Sorria, você morreu!

Deivison Faustino e Walter Lippold comentam a utilização de inteligência artificial e deep fake na nova propaganda da Volkswagen com Elis Regina e Maria Rita.

IMAGEM GERADA EM I.A.

Por Deivison Faustino e Walter Lippold

Ainda que se vague pelo Vale da Estranheza, das Sombras e da Morte, os necromantes cibernéticos agora podem conjurar um rosto falecido! A propaganda da Volkswagen penetrou nas memórias afetivas das pessoas, que choraram ao vislumbrar o semblante, gerado por deep fake, de Elis Regina. Sua filha Maria Rita, dirige a nova Kombi elétrica, ID.Buzz, mercadoria oferecida dentre sorrisos, música, amamentação, flashes de memórias afetivas artificiais que se conectam com as nossas próprias, vertendo lágrimas. A técnica consiste em usar redes neurais artificiais para projetar outra face no rosto de uma atriz. Muito conhecida no submundo da pornografia infantil e das fake news, a tecnologia tem aparecido em filmes e, agora, chegou ao mundo da publicidade. O encontro artificial entre filha e mãe emocionou e foi elogiado e, como sempre, exaltou-se a tecnologia como uma grande benesse.

A canção “Como nossos pais” – na qual Belchior lamentava que, apesar de todo o esforço de uma geração em negar a estética e os comportamentos da geração anterior, os fundamentos que regem a vida permaneceriam os mesmos – foi totalmente ressignificada em prol das ideologias do status quo. O “novo” é deslocado do sentido revolucionário para a “inovação” e a “disrupção capitalista” que geram novas mercadorias. O novo é a mercadoria apresentada por uma artista morta, que sorri e atende aos comandos da programação.

O último refúgio da aura, segundo Benjamin em seu célebre A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, seria o rosto do ente falecido nos retratos do século XIX. A passagem do valor de culto para o valor de exposição seria a história da obra de arte, e a aura teria origem nos objetos sagrados e na unicidade do original. Agora nos deparamos com um deep fake de uma pessoa morta, sorrindo e vendendo mercadorias: a mercadoria-mor do fordismo e do toyotismo, que é o automóvel. O deleite e o gozo de ver o objeto inanimado ganhando ânima sempre nos trouxe propagandas interessantes que provam a análise de Marx sobre o fetichismo de mercadoria.

Benjamin analisa, citando Pirandello, as diferenças entre atuar no palco do teatro e nos estúdios do cinema. A atuação no teatro é única, o corpo está ali, emite sons, movimenta-se e dramatiza com a ação do ator. Os primeiros atores e atrizes dos filmes sentiam sua corporeidade esvaziada, pois a chave da arte cinematográfica é a montagem. A própria linha narrativa do filme é montada a posteriori. Agora atingimos um grau mais profundo, sofisticado e violento de emulação da aura.

Caímos não no vale, mas no abismo da estranheza! A hipótese de Masahiro Mori – do Uncanny Valley – afirma que robôs, androides e animações muito similares a humanos causam repulsa em nós viventes, pois evocam instintivamente visões de morte e cadáver.

A distinção de quem é replicante e de quem é humano no filme Blade Runner (1982) se dava em um interrogatório que analisava as respostas e a pupila do entrevistado. Vê-se no filme que o replicante tinha dificuldade em falar sobre seu passado e não tinha memórias de infância bem estruturadas – em alguns modelos, elas haviam sido artificialmente inseridas em seu hardware. Na cena icônica final, há a fala do replicante Roy, que depois de salvar o detetive neonoir cyberpunk Deckard diz: “Eu vi coisas em que vocês, humanos, nem acreditariam. Naves de ataque pegando fogo na constelação de Órion. Vi Raios-C resplandecendo no escuro perto do portão de Tannhäuser. Todos esses momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer…”. Parece que o androide se fez humano na frente do caçador.

Na série The Mandalorian, da franquia Star Wars, hoje gerenciada pela Disney, tivemos o deep fake do personagem Luke Skywalker. Primeira aparição de um CGI pouco sofisticado e posteriormente um deep fake impressionante que aqueceu o coração dos fãs. Apesar de certo estranhamento, não gerou repulsa nem mal-estar no público. O deep fake de Elis Regina na propaganda da Volkswagen gera asco em alguns e choro de emoção em outros. A empresa, uma necrocorporação de origem nazista, também esteve atrelada à ditadura civil-militar brasileira. Neuromancer, o livro cyberpunk de William Gibson, publicado em 1984, insere a possibilidade, na ficção científica, da transmigração de almas do corpo biológico para a forma de memória RAM em um servidor do ciberespaço. Essa samsara cibernética que copia a mente e a transfere para o hardware parece menos tétrica que a conjuração de um rosto falecido para animá-lo a vender mercadorias. Sorria, você morreu!



Quais são os impactos das tecnologias em nossa sociedade? Que consequências enfrentamos com a concentração das principais ferramentas tecnológicas que regem a vida de milhões de pessoas no domínio de um punhado de empresas estadunidenses? De que maneira é possível relacionar algoritmos a racismo, misoginia e outras formas de violência e opressão?

Em Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanonianaDeivison Faustino e Walter Lippold entrelaçam tecnologia e ciências humanas, apresentando um debate provocador sobre diferentes assuntos de nossa era. Inteligência artificial, internet das coisas, soberania digital, racismo algorítmico, big data, indústrias 4.0 e 5.0, segurança digital, software livre e valor da informação são alguns dos temas abordados.

A obra se inicia com um debate histórico e conceitual sobre o dilema das redes e a atualidade do colonialismo para, em seguida, discutir as expressões “colonialismo digital” e “racismo algorítmico”. Ao fim, apresenta uma reflexão sobre os possíveis caminhos a seguir, partindo das encruzilhadas teóricas e políticas entre o hacktivismo anticapitalista e o pensamento antirracista radical. Para discutir a relação dialética entre tecnologia, dominação e desigualdade e propor pautas fundamentais a movimentos sociais, os autores dispõem, ao longo da obra, da contribuição de intelectuais como Frantz Fanon, Karl Marx, Julian Assange, Shoshana Zuboff, Byung-Chul Han, Marcos Dantas, entre outros.

A edição conta, ainda, com a colaboração de referências no debate nacional: a apresentação é de Sergio Amadeu, especialista em software livre e inclusão digital no Brasil; e o texto de orelha é de Tarcízio Silva, pesquisador e um dos maiores nomes do hacktivismo brasileiro.

Veja o lançamento antecipado de Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana, com debate entre Deivison Faustino, Karina Menezes, Sergio Amadeu, Tarcízio Silva e Walter Lippold, mediação de Marcela Magalhães:

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Deivison Faustino é doutor em sociologia e professor do programa de pós-graduação em serviço social e políticas sociais da Universidade Federal de São Paulo. É integrante do Instituto Amma Psique e Negritude e pesquisador do Núcleo Reflexos de Palmares, onde pesquisa, entre outros temas voltados à relação entre capitalismo e racismo, o colonialismo digital. É autor de diversos livros e artigos sobre Frantz Fanon e pensamento antirracista. Pela Boitempo, publicou Colonialismo digital, com Walter Lippold.

Walter Lippold é doutor em história e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal Fluminense e do Núcleo Reflexos de Palmares da Universidade Federal de São Paulo. É professor do Curso Uniafro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador de colonialismo digital, história da tecnologia, cibercultura, hacktivismo, da obra de Frantz Fanon e da história da Argélia. Pela Boitempo, publicou Colonialismo digital, com Deivison Faustino.

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