O genocídio enquanto forma de governo

A pandemia serviu para pôr em prática políticas de controle legal, institucional e biológico dos corpos. Os artefatos dela são, notadamente, os mecanismos de exceção e a subjetivação produtora dos corpos matáveis. Se sua matriz são os modelos coloniais e patriarcais de sociabilidade, seu maior operador tem sido o governo militarizado de direita.

Por Edson Teles

Recentemente, o ministro Raul Araújo do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou a retirada de um vídeo no qual o candidato Lula chama o atual presidente de “genocida”. A decisão foi motivada por uma representação do Partido Liberal (PL) na qual seus advogados consideram que a acusação se enquadra no crime de “discurso de ódio”.

Passarei ao largo de comentar a decisão do TSE, que em nossa frágil democracia liberal se tornou um sustentáculo do processo eleitoral. Haja visto o evento de posse de seu novo presidente, o ministro Alexandre de Moraes, que discursou abertamente em choque com as falácias da direita contra o sistema eleitoral. Com seu pronunciamento, diretamente da sala de justiça, tornou-se uma espécie de herói do Estado de Direito.

Dessa forma, me dedicarei nesse texto ao fato imperioso de tratarmos publicamente do crime de genocídio potencializado no atual governo.

Experimentamos no Brasil, com centenas de milhares de óbitos devido à pandemia, o aprofundamento no genocídio de setores da população brasileira, notadamente das pessoas negras, mas também dos povos indígenas, das mulheres, das pessoas trans, entre outros corpos hierarquicamente inferiores em nossa sociedade. Ainda acompanhamos uma gestão do país através da qual as graves desigualdades sociais, a violência de Estado, o descaso das elites e dos proprietários e o conservadorismo emergiram como nunca o fizeram nas últimas décadas.

Essas caracterizações apontam para um fator comum da realidade brasileira: vivemos em um país no qual não é permitido viver o luto. Vive-se a morte. Não somente a física, do corpo individual, mas a morte social, coletiva, aquela que atinge as diversas expressões culturais, as sociabilidades alternativas, os corpos diferentes de um suposto sujeito universal. O enfrentamento via luto poderia abrir espaços para a produção de desejos que não sejam apenas sintomas de perda. A ausência do luto é a ausência dos corpos, do reconhecimento do sofrimento de quem perdeu um ente querido, da reparação aos danos coletivos, da narrativa dos acontecimentos.

A perda tem de ser substituída por outra perda. E o processo de luto não chega a termo, ele é atropelado por outra morte cujo sofrimento se torna maior do que a dor do luto. Não se consegue esquecer. O que poderia ser de caráter público, um modo coletivo de lidar com o impacto da pandemia, efetivou-se como um problema de foro privado, da família, da pessoa mais próxima. O governo considerou a pandemia, por muitos meses, como uma simples “gripezinha”.

As graves violações de direitos normalmente recaem, enquanto problema e também em sua solução, sobre as vítimas, seus familiares e descendentes. O governo “lava as mãos” e dá crédito à tragédia, como se essa não tivesse causas e formas de ser evitada. Essa é nossa história.

Colapso do sistema funerário, sepultamento de corpos em massa e esgotamento da estrutura de saúde pública expuseram a hierarquização da vida e a subjetivação da morte como forma de controle das populações. O primeiro ano da pandemia foi delimitado por dois eventos trágicos. 2019 se encerrou com as nove vítimas fatais da ação criminosa da Polícia Militar no território de Paraisópolis, na cidade de São Paulo. Em fuga diante de uma intervenção violenta e repressiva a um baile funk, jovens entre 14 e 23 anos tiveram suas vidas sufocadas e roubadas. No outro extremo temporal, 2020 se encerrou com a asfixia da vida que habitava no corpo negro de João Alberto em ação violenta da segurança privada da rede multinacional do supermercado Carrefour. Entre as duas tragédias previsíveis e suas repetições cotidianas conta-se os milhares de óbitos por covid-19.

Se o Brasil é um país sem luto, também é fato que os processos disparados pela pandemia estão produzindo novos arranjos para lidar com o que se apresenta como o desconhecido nos diversos territórios e articulações das existências coletivas. Assim, manter o país sem acesso ao luto se transformou em uma tecnologia de governo, fazendo com que os segmentos vulnerabilizados pela atuação criminosa do Estado não tenham acesso à experimentação de sua própria existência.1

Para se ter uma ideia, logo no início dos óbitos por covid-19, o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Saúde, através de duas portarias conjuntas, definiram expedientes excepcionais para o sepultamento. Foram autorizados o sepultamento e a cremação (depois houve recuo quanto a esse último) de corpos não identificados, notadamente preenchidos pelos sujeitos em vulnerabilidade, como a população em situação de rua ou os corpos dos povos indígenas sob ataque de grandes corporações e latifúndios do agronegócio. E se estabeleceu a dispensa de necropsia em mortes de pessoas sob a custódia do Estado, como obriga a legislação ordinária, quando se busca prevenir, investigar e identificar responsabilidades por práticas de violação de direitos. Autorizou-se o desaparecimento do histórico da morte, por exemplo, das pessoas com privação de liberdade no sistema penitenciário e nas instituições para adolescentes em conflito com a lei, assim como, de modo geral, as histórias das vítimas de violência do Estado.

Uma eficaz prática de subnotificação de óbitos se irradiou. Se a covid-19 exigiu formas de classificação, manejo e informação sobre os corpos contaminados, determinadas formas políticas de descarte da vida, sob a justificativa de sua preservação, receberam um investimento nunca visto. As estratégias de monitoramento da contaminação mostram que os números oficiais (reunidos pela grande mídia, pois o Ministério da Saúde não o faz ou, ao menos, não divulga) não correspondem à realidade. No máximo, funcionam como indício de algo que o Estado se recusa a dar conhecimento.

Quando se fala em corpo contaminado, esteja vivo ou morto, se diz sobre uma série de procedimentos, instituições, bancos de dados, testagens e laboratórios, serviços de saúde e funerário. Trata-se de um fenômeno populacional inserido em uma série de políticas, públicas ou privadas, que envolvem ambientes, interesses econômicos e políticos, corporações globais e nacionais (vejam o caso da disputa pela fabricação, comercialização e distribuição das vacinas).

Levando em consideração as diferenças socioeconômicas, somadas à escassez que compõe os vários territórios periféricos, poderíamos dizer que a subnotificação se configura como uma política de morte. Trata-se daquele número enorme (do ponto de vista gráfico e contábil) que aparece ao final de cada edição do Jornal Nacional (Rede Globo), que aponta para os milhões de contaminados, mas certamente registra apenas parte do fenômeno. Assim, o que se notifica no país é a produção incessante e assustadora de corpos matáveis, a qual se pode lamentar, mas não enlutar.

Falta de água, de insumos para a saúde sanitária, ausência de saneamento básico, sem serviço de ambulâncias ou equipamentos institucionais de cuidados. A precariedade conecta-se com a falta de informação (ou, por vezes, com a fake news da “gripezinha”, que convida à exposição ao vírus minimizando seus efeitos). Sabemos que foram os corpos periféricos os mais atingidos pela exposição ao vírus e à infecção e aos óbitos.

Periférico não é somente o que se encontra territorialmente às margens das grandes cidades, mas também se refere aos corpos relegados às políticas de morte. É o caso, por exemplo, dos povos indígenas, segmento especialmente vulnerável diante do vírus. Eles sofrem ainda com o ataque do governo federal aos regramentos de proteção ao meio ambiente e a destruição ou desmobilização criminosas dos órgãos destinados à proteção dos direitos dos povos indígenas.

O que acontece com a atual pandemia é que a tradicional estrutura de morte se alastra para todos, em temporalidade muito rápida, e coloca o genocídio, que já era prática corrente, em potência ainda maior.

Em países como o Brasil, onde esta desigualdade se encontra em grau gravíssimo e com estruturas e estratégias históricas de manutenção desse quadro, a presença do Estado se torna uma das necessidades prementes de proteção da vida. E esse é um dilema. Precisamos do SUS e do acesso universal a um sistema de saúde público para enfrentar as pandemias. Mas, teremos que nos ver com um Estado cada vez mais violento e com maiores mecanismos de controle social.

Quando refletimos sobre um país genocida, falamos sobre a gestão dos corpos, o controle da circulação, os investimentos na manutenção dos serviços e de certa economia que produz os novos arranjos fundamentados nas velhas práticas sociais. A pandemia serviu para pôr em prática políticas de controle legal, institucional e biológico dos corpos. Os artefatos dela são, notadamente, os mecanismos de exceção e a subjetivação produtora dos corpos matáveis. Se sua matriz são os modelos coloniais e patriarcais de sociabilidade, seu maior operador tem sido o governo militarizado de direita.

Pelo direito à vida, à existência e à história.

Nota
1 Os argumentos deste texto e outros sobre o genocídio durante a pandemia podem ser acessados no livro A pandemia e a gestão das mortes e dos mortos. TELES, Edson e CALAZANS, Marília (orgs.). São Paulo: CAAF/Unifesp, 2021.


O que resta da ditadura: a exceção brasileira

Bem lembrada na frase que serve de epígrafe ao livro, a importância do passado no processo histórico que determinará o porvir de uma nação é justamente o que torna fundamental esta obra. Organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle, O que resta da ditadura reúne uma série de ensaios que esquadrinham o legado deixado pelo regime militar na estrutura jurídica, nas práticas políticas, na literatura, na violência institucionalizada e em outras esferas da vida social brasileira. O livro reúne textos de escritores e intelectuais como Maria Rita Kehl, Jaime Ginzburg, Paulo Arantes, Ricardo Lísias, Tales Ab’Sáber, Janaína de Almeida Teles e Jeanne Marie Gagnebin, que buscam analisar o que permanece de mais perverso da ditadura no país hoje.

***
Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Também assina um dos artigos do dossiê dedicado à Comissão da Verdade do n.19 da revista Margem Esquerda.

Deixe um comentário