Importante pesquisa sobre a formação da Coluna Prestes

A historiadora Anita Prestes comenta o livro “Militares e Maragatos em armas: as revoltas tenentistas de 1924 e a formação da Coluna Prestes no Rio Grande do Sul”, de Amilcar Guidolim Vitor.

Prestes (sentado, o quarto da direita para a esquerda) e parte de seus comandados, exilados. Gaiba, Bolívia, 1927.

 Por Anita Leocadia Prestes

Publicado recentemente, o livro Militares e Maragatos em armas: as revoltas tenentistas de 1924 e a formação da Coluna Prestes no Rio Grande do Sul, parte da tese de doutorado, defendida na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria/RS), de autoria de Amilcar Guidolim Vitor (VITOR, 2022), historiador e professor na cidade de Santo Ângelo (RS), é revelador da realização de importante pesquisa sobre a história da formação da Coluna Prestes.

Vitor pesquisou fontes até então inéditas nos numerosos escritos existentes sobre a Coluna Prestes. Nas palavras do próprio autor:

os documentos existentes no arquivo da Justiça Federal do Rio Grande do Sul, relacionados aos inquéritos policiais desenvolvidos pela Chefatura de Polícia do Estado, na década de 1920, acerca da investigação dos fatos sobre os levantes rebeldes ocorridos em outubro de 1924, principalmente nos quartéis de Santo Ângelo, São Luiz Gonzaga, São Borja e Uruguaiana, além de suas consequências, como a própria formação da Coluna Prestes, em território rio-grandense (VITOR, 2022, p. 17).

Entre diversas outras fontes consultadas pelo autor do livro, destacam-se também as reportagens publicadas na época pelo jornal Correio do Povo, um dos mais importantes do Rio Grande do Sul; matérias que, segundo Vitor, contribuíram desde então decisivamente para a formação das representações sociais até hoje existentes sobre o movimento dos “tenentes”, apoiado pelos libertadores (os “maragatos”) liderados por Joaquim Francisco de Assis Brasil.   

Fruto de análise cuidadosa e minuciosa dos fatos ocorridos no Noroeste do estado do Rio Grande do Sul, nos meses de outubro a dezembro de 1924, a tese mais importante da obra de Vitor é a reafirmação da formação da Coluna Prestes nessa região rio-grandense (VITOR, 2022, p.13, 16, 121-122, 171, 203, 224-225). Ainda em 1989, eu mostrara a mesma coisa em minha pesquisa de doutorado, publicada em livro intitulado A Coluna Prestes (PRESTES, 1990), reeditado duas vezes. Tese contestada na maioria dos escritos existentes sobre o tema, nos quais se insiste que supostamente a formação da Coluna tivera lugar no Oeste do Paraná, após a junção das colunas provenientes de São Paulo e do Rio Grande do Sul. É um expediente destinado a subestimar a importância da Coluna Prestes, formada no Rio Grande do Sul, assim como do papel de Luiz Carlos Prestes, sua principal liderança.

Na pesquisa para minha tese, pude revelar que a Coluna Prestes, ao chegar ao Paraná, em abril de 1925, encontrou as tropas advindas de São Paulo, dirigidas pelo general Isidoro Dias Lopes, vitimadas pela séria derrota para as forças legalistas sofrida em Catanduvas (PR), o que é reconhecido por Vitor. Em suas palavras:

[…] entre os paulistas, falava-se em emigrar para a Argentina, o que desagradou a Luiz Carlos Prestes, alegando que não poderia pedir isso aos seus homens depois de tudo que haviam suportado desde o Rio Grande do Sul, com o objetivo de manter o movimento. Sua proposta era sair daquela região e, somente em última hipótese, pensar em emigrar. Poucos paulistas mostraram-se dispostos a prosseguir na luta, mas a posição de Prestes acabou prevalecendo, com a ideia de manter a revolução e atrair as forças inimigas para o interior do país. Assim, o comando das tropas revolucionárias foi reorganizado, com a criação da 1ª Divisão Revolucionária, formada pelas Brigadas “São Paulo” e “Rio Grande” (VITOR, p. 205-206).

Como mostrei em meu trabalho, os rebeldes paulistas no Paraná foram incorporados à Coluna Prestes (PRESTES, 1990, p.166-181), que chegara vitoriosa após atravessar o Noroeste do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e parte do Paraná.  

Coincidindo com as afirmações por mim sempre repetidas, a pesquisa realizada por Vitor o levou a constatar que, a partir de 1930, a aproximação e depois o ingresso de Luiz Carlos Prestes no PCB (então denominado Partido Comunista do Brasil) o tornou “alvo constante do anticomunismo, o que interferiu na maneira como a Coluna Prestes foi representada, sendo, em algumas situações, erroneamente associada à trajetória de Prestes no PCB” (VITOR, 2022, p. 17).

No livro de Vitor é destacada a participação de civis – os “maragatos” ou “libertadores” liderados pelo caudilho rio-grandense Joaquim Francisco de Assis Brasil – na formação da Coluna Prestes, contestando outra tese consagrada na historiografia, segundo a qual o tenentismo teria sido um movimento exclusivamente militar. Reafirma-se assim o resultado de pesquisas por mim anteriormente realizadas em que mostrei a estreita articulação existente, desde o início, entre os “tenentes” e os civis oposicionistas, dentre os quais estavam os “maragatos” rio-grandenses (PRESTES, 1994). Afirma Vitor:

No inquérito policial da Chefatura de Polícia do Estado, os relatórios do chefe de Polícia e dos subchefes deu ampla atenção à participação dos civis da Aliança Libertadora nos levantes tenentistas de 1924. Como órgão vinculado ao governo do Estado, procurou constantemente deslegitimar os motivos da adesão às revoltas e representar os adeptos do movimento como desordeiros que não aceitavam as derrotas políticas que sofriam […] (VITOR, 2022, p. 224).

A partir da pesquisa realizada nos numerosos documentos consultados, Vitor nega um suposto banditismo dos participantes da Coluna Prestes (VITOR, 2022, p. 113, 225, 228), como está registrado em alguns escritos existentes sobre essa Marcha. É o caso das reportagens de Eliane Brum publicadas no jornal Zero Hora e editadas posteriormente em livro (BRUM, 1994), matérias que foram por mim contestadas em artigo publicado à época nesse jornal. Vitor cita o livro de Leandro Narloch (NARLOCH, 2011), no qual, no episódio que trata sobre a Coluna Prestes, esse autor e o escritor Paulo Schmidt representam a Coluna “como um movimento baderneiro que apenas prejudicou a população das localidades por onde passou” (VITOR, 2022, p. 54-55).

Contrastando com as acusações feitas aos participantes da Coluna Prestes, a pesquisa de Vitor revela a importância da “prática das requisições dos artigos indispensáveis à manutenção da tropa, feitas junto aos comerciantes e fazendeiros por onde os rebeldes passavam”. Essas requisições “eram assinadas pelo próprio Luiz Carlos Prestes ou por algum outro comandante de destacamento, assumindo eles o compromisso de indenizar os interessados pelos bens requisitados através do êxito do movimento que estavam empreendendo” (VITOR, 2022, p. 112).

O autor dessa pesquisa verificou que algumas das requisições, “especialmente em São Luiz Gonzaga, onde os rebeldes permaneceram por sessenta dias”, constam do inquérito da Chefatura de Polícia. Uma delas é reproduzida:

Requisição de animais e arreamentos.

Por ordem superior e atendendo exclusivamente as necessidades das forças revolucionárias, o governo militar desse município convida todo o possuidor de animais cavalares ou muares, bem como arreamentos de qualquer natureza a comunicarem a esse comando, dentro de 24 horas, o lugar em que se encontram os referidos animais e arreamentos e qual a melhor maneira de serem eles entregues. Este comando espera ser atendido pela população, o que lhe evitará desagradáveis inspeções a domicílio. Esta requisição é de caráter geral e sem exclusividade de espécie alguma. As informações sobre o número de animais e arreamentos, bem como do lugar em que se encontram podem também ser entregues ao governador civil do município, Sr. João Romero. Ficam sem efeito todos os passaportes concedidos até a presente data. São Luiz, 12 de novembro de 1924. Cap. Luiz Carlos Prestes, governador militar (VITOR, 2022, p. 112-113).

Vitor assinala que, “em um efetivo com aproximadamente 1500 homens, nem todos eles com uma disciplina militar de acatamento de ordens e hierarquia arraigada, tornava-se difícil exercer o controle e evitar que eventuais saques ou depredações ocorressem” (VITOR, 2022, p. 113), acrescentando:

Sem procurar relativizar situações de exceção e violação de direitos da população civil, tanto durante os levantes de 1924 quanto na marcha da Coluna Prestes, observei que essas situações não eram corroboradas pelo comando do movimento, o qual punia casos de insubordinação, abusos e práticas de violência contra as pessoas alheias à revolta, algo que é apontado até mesmo no inquérito (VITOR, 2022, p. 225).

Entre os numerosos depoimentos das testemunhas ouvidas no inquérito policial da Chefatura de Polícia do Estado – todas faziam parte de “uma estrutura social com significativa importância” tanto em Santo Ângelo quanto em São Luiz Gonzaga, Ijuí, Cruz Alta e Júlio de Castilhos –, não houve nenhum entre aqueles que se insurgiram aderindo ao levante, pois “nenhum foi preso ou testemunhou no caso” (VITOR, 2022, p. 139).

O depoimento do engenheiro de Santo Ângelo Alexandre Martins da Rosa é particularmente interessante, pois “dos mais completos” em todos os sentidos, inclusive “pelo fato de ter convivido de maneira muito próxima a Luiz Carlos Prestes, quando ele pediu demissão do Exército, nos meses que antecederam o levante, passando a trabalhar na firma em que Alexandre era gerente” (VITOR, 2022, p. 139). Segundo as declarações do engenheiro:

[Ele] tinha relações e amizade com o capitão Luiz Carlos Prestes, desde o ano de 1923, quando ele dirigia construções militares sob a fiscalização do capitão Prestes, tendo já nesses trabalhos verificado a independência de caráter, grande integridade moral, competência profissional e capacidade de trabalho do jovem oficial. […]

Ainda afirmou que, certa vez, […] o capitão Prestes manifestou grande desgosto pela desarmonia reinante no seio do Exército, adiantando, ainda, que se o engenheiro conseguisse uma colocação que lhe garantisse meios de continuar atendendo às despesas com sua mãe e irmãs, no Rio de Janeiro, deixaria o Exército para se afastar da atmosfera pouco promissora que reinava na instituição. […] (VITOR, 2022, p. 140)

Prestes dera parte de doente no Exército para participar mais ativamente da conspiração tenentista e nesse período passou a trabalhar para a firma concessionária de serviço de iluminação da vila de Santo Ângelo, da qual Alexandre era gerente e, em seu depoimento, confirma a participação de Prestes nas primeiras instalações de luz elétrica em Santo Ângelo (VITOR, 2022, p. 140). De acordo com o testemunho de Alexandre Martins da Rosa,

durante o tempo em que trabalharam juntos, o capitão Prestes revelou-se um auxiliar de grande mérito e jamais deixou transparecer qualquer conivência com movimentos sediciosos, pois trabalhava diariamente, desde muito cedo, até escurecer, e à noite, com muita assiduidade, frequentava sua casa, onde se conservava em palestra com ele e outros visitantes, até onze horas da noite, sem tratar, absolutamente, de movimentos revolucionários. (VITOR, 2022, p. 141)      

Ao comentar o depoimento do engenheiro Alexandre, Vitor destaca a “importância que Luiz Carlos Prestes teve no levante do 1°BF… [1º Batalhão Ferroviário] …, assim como sua disciplina para o trabalho e organização […]”, acrescentando:

Também, faz-se importante no depoimento a mensagem enviada por Prestes ao intendente de Santo Ângelo, através do engenheiro Alexandre Martins Rosa, expondo sua preocupação com a manutenção da ordem após a eclosão do movimento, evidenciando que o objetivo dos revolucionários não era prejudicar a população ou causar desordem na vila, algo que foi usado, frequentemente, como argumento para deslegitimar o movimento revolucionário e, posteriormente, a marcha da Coluna Prestes (VITOR, 2022 p. 142).

Na conclusão do livro, Vitor escreve que, através das fontes por ele consultadas, pôde perceber que

os levantes tenentistas de 1924 no Rio Grande do Sul, foram representados, desde o início de forma negativa. No jornal Correio do Povo, quem tomou a dianteira dessas representações foi o governo federal, valendo-se do Estado de Sítio e da Lei de Imprensa para impor seus interesses. Já no inquérito da Chefatura de Polícia Estadual, as representações negativas foram ainda mais contundentes, principalmente em função da adesão dos civis da Aliança Libertadora que queriam a deposição de Borges de Medeiros da presidência do Estado. […]

Quando a Coluna Prestes passou a percorrer o Brasil, essas representações negativas sobre o movimento foram ampliadas, especialmente pelos jornais ligados ao governo Artur Bernardes, como O Paíz. […] (VITOR, 2022, p.228).

Vitor reconhece, entretanto, que 

por outro lado, com o fim da marcha, em 1927, também surgiram representações positivas, que passaram a ver na Coluna e, especialmente, em Luiz Carlos Prestes representantes de uma alternativa ao modelo político considerado ultrapassado e representado pela política dos governadores. […] (VITOR, 2022, p.228).

Prestes chegou a ser cogitado por setores das oligarquias dissidentes como candidato à presidência da República, sendo assediado para apoiar a Aliança Liberal e a candidatura de Getúlio Vargas às eleições de 1930.

Entretanto, ao romper com seus companheiros da Coluna e ao ingressar no PCB, Prestes passou a ser visto como um radical e, especialmente a partir do fracasso dos levantes de 1935, que o levaram à prisão, também passou a ser o principal alvo do anticomunismo no Brasil, implicando-lhe representações negativas reproduzidas até os dias de hoje. (VITOR, 2022, p.228).

Um aspecto original do trabalho de pesquisa de Vitor com os inquéritos policiais é o registrado, por exemplo, num relato do intendente de Ijuí, Antônio Soares de Barros, conhecido como coronel Dico, em 21 de abril de 1925, no qual chama a atenção “o uso da expressão ‘Coluna Prestes’ como forma de se referir às forças revolucionárias, evidenciando que, já naquele período, a liderança e a capacidade militar de Luiz Carlos Prestes era reconhecida até mesmo pelas forças legalistas” (VITOR, 2022 p. 132).

Da mesma forma, o autor registra que o sargento Sabino Pinho da Cunha, de São Luiz Gonzaga, “foi o primeiro depoente a utilizar a expressão ‘Coluna Prestes’ para se referir ao movimento revolucionário, indicando que, já naquele período, tal movimento passou a ser conhecido desta maneira” (VITOR, 2022, p. 194).

Manoel Joaquim da Trindade, também de São Luiz Gonzaga, “é outro depoente a se referir ao movimento revolucionário utilizando a expressão ‘Coluna Prestes’” (VITOR, 2022, p. 197). A seguir, Vitor assinala que

não se trata de desmerecer ou diminuir a atuação de Miguel Costa ou das outras lideranças no movimento, mas o fato é que, naquele período, o prestígio de Prestes, não apenas como líder militar, mas também como liderança política, foi forjado e reconhecido, por seus companheiros de luta e, mais tarde, pela imprensa do centro do país, que preferiu batizar aquela epopeia de Coluna Prestes, ao invés de Coluna Miguel-Costa Prestes, mesmo que esta última denominação não seja estranha nos documentos ou na historiografia (VITOR, 2022, p. 207).

Ao concluir esta resenha, cabe recomendar a leitura dessa nova e importante pesquisa sobre a formação da Coluna Prestes.

Referências bibliográficas
BRUM, Eliane. Coluna Prestes: o avesso da lenda. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994.
NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. São Paulo: Leya, 2011.
PRESTES, Anita Leocadia. A Coluna Prestes. São Paulo: Brasiliense, 1990.
PRESTES, Anita Leocadia. Os militares e a Reação Republicana: as origens do tenentismo. Petrópolis (RJ): Vozes, 1994.
VITOR, Amilcar Guidolim. Militares e Maragatos em armas: as revoltas tenentistas de 1924 e a formação da Coluna Prestes no Rio Grande do Sul. Itapiranga (SC): Schreiben, 2022.


Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, de Anita Leocadia Prestes


A participação de Luiz Carlos Prestes no movimento tenentista – especialmente na Marcha, entre 1924 e 1927, da Coluna que levou seu nome – e no levante antifascista contra Getúlio Vargas inscreveu o nome desse revolucionário singular na trajetória político-social do país. Baseada na metodologia marxista, a obra de Anita Prestes se diferencia das demais biografias já publicadas pela diversidade de documentos originais aos quais a autora teve acesso ao longo de mais de trinta anos de pesquisa. Para além do acervo pessoal, a historiadora realizou vasta investigação em arquivos nacionais e estrangeiros, podendo, assim, consultar fontes primárias fundamentais.

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Anita Leocadia Benario Prestes, nascida em 27 de novembro de 1936 na prisão de mulheres da rua Barminstrasse, em Berlim, na Alemanha Nazista, é uma historiadora brasileira, filha dos militantes comunistas Olga Benario Prestes e Luiz Carlos Prestes. É doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada de UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Autora da ambiciosa biografia política Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015), do livro Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017) e de Viver é tomar partido: memórias (Boitempo, 2019), em que narra sua extraordinária trajetória de vida, militância e pensamento. Assina também o artigo “Luiz Carlos Prestes e a luta pela democratização da vida nacional após a anistia de 1979” publicado no livro Ditadura: o que resta da transição? (Boitempo, 2014), organizado por Milton Pinheiro.

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