjordânia, mais outros quatro milhões vivendo como refugiados nos países árabes vizinhos (dados de 2004), totalizando oito milhões de pessoas. A política de Sharon, portanto, foi ao encontro dos sustentadores do sonho de Eretz Israel: deflagrou uma forte crise política, no entanto, porque as concessões que os EUA lhe obrigaram a fazer se constituíram num novo fator de degradação da crítica situação econômica e social de Israel.

E isto para outorgar à enfraquecida ANP uma fraca carta para enfrentar a crescente influência do “radicalismo islâmico” entre a população. A política reformista impulsionada pelos EUA para salvar sua desastrada aventura bélica no Oriente Médio, ameaçada pelo crescimento da resistência iraquiana contra a ocupação militar, em vez de resolver, tornava mais agudas as contradições herdadas da política imperialista para a região.

Para a revista britânica The Economist, o governo dos EUA estava confrontado, no Oriente Médio, a um teste que poderia provocar “a pior derrota estratégica dos EUA desde a guerra do Vietnã”.14 Não era uma afirmação vazia: a 25 de janeiro de 2006, o movimento islâmico Hamas venceu as eleições legislativas da Autoridade Nacional Palestina, o que acrescentou um novo elemento à crise política do regime sionista. Hamas obteve 74 bancas parlamentares de um total de 132 (56%); enquanto o Al Fatah de Abu Mazen e Marwan Barghouti obteve só 45 (34%).

Distritos inteiros como Hebron, o distrito norte da Faixa de Gaza e Dir el-Balah foram ganhos em bloco pelo Hamas. Em outros, como Nablus, Tul Karem, Ramallah e Jerusalém oriental, o Hamas obteve entre 75% e 90% dos votos. A esquerda palestina obteve só 10% dos votos em alguns distritos (a FPLP obteve três deputados; a FDLP, só dois; o Partido Iniciativa Nacional de Mustafá Barghouti, dois, depois de ter obtido 20% dos votos nas eleições presidenciais). A participação nas eleições na Cisjordânia, em Gaza e em Jerusalém Oriental foi de 77,69%. A participação na Faixa de Gaza foi de 81,65%, ao passo que na Cisjordânia foi de 74,18%. Ao todo, 1.341.000 palestinos foram convocados às urnas para escolher os 132 deputados do Conselho Legislativo.

O principal antecedente do resultado fora a retirada do exército israelense e dos colonos judeus de Gaza, percebida como um triunfo político do Hamas, alvo predileto dos atentados de Israel. A corrupção da direção da ANP foi um dos eixos do “voto repúdio”, corrupção que refletia a degradação não só de uma direção política, mas de uma classe social, a burguesia palestina. Além disso, o Hamas tinha em seu favor uma enorme rede beneficente na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Chegou-se a afirmar que “com relação à vitória do Hamas… a campanha eleitoral não foi um referendo sobre guerra ou paz com Israel. O Hamas não venceu porque prometeu varrer Israel do mapa. Venceu porque prometeu resolver alguns dos terríveis desequilíbrios e as caóticas distorções que vêm definindo a sociedade interna palestina nos últimos anos”;15 “O próprio Hamas não é uma organização homogênea e têm discordâncias internas. Pode-se afirmar que ao colocar em dúvida ‘o direito de Israel de existir’, o Hamas tentou, embora sem sucesso, colocar na atualidade a catástrofe palestina, a Nakbah, de que em 1948 não se tinha consciência”.16

A vitória do Hamas questionava toda a estratégia promovida pela administração de George W. Bush ou, como disse um colunista de The New York Times: “O sentimento dominante entre políticos e intelectuais no Oriente Médio nos últimos dias foi de que o pequeno experimento químico dos EUA tinha explodido na cara do país. O presidente George Bush vinha promovendo a democracia com eleições livres como sua principal solução para os males da região – e quando o Hamas venceu de maneira esmagadora as eleições palestinas, Bush colheu resultados que não poderiam ser mais contrários aos interesses dos EUA e de seu aliado Israel”.17 Também havia quem assegurava – como o ex-ministro Israel Katz, do partido Likud – que o plano de desconexão unilateral israelense da Faixa de Gaza “garantiu a vitória de Hamas”. Segundo Katz e outros porta-vozes da direita israelense, a saída de Gaza “sem condições, sem receber nada em troca, apresentou Hamas como os grandes vencedores que haviam retirado Israel da Faixa de Gaza”.

Os líderes do Hamas, Ismail Haniyeh e Mahmoud al-Zahar, também afirmaram que a vitória de seu partido nas eleições legislativas teria consequências internacionais: “Nossa vitória é uma lição à comunidade internacional e mudará a atitude de Israel, dos países árabes e do Ocidente em relação ao conflito palestino-israelense”. Al-Zahar afirmou que “a luta armada contra Israel continuará, e nossa vitória levará Israel a fazer concessões aos palestinos e mudará a atitude da Jordânia e do Egito em relação ao conflito”.

E também: “Nossa vitória é um golpe contra os Estados Unidos e Israel”. Haniyeh reiterou que “a vitória reafirma nossas crenças e nossa estratégia, e estamos comprometidos com o que anunciamos antes das eleições”. Sobre as relações com Israel, Haniyeh pediu “a resistência contra a ocupação até expulsá-la (dos territórios palestinos) e devolver nossos direitos, e, acima de tudo, Jerusalém, os refugiados e a libertação de prisioneiros”. Al-Zahar pediu a todas as facções palestinas que se somassem ao programa político do Hamas.

A classe operária e as massas palestinas se manifestavam esporadicamente, como na greve dos professores na Cisjordânia, em 1997, ou na criação dos comitês independentes de trabalhadores e desempregados em Gaza, em 2005. A candidata Mariam Farahat (Um Nidal), mãe de dois suicidas, se dirigia a milhares de mulheres palestinas em Khan Younis, Gaza; em Hebron, 60 mil pessoas se reuniram no comício final da campanha do Hamas. Abu Mazen tinha recebido uma “ajudazinha” de Bush de dois milhões de dólares, para a sua campanha eleitoral, enquanto cresciam as ameaças de Israel, EUA e a UE, de que não reconheceriam um governo de Hamas. O Hamas estava incluído nas listas de “organizações terroristas” do Departamento de Estado dos Estados Unidos e da União Europeia (UE). Lhe fazendo eco, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, disse que qualquer grupo que quiser participar do processo político democrático “deve se desarmar”.

Sobre a relação dos Estados Unidos com o Hamas, se este fosse incluído no novo governo palestino, o presidente norte-americano disse: “A resposta é: não negociaremos com vocês até que renunciem ao seu desejo de destruir Israel”. Os Estados Unidos tinham pressionado o presidente palestino a excluir o Hamas do governo. “Nossas opiniões sobre o Hamas estão muito claras”, disse o porta-voz da Casa Branca, Scott McClellan: “Não lidamos com o Hamas. O Hamas é uma organização terrorista. Sob as atuais circunstâncias, não vemos qualquer mudança nisso”. Ele deixou em aberto, porém, a possibilidade dos EUA continuarem trabalhando com a Autoridade Palestina, mas não com seus representantes ligados ao Hamas. É o que já acontecia no Líbano, onde os EUA tratavam com o governo, mas não mantinham contatos com um ministro ligado ao grupo xiita Hezbollah.

O Hamas disse que pretenderia manter sua “política de resistência” quando assumisse o governo palestino: “Por um lado manteremos nossa política de resistência à agressão e ocupação e, por outro, procuraremos mudar e reformar o cenário palestino”. E também que “queremos formar uma entidade palestina que una todos os partidos em torno de uma agenda política independente”: “Queremos estar abertos ao mundo árabe e à comunidade internacional”. Ao mesmo tempo, o dirigente máximo do Hamas em Gaza , reiterou que seu movimento não se transformaria em um partido político, e não negociaria com Israel, “a menos que tenha algo a nos oferecer, e, neste caso, negociaríamos por meio de terceiros”.

Mas o principal negociador palestino, Saeb Erekat, quando admitiu a derrota de seu partido, Al Fatah, afirmou que a legenda não iria participar de um governo de coalizão. O sucessor de Arafat à frente do Al Fatah era oficialmente Faruk Kadumi, que vivia exilado na Tunísia. Mahmud Abbas, cofundador do movimento, presidia as reuniões do Comitê Central, principal instância do Fatah, mas a autoridade mais popular era Marwan Barghuti, que cumpria pena de prisão perpétua em Israel e disputara as eleições. O último congresso do movimento, o quinto desde a sua criação, fora realizado em 1989, na Tunísia. A conferência geral prevista para agosto de 2005 fora adiada indefinidamente.

Falando em Gaza, Ismail Haniyeh afirmou que “americanos e europeus dizem para o Hamas: armas ou legislativo. Nós dizemos que não há contradição entre os dois”. Segundo um comentário jornalístico: “Se americanos e europeus tiverem habilidade, vão guiar os radicais islâmicos para o caminho do Exército Republicano Irlandês (IRA), que ao longo do tempo rachou entre as facções política e militar, com a primeira pacientemente abafando a segunda. Mas para tal, o Hamas precisará reconhecer o direito de existência de Israel e dar passos efetivos para o seu desarmamento”.

Na visão mais “pessimista”, o Hamas iria viver a contradição até as últimas consequências: aproveitar os espaços institucionais na democracia palestina, mas também manter a luta armada contra Israel. Na falta de opções, Abbas era o interlocutor dos americanos. Mas em Washington e em outras capitais, ele era visto como incapaz de desarmar o Hamas, convertendo a milícia islâmica em partido político fiador de uma nascente democracia palestina. Tanto Israel como os Estados Unidos e a União Europeia repetiam que não estariam dispostos a negociar com o Hamas, a menos que o grupo renunciasse à resistência armada.

Abbas tentou salvar sua posição de intermediário múltiplo, a única que lhe restara. Elogiou “o espírito democrático do povo palestino”, e reiterou sua vontade de negociar com Israel. Lembrou todos os problemas e inconvenientes que tanto seu governo como os palestinos tiveram que superar para realizarem as eleições, e agradeceu aos observadores internacionais pela ajuda prestada durante o processo eleitoral à ANP. Ao mesmo tempo, reafirmou à “comunidade internacional” seu desejo de retornar à mesa de negociações com Israel.

A linha de intermediação principal entre os EUA com o Hamas começou a ser definida através dos regimes árabes de Médio Oriente. Líderes muçulmanos pediram a Israel e ao mundo que aceitassem a vitória do Hamas: “Se o Hamas formar o governo, ocupar a ANP, tendo a responsabilidade de governar, negociar, obter a paz, será diferente do Hamas que é uma organização cujas pessoas estão nas ruas”, disse o chefe da Liga Árabe, Amr Moussa.

O presidente do Líbano, Émile Lahoud, afirmou que “ninguém podia negar” o direito dos refugiados palestinos de retornarem a seus territórios. Cerca de 400.000 palestinos viviam no Líbano em condições muito precárias em pouco mais de dez campos de refugiados. O governo egípcio sublinhou que mantinha uma boa relação de trabalho com o Hamas. Mohamed Habib, vice-líder da Irmandade Islâmica, disse que a vitória do Hamas apontava para a opção dos palestinos pela via da “resistência”. Deputados árabes-israelenses disseram que o governo de Israel semeara a vitória do Hamas: “Israel está colhendo o que semeou todos estes anos”.

A linha “pragmática” do Hamas tinha seu principal expoente em Ismail Haniyeh, número um da lista de deputados. Em seu “discurso da vitória” não falou em destruir o Estado de Israel, mas que Hamas poderia aceitar “os limites de 1967”. Hamas disse que estava disposto a uma trégua. Também assinou os Acordos de El Cairo (março de 2005), onde se comprometeu a “manter uma atmosfera de calma”. Ahmed Hajj Ali, membro do Supremo Conselho da Shura de Hamas, disse: “Nossa prioridade é a de atender a situação interna palestina mais do que confrontar com Israel. Negociaremos com Israel porque é o poder que usurpou nossos direitos, se Israel concorda com nossos direitos internacionais reconhecidos, incluindo o direito ao retorno dos refugiados, (nesse caso) o Conselho da Shura consideraria seriamente reconhecer Israel no interesse da paz mundial”.18 Khaled Meshaal, máximo dirigente político do movimento, pediu à União Europeia continuar a ajuda econômica à ANP “desejoso de empreender um diálogo com os Estados Unidos e a Europa”.

Especialistas do International Crisis Group vinham apontando a mudança do Hamas: “O movimento deveria também ratificar uma lei sobre a segurança que o leve progressivamente a desarmar suas milícias e respeitar um cessar-fogo. Aos israelenses, o relatório aconselha que ponham fim aos assassinatos políticos e libertem os líderes políticos das facções palestinas”.19 O próprio “Quarteto de Madri”, integrado por Estados Unidos, União Europeia (UE), Rússia e a ONU, pediu que se respeitasse a vitória do Hamas. O Quarteto parabenizou o povo palestino pelo sucesso do processo eleitoral.

A comissária europeia de Relações Exteriores, responsável pela ajuda financeira da União Europeia à ANP, afirmou que o bloco estaria disposto a trabalhar com qualquer governo, “se o governo estiver disposto a fazer a paz avançar com métodos pacíficos”, destacando que os acordos de cooperação da Comissão Europeia eram com a ANP e não com “um ou outro partido”, e disse que “não esperava” que a vitória do Hamas atrapalhasse os projetos europeus em andamento em território palestino. Para os EUA, no entanto, o Hamas continuava a ser uma organização terrorista; e o ex-presidente Jimmy Carter, que chefiou uma equipe de observadores às eleições palestinas, lembrou que “por lei” o governo americano não poderia negociar com um governo palestino com presença do Hamas.

Um dos principais dirigentes do Hamas negou que o movimento tivesse se transformado em um partido político com sua participação nas eleições parlamentares: “O Hamas continua sendo um movimento de resistência, e sua participação nas eleições não implica uma conversão a um partido político”. Do seu lado, o primeiro ministro israelense Ehud Olmert, junto ao secretário geral do trabalhismo, Amir Peretz, anunciaram que não dialogariam com o novo parlamento e governo palestinos. O ministro da Defesa, Shaul Mofaz, advertiu que Israel seguiria com a política de assassinatos seletivos.

Ainda assim, a crise política em Israel se manifestou: “Israel deve ser duro com a nova autoridade palestina depois da vitória do movimento radical Hamas”, disse o ex-primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu; também disse que a saída de Israel dos territórios palestinos fora um sinal de debilidade e que a vitória do Hamas era um grande retrocesso para a paz. As fissuras não aparecem só à direita. A postura oficial de Israel era de não dialogar com um governo integrado por membros do Hamas.

Numa reação coordenada para pressionar o Hamas, o Quarteto de Madri lançou um comunicado em que fez exigências: “Uma solução de dois Estados para o conflito requer que todos os participantes do processo democrático renunciem à violência, aceitem o direito que Israel tem de existir, e se desarmem”. Em nossas latitudes, um Tratado Mercosul-Israel foi negociado em sigilo desde dezembro de 2005, quando se firmou em Montevidéu um “acordo marco”. A importância comercial do acordo era bem relativa, se comparada com a sua importância política. O acordo não respondia a nenhum interesse comercial dos países do Mercosul. As exportações totais de seus integrantes a Israel atingiam apenas 330 milhões de dólares em 2003 (perfazendo só 0,2% das exportações do bloco regional). Israel ocupava o quadragésimo terceiro lugar como destino das exportações dos países do Mercosul. O “Tratado”, portanto, não tinha nada de comercial, sendo inteiramente político.

O revide israelense à vitória do Hamas começou a ser preparado de imediato, na Cisjordânia: “O primeiro-ministro Olmert disse que pretendia pôr em prática um plano unilateral de separação dos palestinos na Cisjordânia, pelo qual Israel manteria sob seu controle a parte oriental (árabe) de Jerusalém, os grandes blocos das colônias judaicas perto da atual fronteira israelense e o Vale do Jordão, na fronteira com a Jordânia”.20 Essa política visava dar uma resposta à mobilização conjunta judeu-palestina contra o muro de divisão da Cisjordânia.21

Desde janeiro de 2006, a reação de Israel ao novo governo eleito palestino foi estender as suas operações militares na Faixa de Gaza e, finalmente, provocar, após seis meses de violência contínua, uma reação palestina: uma operação contra um posto militar israelense na fronteira sudeste da Faixa de Gaza. Uma ação militar de um grupo guerrilheiro palestino contra uma unidade militar do exército israelense foi respondida com um massacre geral da população palestina. Contra o sequestro de um só soldado, as forças israelenses na Cisjordânia sequestraram 65 líderes do Hamas, entre os quais oito ministros de governo e 21 deputados. Ministros, deputados e outros dirigentes optaram pela clandestinidade. A ação dos grupos guerrilheiros (os Comitês de Resistência Popular, o Jihad, braço armado do Hamas, e o Exército Islâmico) obedeceu a objetivos precisos. As organizações palestinas exigiram que Israel libertasse todas as mulheres e menores de idades palestinos presos no país, mas o governo israelense rejeitou essa proposta. Ao todo, nove mil palestinos estavam detidos em prisões israelenses, dentre eles 95 mulheres e 313 menores de idade.

Israel lançou uma ofensiva que visou destruir as bases da existência da nação palestina. Na madrugada do dia 28 de junho, a menos de dez meses de sua “retirada unilateral”, Israel lançou um brutal ataque militar com bombardeios e mísseis contra a Faixa de Gaza. A operação, conhecida como “Chuva de Verão”, cercou por terra, ar e mar o território palestino autônomo de Gaza, com cerca de 5.000 soldados e 100 tanques. A ofensiva militar foi um ataque contra toda a população palestina. Israel pretendeu depor o governo eleito pelo do Hamas.

O ministro do Interior de Israel disse à rádio pública israelense que “a mão de Israel vai chegar a Ismail Haniyeh”. Investidas aéreas, bombardeios, lançamento de mísseis a partir de helicópteros, disparos de artilharia, bombas sonoras à noite para aterrorizar a população, foram usados. Como “infraestruturas terroristas”, os bombardeios destruíram três pontes, a Universidade de Gaza, a central elétrica que alimentava 75% da população, sem contar com numerosas casas e rodovias destruídas com a passagem dos tanques. O presidente da ANP, Mahmoud Abbas, classificou a incursão israelense nos territórios palestinos como “crime contra a humanidade”.

O premiê palestino, Ismail Haniyeh, disse que as ações em Gaza faziam parte de um “plano premeditado” para derrubar o governo do Hamas. Jamal Abu Samhadana, líder dos Comitês Populares de Resistência, foi morto em um campo de treinamento de militantes. Foi a primeira vez que Israel matou uma autoridade indicada pelo governo do Hamas. Matando-o enviaram uma mensagem: todos os membros do governo, do primeiro-ministro a funcionários subalternos, eram alvos potenciais de assassinatos.

O ataque vinha sendo preparado antes do seu pretexto formal, com a morte mais de 60 palestinos, incluindo mulheres e crianças. O ataque foi precedido por uma operação de chantagem e isolamento do governo palestino. O cerco imposto pelo Ocidente ao governo do Hamas levou a uma situação dramática na Cisjordânia e em Gaza. Milhares de pessoas não dispunham de dinheiro, alimentos, remédios e gasolina. Os hospitais suspenderam os tratamentos que não fossem urgentes. Estas sanções também provocaram tensões internas entre o Fatah e o Hamas.

A ajuda do mundo árabe e muçulmano (70 milhões de dólares da Liga Árabe, 50 milhões prometidos por Catar, 20 milhões pela Arábia Saudita, 50 milhões ou 100 milhões do Irã e 50 milhões da Líbia) não se concretizava, a ANP não tinha acesso ao dinheiro, pois os bancos estavam sob pressão, particularmente dos EUA, para não transferi-lo ao governo palestino. A União Europeia e os EUA impuseram três condições ao governo do Hamas: denunciar a violência; reconhecer o Estado de Israel; aceitar os acordos já assinados entre Israel e os palestinos. Ao governo israelense não foi formulada nenhuma exigência. A mensagem era clara: ou o Hamas capitulava completamente e reconhecia Israel, ou não governaria os territórios palestinos.

A 5 de julho de 2006 tropas israelenses se instalaram no norte de Gaza e bombardearam o Ministério do Interior palestino. Ao mesmo mantiveram fechada a passagem fronteiriça de Erez, provocando o isolamento de quase um milhão e meio de palestinos, sem luz elétrica. As tropas israelenses destruíram a infraestrutura civil, pontes e a principal usina geradora de energia, e com a colaboração da polícia egípcia deixaram a população impedida de sair da Faixa de Gaza.

Helicópteros sobrevoaram a residência do presidente sírio Bashar al-Assad em Damasco, a quem Israel acusava de dar proteção ao dirigente político do Hamas, Khaled Mesha, exilado na Síria. O governo israelense ordenou o sequestro de um terço dos ministros do governo da Autoridade Palestina, entre eles o vice-primeiro-ministro, o ministro de Finanças e o ministro do Trabalho, além de 30 membros parlamentares e funcionários, lançando um ataque com mísseis contra o escritório do primeiro ministro Ismael Haniyeh. Em Israel, uma pequena minoria de pacifistas se mobilizou repudiando estes ataques.

A política reformista, impulsionada pelos EUA para salvar sua aventura bélica no Oriente Médio, em vez de resolver, tornava mais agudas suas contradições. Nesse contexto, Israel preparou e levou adiante uma nova invasão do Líbano, em junho-julho de 2006, para ocupar o país pelo tempo que considerasse necessário, até transformá-lo num estado-tampão, ou num protetorado, carente de qualquer independência política real. Esse objetivo foi traçado muito antes dos acontecimentos que foram usados como pretextos para os ataques contra a Faixa de Gaza e a invasão do sul do Líbano.

A ação militar israelense não tinha caráter de autodefesa: iniciara uma série de ataques com vistas a uma guerra ofensiva. Foi essa ofensiva israelense, combatida com escassos meios pelo Hamas, a que desencadeou a nova guerra ao Líbano. O bloqueio econômico imposto em janeiro de 2006 foi avançando para um bloqueio militar em grande escala de Gaza. Desde que Israel se retirara do Líbano, em 2000, Hezbollah tinha evitado confrontar o exército israelense no território de Israel. O momento escolhido pelos guerrilheiros do Hezbollah para o primeiro ataque contra Israel indicava que sua intenção era reduzir a pressão sobre os palestinos abrindo uma nova frente de batalha. Sua ação foi o primeiro ato militar no mundo árabe de solidariedade com os palestinos em muitos anos.

Paralelamente, a situação dos palestinos se agravava dia a dia por causa da ocupação militar israelense. A cidade de Hebron, na Cisjordânia, a 35 quilômetros ao sul de Jerusalém, se caracterizava historicamente por sua mescla muçulmana-judia; as autoridades israelenses expulsaram parte dos 150 mil palestinos que moravam nela, além de apoiar o desenvolvimento das colônias judias.

Cerca de 650 colonos ultradireitistas judeus ocuparam partes da velha cidade, destruíram as vizinhanças palestinas e a infraestrutura econômica. Hebron passou a estar dividida em duas partes, chamadas H1 e H2, por uma linha que separava os assentamentos do resto da cidade. A maioria dos palestinos não podia se aproximar da zona H2. O que era uma zona residencial e de negócios, se converteu em um povoado fantasma, habitado apenas por colonos protegidos por soldados e policiais israelenses.

Mas a invasão israelense do Líbano fracassou. A derrota de Israel no Líbano fortaleceu as opções políticas mais à direita em Israel. Avigdor Lieberman, chefe do partido de extrema direita Yisrael Beytenu voltou ao governo como vice-primeiro-ministro. Defensor de ideias como a transferência dos árabes israelenses para a Cisjordânia, o vice premiê representava um setor fascista da burguesia israelense, apelando para a militarização do país e para um sistema político abertamente racista. Mas a resistência palestina continuou, assim como a crise de Israel, cujo primeiro-ministro ofereceu a retirada dos territórios palestinos ainda ocupados e o desmantelamento de assentamentos israelenses. O Hamas criticou a proposta, que não estabelecia prazos nem fronteiras para soberania palestina. Na medida em que a guerra do Líbano levou a uma derrota político-militar de Israel, também precipitou uma crise política interna.

A iniciativa saudita para a formação de um governo de unidade palestina Hamas-Fatah entrou em colapso, principalmente devido à intransigência israelense. As forças do Fatah foram derrotadas e expulsas de Gaza pelos milicianos do Hamas. As contradições políticas e os limites do movimento nacional palestino, a corrupção da direção laica da Autoridade Palestina, o papel das forças de “segurança” palestinas, cooptadas por Israel e a CIA, empurraram as massas palestinas a buscar o tipo de alternativa proposta pelo Islã político e o Hamas.

Com a separação dos “cantões” entre a área controlada pelo Hamas e a Cisjordânia sob o controle de Abbas/Fatah, a “solução de dois estados” implodiu, assim como o “Plano B” elaborado pelos chanceleres dos EUA e Israel. O governo de Israel aprovou a transferência de 2.000 rifles automáticos, 20.000 pentes de balas e dois milhões de balas do Egito às forças de segurança do Fatah, na Faixa de Gaza, para combater o Hamas. As armas para o Fatah buscaram criar um processo de guerra civil na Palestina.

Nesse quadro estancado e caracterizado por uma crescente instabilidade política quase uma década transcorreu, quando foi lançada a “Operação Margem Protetora”, campanha militar lançada por Israel contra a Faixa de Gaza, iniciada em julho de 2014. Em 26 de agosto, os combates se encerraram depois de sete semanas de lutas. O conflito teve início logo após o sequestro e assassinato de três adolescentes israelenses em meados de junho de 2014.

Como parte da operação, militares israelenses mataram dez palestinos e prenderam entre 350 e 600, incluindo quase todos os líderes do Hamas na Cisjordânia. Em resposta ao sequestro dos israelenses, um jovem menino palestino, Muhamed Abu Khdeir, foi raptado e queimado vivo por extremistas judeus. Uma série de protestos eclodiram nos territórios palestinos e foguetes foram disparados contra o sul de Israel que, por sua vez, iniciou um bombardeio aéreo contra Gaza e, depois, uma invasão por terra; os combates se tornaram generalizados, matando centenas de pessoas (a maioria civis). Foi operação militar mais mortífera que ocorreu na região desde a Guerra de Gaza de 2008.

O Escritório das Nações Unidas estimou que 697 dos mortos eram civis, dos quais 256 eram mulheres ou crianças. No final de agosto (com sete semanas de combates), mais de 2.000 palestinos e 60 militares israelenses haviam morrido. Israel acusou Hamas de usar civis como escudos humanos; uma alegação negada pelo grupo palestino. A paz temporária foi aproveitada pela população civil em Gaza, que correu para os centros de ajuda internacional atrás de mantimentos.

Em 26 de agosto de 2014, representantes palestinos e israelenses acertaram um cessar-fogo, com mediação do Egito. A liderança do Hamas afirmou que “a resistência se saiu vitoriosa”, apesar do alto número de mortos e dos danos a infraestrutura local: foi estimado que seriam precisos mais de US$ 6 bilhões de dólares para reconstruir essa infraestrutura. Os habitantes de Gaza denunciaram não só a repressão israelense, mas também a colaboração da Autoridade Palestina.Isto influiu na ruptura do governo de unidade entre Hamas e Al Fatah.

Na última década, a situação do povo palestino piorou consideravelmente, até chegar a uma situação desesperante, em que estava comprometida sua própria sobrevivência. A necessidade de empreender uma iniciativa militar tornou-se imperativa face à expectativa de uma nova Intifada, à crescente expansão colonialista de Israel, ao confisco de casas e propriedades, e à declarada intenção israelense de anexar a Cisjordânia, expulsar toda a população desse território e acabar com qualquer possibilidade de governo palestino independente. Uma interpretação da operação militar do Hamas lhe atribui o objetivo de bloquear o reconhecimento do Estado de Israel pela monarquia saudita, como fizeram outras monarquias árabes. Em Israel, uma parte da reserva militar abandonara seus treinamentos, em oposição ao governo clerical e direitista de Netanyahu.

Finalmente, num final de semana com sobreposição de feriados religiosos judaicos, o Hamas e outros grupos armados levaram a cabo uma operação militar relâmpago sem precedentes em torno de Gaza. Pela escala e complexidade, ela demonstrou grande planejamento e preparação. No entanto, passou completamente despercebida para o imenso aparelho de inteligência e segurança de Israel. Grupos de assalto de organizações palestinas cruzaram as linhas de segurança israelenses através de túneis, brechas em cercas e até usando veículos aéreos, e realizaram ataques a bases militares israelenses, vilas e cidades ao redor de Gaza num raio de até 30 quilômetros.

Além das centenas de mortes entre soldados e civis, os palestinos também capturaram militares e civis como reféns, transferidos para Gaza com a expectativa de trocá-los por prisioneiros palestinos. A crise suscitada em Israel foi intensa, e sua resposta com o bombardeamento de Gaza, mortífera. A via do apartheid e da expansão territorial permanente era denunciada por boa parte da opinião pública israelense, e também por boa parte da opinião judaica internacional, como uma ameaça existencial e como um apelo à guerra permanente no Oriente Médio, que se revela o único meio de subsistência do Estado sionista.

A política que visa superar esse ambiente hostil através de alianças com as monarquias e as burguesias árabes não é só uma faca de dois gumes: é uma aposta que põe o destino de Israel nas mãos de regimes árabes reacionários, cuja estabilidade já foi posta a dura prova nas “primaveras árabes”. Há já mais de uma década, a derrota e retirada do Líbano evidenciou nos limites do poder militar israelense. O novo massacre em curso contra Palestina pode obter resultados imediatos, principalmente adiando a grave crise política em Israel, mas não dará fim aos abalos políticos no Oriente Médio.

Junto com a guerra da Ucrânia, esse cenário anuncia o encaminhamento da crise mundial para um terreno cada vez mais bélico, no qual uma paz duradoura só poderá ser o produto de uma política anti-imperialista em escala internacional, que só pode ser proposta por um movimento independente dos trabalhadores e dos povos oprimidos do mundo todo. Os conflitos bélicos em curso têm alcance mundial e não toleram posições de neutralidade, pois neles se joga o futuro da humanidade, que hoje depende, em parte substantiva, da sorte e destino do povo palestino, os “condenados da terra” do século XXI.

Publicado originalmente no site A Terra é redonda.


Caminhos divergentes, de Judith Butler
A partir das ideias de Edward Said e de posições filosóficas judaicas, Butler articula uma crítica do sionismo político e suas práticas de violência estatal ilegítima, nacionalismo e racismo patrocinado pelo Estado. Além de Said, reflete sobre o pensamento de Levinas, Arendt, Primo Levi, Buber, Benjamin e Mahmoud Darwish para articular uma nova ética política, que transcenda a judaicidade exclusiva e dê conta dos ideais de convivência democrática radical, considerando os direitos dos despossuídos e a necessidade de coabitação plural.

Ideologia e propaganda na educação, de Nurit Peled-Elhanan
A professora de linguagem da educação investiga os recursos visuais e verbais utilizados em livros didáticos de Israel para representar a população palestina. Mobilizando o arcabouço teórico e metodológico da análise crítica do discurso e da análise multimodal, Nurit Peled-Elhanan detalhada os mecanismos pelos quais esses materiais escolares moldam um imaginário de marginalização: o discurso aparentemente científico e neutro é, em realidade, carregado de signos de violência, desprezo e intolerância que oculta a população palestina.

Cultura e política, de Edward W. Said
Edward Said imprime uma visão universalista em suas análises sobre a questão palestina, inserindo-a no conjunto das grandes lutas pelo reconhecimento de todos os povos a afirmar sua identidade e ter sua expressão política. Sua obra denuncia o racismo ocidentalista, que tenta se legitimar como visão hegemônica do mundo, opõe-se à criminalização da luta do povo palestino e de todos aqueles considerados fora dos padrões da chamada civilização ocidental.

A liberdade é uma luta constante, de Angela Davis
Esta ampla seleção de artigos traz reflexões sobre como as lutas históricas do movimento negro e do feminismo negro nos Estados Unidos e a luta contra o apartheid na África do Sul se relacionam com os movimentos atuais pelo abolicionismo prisional e com a luta anticolonial na Palestina. A obra da intelectual e ativista Angela Davis ensina também a pensar a nossa luta em relação a todos os “condenados da terra”, como escreveu Frantz Fanon.


Notas
1 Sherut haBitachon Haklali (“Serviço de Segurança Geral”, conhecido pela sigla Shabak); oficialmente, Agência de Segurança de Israel comumente referida como Shin Bet ou Shin Beth, é o serviço de segurança interna de Israel. Seu lema é “Magen Velo Yera’e” (“defender sem ser visto”, ou melhor, “o escudo invisível”). É uma das três principais organizações da “comunidade de inteligência de Israel”, ao lado da Aman (inteligência militar da FDI) e do Mossad (responsável pelo trabalho de inteligência e espionagem no exterior).
2 The Independent, Londres, 5 de dezembro de 2001.
3 Efraim Karsh. Islamic Imperialism: a History. Nova York, Yale University Press, 2005.
4 Meron Rapoport. Quitter Gaza pour mieux garder la Cisjordanie. Le Monde Diplomatique, Paris, agosto de 2005.
5 Israele, via alla barriera di Gerusalemme. Corriere della Sera, Milão, 11 de julho de 2005.
6 Hussein Agha e Robert Malley. El poder palestino, sin aliento. Le Monde Diplomatique, Buenos Aires, janeiro de 2006.
7 Craig S. Smith. Hamas “político” seguirá hostil a Israel. Folha de S. Paulo, 15 de janeiro de 2006.
8 Telma Luzzani. La redistribución del ingreso y la paz, grandes urgencias para el futuro israelí. Clarín, Buenos Aires, 15 de janeiro de 2006.
9 Michel Gawendo. Porta a porta, Israel inicia a saída de Gaza. Folha de S. Paulo, 14 de agosto de 2005.
10 O presidente dos EUA, Bush, também prometeu US$ 50 milhões aos palestinos para projetos de habitação e infraestruturas em Gaza. US$ 50 milhões para um milhão e meio de palestinos (pouco mais de 30 dólares per capita), e US$ 600 milhões para menos de nove mil colonos israelenses…
11 Folha de S. Paulo, 17 de agosto de 2005.
12 Espero que alguien mate a Sharon, Clarin, Buenos Aires, 19 de agosto de 2005.
13 Mustafa Barghouthi. O pesadelo de Sharon, Mundo Arabe, 8 de agosto de 2005.
14 Peter David. Hard going. In: The Economist, The World in 2006, Londres, janeiro de 2006.
15 Rami G. Khouri. Ocidente não entende a vitória do Hamas. Folha de S. Paulo, 29 de janeiro de 2006.
16 Oren Ben-Dor. A new hope? Hamas’s victory, Counterpunch, Nova York, 21 de janeiro de 2006.
17 James Glanz. Democracia liberta forças incômodas para os EUA. O Estado de S. Paulo / The New York Times, 5 de fevereiro de 2006.
18 Middle East Report, Londres, agosto 2005.
19 Stéphanie Le Bars e Gilles Paris. Entrée du Hamas au gouvernement? Le Monde, Paris, 20 de janeiro de 2006.
20 Olmert anuncia plano para anexar blocos de colônias na Cisjordânia. O Estado de S. Paulo, 8 de fevereiro de 2006.
21 Judíos y palestinos marchan unidos contra el muro que divide Cisjordânia. Clarin, Buenos Aires, 21 de janeiro de 2006.

***
Osvaldo Coggiola é professor titular de história contemporânea da Universidade de São Paulo. Nascido na Argentina, é autor, entre outros livros, de Teoria econômica marxista: uma introdução, e organizou a edição da Boitempo do Manifesto comunista de Karl Marx e Friedrich Engels. Colaborador da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, também tem textos publicados nos livros Curso Livre Marx-Engels, organizado por José Paulo Netto e István Mészáros e os desafios do tempo histórico, organizado por Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile. 

5 Trackbacks / Pingbacks

  1. Guerra Israel-Hamas ou mais do mesmo: linques e etc. em Outubro 2023 – Insustentável Leveza 2
  2. Além do luto: sobre amar e ficar com aqueles que morrem em nossos braços – Blog da Boitempo
  3. O genocídio palestino e palavras que matam – Blog da Boitempo
  4. A manipulação do antissemitismo como instrumento de censura às críticas a Israel – Blog da Boitempo
  5. Al Nakba, uma tragédia sem fim – Blog da Boitempo

Deixe um comentário