O marxismo e a controvérsia sobre a China: nota sobre o debate entre Elias Jabbour e Maurilio Botelho

Jones Manoel comenta o debate de lançamento da última edição da revista Margem Esquerda, destacando as controvérsias e desafios colocados pelo fenômeno chinês.

Por Jones Manoel.

A revista Margem Esquerda promoveu recentemente o interessante debate “China: horizonte socialista ou fim de linha capitalista?”, com participação de Elias Jabbour e Maurilio Botelho, e mediação de Bruna Della Torre. Considero a discussão representativa de alguns problemas e potencialidades do marxismo contemporâneo, ao mesmo tempo em que reflete questões importantes na discussão sobre a China. Por isso, dedico minha coluna deste mês a comentar esse encontro.

Antes de entrar propriamente no conteúdo do debate, faço uma advertência inicial. Embora conheça em profundidade a produção dos dois debatedores, farei referência apenas ao que foi apresentado na mesa. Busco, assim, tentar me colocar na posição de um espectador que não conhece os dois interlocutores e foi apresentado às suas reflexões apenas através desse encontro transmitido na TV Boitempo. Dito isso, vamos às considerações.

A intervenção de Maurilio Botelho

Em relação à intervenção do professor Maurilio Botelho, gostaria muito de entender melhor o que ele defende quando afirma que a China não tem um crescimento real, produtivo, mas uma acumulação baseada em dívida e crédito. Durante toda a fala, Botelho repetiu incessantemente um argumento sobre o nível de endividamento como sinal de crise ou sobre as dificuldades na continuidade do processo de acumulação. A impressão que ficou, para quem acompanhou o debate, é a de que Botelho comunga do dogma liberal e ortodoxo de que dívida e investimento impulsionado via crédito seriam sinais, necessariamente, de crises futuras, bolhas, desequilíbrios etc.

Note bem, no debate econômico, em grandes linhas e até vulgarizando o tema, podemos diferenciar duas correntes em torno da questão do dinheiro:  os heterodoxos (um vasto campo que abarca desde marxistas até keynesianos, desenvolvimentistas e afins) e os ortodoxos (liberais, neoclássicos, neoliberais etc.). Para estes últimos, partindo da aceitação da Lei de Say e da Teoria Quantitativa da Moeda, em poucas palavras, a economia nacional é pensada como uma economia doméstica: compreendem que primeiro se poupa para depois investir, que é necessário sempre um equilíbrio entre receitas e gastos e que a dívida é algo sempre ruim, sintoma de desequilíbrios.

Para um neoliberal como Friedrich Hayek – ou mesmo comentaristas liberais de economia como Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardenberg – o investimento decorre de uma poupança prévia, formada pela parcimônia de um visionário empreendedor que, como milhares de outros, percebe os sinais de mercado e a partir dessas informações, arrisca fazendo um investimento. O mercado, pela própria dinâmica da concorrência, elimina os investimentos ruins e privilegia os bons. Assim, a economia cresce, temos “desenvolvimento”, mais “oportunidades” – para eles que partem do pressuposto da neutralidade da moeda, intervenções de política monetária e fiscal, no fim das contas geram apenas inflação no longo prazo. Além disso, uma vez aceita a Lei de Say, a economia tenderia ao pleno emprego, sendo dispensáveis e imprudentes interferências econômicas estatais.

Nessa lógica, não cabe ao Estado interferir em variáveis macroeconômicas como a taxa de juros (que seria um preço natural de mercado da mercadoria dinheiro), mas garantir regras estáveis, previsibilidade e segurança jurídica. Com um bom “ambiente de investimentos”, sem excessivo gasto público, sem interferências na taxa de juros, sem planejamento estatal, sem políticas setoriais (como política industrial), sem “explosão” da dívida, tudo corre bem. A derivação lógica dessa argumentação é sempre condenar o gasto público, políticas de planejamento e dívida pública. Isso leva a um mito, um “falso socialmente necessário” do liberalismo: toda dívida é ruim – não importa sua forma ou perfil – e quando chegarmos a um número mágico na relação dívida/PIB, o país vai quebrar.

No mundo real, é claro, as coisas não funcionam assim. Não existe capitalismo sem crédito, mecanismos de alavancagem no investimento, coordenação estatal, e existem formas diversas de dívida pública. No último ponto, um exemplo: a Argentina se endividar em dólar no auge do liberalismo não é o mesmo que o perfil e a forma da dívida da China. A China não tem conta de capitais liberalizada, o crédito é majoritariamente estatal, possui o maior nível de reservas internacionais do mundo, o sistema financeiro é ultra regulado e seus maiores níveis de endividamento são em moeda nacional.

Nenhum país quebra por conta de dívida em sua própria moeda, não existe “falta de dinheiro”. A Argentina, que não emite o dólar, pode sim quebrar e ficar sem dólar (como aconteceu no começo do século). Dívida em moeda nacional, isto é, dívida interna, não é o mesmo que dívida externa (em moeda que o país não emite) – e na gestão e papel da dívida uma série de variáveis estruturais, como o controle do crédito e nível de regulação e forma do sistema financeiro, devem ser considerados.

O professor Botelho, em nenhum momento de suas intervenções, detalha se o tal alarmante endividamento chinês seria interno ou externo, nível de reserva de dólar, forma de regulação do mercado financeiro, gestão da conta de capitais, mecanismos de controle macroeconômico, papel dos bancos públicos, instrumentos de planificação etc. A impressão que fica é a de uma abordagem ortodoxa e liberal sobre dívida, crédito e teoria do desenvolvimento capitalista (ainda que esse debate seja entrelaçado com falas sobre capital fictício e referências a Marx).

Botelho poderia afirmar, é claro, que sou um reformista keynesiano que acredita ser possível controlar as categorias do capital a partir de regulação estatal. Tudo certo. No entanto, nesse tipo de lógica, poderíamos dormir tranquilos e aplaudir Paulo Guedes dolarizar a economia brasileira, acabar com qualquer regulamentação do fluxo de capitais, privatizar todos os bancos públicos e fazer do Banco Central um ente privado já que, ao fim e ao cabo, tudo daria no mesmo e o capital seria incontrolável?

O segundo aspecto que me chamou atenção foram as falas desdenhosas sobre um “socialismo estatal”, “estatização soviética” etc. É ponto pacífico que estatização não significa o mesmo que socialização. Mas o inverso não é verdadeiro. Não é possível dizer que estatização não significa nada, já que “tudo” permanece “igual” e só é modificada a condição jurídica.

Quem defende esse radicalismo de cátedra, por coerência, deve argumentar que é irrelevante se a Petrobras é privatizada ou não, afinal, não passaria de uma simples “mudança jurídica” e o mais-valor dos trabalhadores continuaria a ser retirado. Deve dizer o mesmo do Banco do Brasil, Caixa, Eletrobrás, Correios etc. Indo mais fundo, deve-se dizer para os trabalhadores brasileiros que as privatizações da Era FHC não alteraram substancialmente suas vidas, mudando apenas o estatuto jurídico da propriedade onde são explorados. Ou dizer para os trabalhadores da antiga União Soviética, aqueles que sofreram uma redução de dez anos na expectativa de vida durante os anos de 1990, que nada mudou em suas vidas/trabalhos, que ocorreu apenas uma mudança jurídica nas relações de propriedade e que a forma-valor e os padrões de produção continuaram os mesmos.

Adensando o argumento e fazendo uma saudável provocação, vamos imaginar que estamos numa fábrica do Vietnã em 1930. Segundo os escritos de Ho Chi Minh, o que encontraríamos? Trabalhadores locais sem direitos, sem salário, sem poder organizar legalmente sindicatos, sofrendo preconceito racial, sujeitos a castigos físicos e a mortes ao bel-prazer do proprietário francês. Agora saltemos para o ano de 1970. O que veríamos numa fábrica do mesmo Vietnã? Trabalhadores com direitos, salário, organização sindical legal, sem castigos físicos, sem proprietários com o direito de matá-los, enfraquecimento do preconceito racial, algum nível de participação na gestão e na definição do regime de trabalho, e a fábrica como um espaço de sociabilidade e dignidade pessoal.

Um certo marxismo, contudo, olha para as duas situações e diz: tanto em 1930 quanto em 1970, tínhamos formas fordistas e tayloristas de produção, logo, nada mudou. Só mudou o estatuto jurídico da propriedade (antes privado e hoje estatal). Aliado a isso, me parece claro que uma fábrica gerida pelo imperialismo numa situação de colonização e com a produção voltada aos interesses de acumulação da metrópole e uma fábrica dirigida por um poder político revolucionário e anticolonial usada para garantir casas e hospitais para o povo trabalhador – coisas triviais, sem dúvida – não têm a mesma função, papel e dinâmica estrutural num país.

Mas se estatização não é o mesmo que socialização, o que é? Ora, depende entre outras coisas, sob qual projeto político acontece a estatização. Alguém acredita que uma estatização durante a Era Vargas tem o mesmo significado que uma estatização durante a Revolução Russa de 1917? Comentários simplistas e rápidos dizendo que socialização e socialismo não são o mesmo que estatização, com a boa intenção de combater o economicismo e versões do “socialismo jurídico”, acabam caindo em outro economicismo ao desconsiderar as relações sociais e de poder político inscritas nas dinâmicas de trabalho e produção, tomando relações de produção como sinônimo de técnica produtiva e linha de montagem.

Por último, mas não menos importante, o professor Botelho demonstra se valer de um procedimento comum quando o assunto é China: selecionar apenas os fatos que cabem em sua narrativa. Brinco que para cada projeto político existe uma China para chamar de sua. É incrível como comunistas, ciristas, socialdemocratas, desenvolvimentistas, socialdesenvolvimentistas, neoliberais, pós-keynesianos, monetaristas e até alguns “socialistas democráticos” olham para China e dizem que o país é um exemplo do acerto de suas teses e de seu projeto político. Com esse nível tão amplo de reivindicações alguém, ou todos, estão total ou parcialmente errados. Vejamos três dados básicos sobre a China que não comparecem na exposição de Botelho e que poderiam atrapalhar sua abordagem.

A partir dos anos de 1990, o Congresso dos trabalhadores, órgão de gestão operária e democracia nos locais de trabalho, sofreu um grande abalo e foi abandonado em várias regiões do grande país asiático. Para muitos, o fim do Congresso dos trabalhadores em várias fábricas e seu quase desaparecimento no setor privado da economia era mais uma das provas da restauração do capitalismo. Contudo, nos últimos anos, esse instituto vive um “renascimento” na China e se expande no setor privado da economia, sendo também cada dia mais forte no setor público. Um artigo essencial de Ian Goodrum, traduzido e publicado na Revista Opera, busca sintetizar os possíveis múltiplos significados desse renascimento

Por fim, as tentativas da China de reviver os SWRCs [sistema de congresso dos trabalhadores] provavelmente refletem um consenso sobreposto e um misto de motivações e objetivos que são tanto ideológicos quanto pragmáticos e tanto públicos quanto voltados para o próprio interesse. Porém, parte dessa mistura pode ser um desejo genuíno de empoderar os trabalhadores por meio dos SWRCs e seus mecanismos de apoio do Partido-Estado, enquanto a China avança para a próxima fase do socialismo com características chinesas. Essa aspiração é frequentemente proclamada e, muitas vezes, contraditada pela realidade; mas ele tem prosseguimento dentro do Partido Comunista. As recentes medidas de “gestão democrática” podem representar uma vitória ou uma concessão para aqueles no Partido que almejam restaurar o que consideram um lado salutar do legado de Mao – os compromissos igualitários e pró-trabalhadores que foram desviados durante as primeiras décadas de liberalização econômica. Seja real ou simbólico, o ressurgimento dos SWRCs pode ser parte de um esforço para aumentar a legitimidade popular do regime, honrando uma ideologia pró-trabalhadores que muitos cidadãos e membros do Partido compartilham.

Esse “renascimento” de vários órgãos de organização da classe da era maoísta não fica restrito ao chão da fábrica e empresa. Os comitês de bairro também crescem, como há anos não se via na China, e têm apoio e estímulo do Partido, Estado e indústria cultural de maneira mais geral. Vários analistas apontam como a auto-organização popular a partir de comitês de bairro, combinada à política centralizada e planejada do Estado-Partido, foi fundamental no combate à pandemia da covid-19. Cito, mais uma vez, uma ótima matéria publicada na Revista Opera. Nela, Vijay Prashad, Du Xiaojun e Weyhan Zhu afirmam o seguinte:

Uma parte importante – e subnotificada – da resposta ao vírus estava na ação pública que define a sociedade chinesa. Na década de 1950, as organizações civis urbanas – ou juweihui – desenvolveram-se para que os residentes dos bairros organizassem sua segurança e ajuda mútuas. Em Wuhan, à medida que o bloqueio se desenvolvia, os membros dos comitês de bairro foram de porta em porta para verificar as temperaturas, entregar comida (principalmente para os idosos) e fornecer suprimentos médicos. Em outras partes da China, os comitês de bairro estabelecem pontos de verificação de temperatura na entrada dos bairros para monitorar as pessoas que entram e saem; isso era saúde pública básica de maneira descentralizada. Em 9 de março, 53 pessoas que trabalhavam nesses comitês perderam a vida, 49 delas eram membros do Partido Comunista. Os 90 milhões de membros do Partido Comunista e as 4,6 milhões de organizações partidárias de base ajudaram a moldar a ação pública em todas as 650.000 comunidades urbanas e rurais da China. Trabalhadores médicos que eram membros do partido viajaram para Wuhan para fazer parte da resposta médica da linha de frente. Outros membros do partido trabalharam em seus comitês de bairro ou desenvolveram novas plataformas para responder ao vírus. A descentralização definiu as respostas criativas. Na vila de Tianxinqiao, cidade de Tiaoma, distrito de Yuhua, Changsha, província de Hunan, o locutor da vila Yang Zhiqiang usou a “potente voz” de 26 alto-falantes para instar os moradores a não fazerem visitas de ano novo e não jantarem juntos.

Por último, mas não menos importante, além de uma forte campanha para universalizar o sindicalismo e os comitês do Partido Comunista em todas as empresas do país – com foco nas empresas privadas que tinham menor índice de comitês do partido instaladas –, o Governo chinês decidiu que, no conselho de governança de toda empresa da China, o comitê do partido terá participação e poder de veto. Na prática, um dos elementos centrais da propriedade privada dos meios de produção, a liberdade do capitalista decidir seus investimentos e os rumos da empresa, foi relativizada e a depender do setor ou companhia, já começa a ser negada:

Prerrogativa das novas políticas para o setor privado, o documento publicado pelo Comitê Central também prevê o fortalecimento dos comitês partidários dentro da direção das empresas. Deliberação presente desde 2002 na Constituição do PCCh, que afirma que todas as organizações chinesas públicas e privadas com mais de três membros devem contar internamente com uma célula partidária, esses comitês, segundo números de 2017, se faziam presentes na gestão de cerca de 70% das 1,86 milhão de empresas privadas instaladas no país. Por meio desse instrumento, Pequim quer monitorar o cumprimento de suas metas e políticas por parte dessas empresas, opinando sobre se as decisões de cada firma estão de acordo com as ações governamentais. Desse modo, o governo chinês tem promovido a instalação de mais comitês partidários nos escritórios corporativos e feito com que desempenhem papéis mais atuantes na tomada de decisões de cada companhia. É o caso, citado pelo The Wall Street Journal, da SanYue Industrial Co., fabricante privada de eletrônicos da cidade de Dongguan, na província de Guangdong. Após 11 anos de existência, a companhia, que conta com cerca de 300 funcionários, montou seu primeiro comitê partidário em outubro de 2020, composto por cinco membros do Partido que já trabalhavam na fábrica. O executivo Huang Shengying apontou que o comitê foi formado por pressão do governo e precisa se reunir com frequência para “estudar o espírito” das políticas governamentais e os discursos de Xi: “Precisamos entender melhor a política para sobreviver. A construção de um partido, eles dizem, é boa para o desenvolvimento corporativo”. Células partidárias também foram criadas em outras firmas privadas de Dongguan. Um funcionário municipal, Zhao Zhijia, ressaltou que, com isso, essas companhias poderão integrar a construção do Partido em sua cultura corporativa interna: “É uma situação em que todos ganham”. Há casos em que o poder dos comitês partidários supera as deliberações da própria administração corporativa e dos conselhos empresariais. A célula da Baowu Steel Group, estatal que é a maior produtora de aço da China, realizou 55 reuniões com a administração da empresa nos últimos dois anos e analisou e revisou propostas apresentadas pela administração antes de encaminhá-las ao conselho de diretores. Uma das recomendações feitas à gestão da companhia foi que reservasse fundos para ajudar os pobres como parte dos esforços políticos do governo Xi pela erradicação da miséria na China.

O enquadramento no setor privado está intimamente relacionado com a busca pela melhora das condições de trabalho, direitos trabalhistas e salários. Elias Jabbour mencionou, durante o debate, que os salários na China crescem acima da produtividade há anos e reforçou que o gigante asiático já é referência em termos de proteção ao trabalho. Botelho não se atentou a esses dados na sua réplica. Nesse ponto, evoco um aspecto bastante relevante, relacionado ao comentado fenômeno da “uberização do trabalho” e a situação dos trabalhadores de aplicativo.

A China, um dos maiores mercados do mundo no setor, recentemente adotou novas regulamentações para os trabalhadores de aplicativos: “as empresas associadas à gig economy (“economia colaborativa”) deverão garantir a seus funcionários uma renda básica acima do salário-mínimo, seguridade social, direito à atividade sindical e um relaxamento nos prazos de entrega”. As novas diretrizes atingiram “em cheio a maior companhia de serviços de entrega do país, a Meituan. As regulações mais rígidas fizeram as ações da empresa despencar 18% na Bolsa de Hong Kong, perdendo 60 bilhões de dólares em seu valor de mercado por dois dias seguidos, segundo o Yahoo Finance”.

Nesse tipo de empresa, a programação do algoritmo é uma das principais formas de controle sobre a força de trabalho, os ritmos e a intensidade de exploração. Pois bem, as novas regulamentações do governo também incidem sobre a dinâmica de programação do algoritmo: “outra mudança está no algoritmo usado para avaliar o desempenho de cada entregador, que deve ser mais flexível e oferecer mais tempo para o funcionário concluir suas entregas”.

Concluindo o argumento, além da campanha de erradicação da pobreza extrema – comparada por Botelho, no mínimo de forma equivocada, à política dos governos petistas no Brasil –, a China vem buscando reduzir as desigualdades de renda e riqueza, além do custo de vida, fortalecendo serviços públicos e operando a criação de uma dinâmica de bem-estar social. O governo chinês vem atuando para garantir essas mudanças em três frentes principais: saúde, educação e habitação. Começando pela educação e seguindo o economista Michael Roberts: “o Conselho de Estado da China está impedindo as empresas com fins lucrativos de oferecerem aulas em disciplinas básicas do currículo e de receberem investimento estrangeiro”. A tendência é desmercantilizar o setor da educação e expandir as vagas públicas, com foco no ensino superior e técnico.

No âmbito da saúde, o país tem um seguro saúde quase universal, mas atuante principalmente no nível básico, deixando necessidades de média e alta complexidade ao mercado privado: “aproximadamente 95% da população da China é coberta por um programa de seguro público financiado principalmente por impostos sobre a folha de pagamento de funcionários e empregadores, com financiamento governamental mínimo. Isso supostamente financia a saúde universal, mas é muito básico”. O projeto atual do governo é ampliar a cobertura do sistema público para níveis de média e alta complexidade, melhorar infraestrutura, capacidade de atendimento e enquadrar o setor privado, reduzindo paulatinamente seu espaço para acumulação.

Por último, na área da habitação, muito comentada nos últimos tempos dada a questão da Evergrande, a diretriz governamental pode ser sintetizada nestas palavras de Michael Roberts: 

Portanto, o governo teve de responder ao desencanto público, ecoando as famosas palavras de Xi Jinping de que “Habitação é para viver e não para especular”. O vice premiê Han Zheng acrescentou que o setor não deve ser usado como uma ferramenta de curto prazo para estimular a economia. Os bancos foram instruídos a aumentar as taxas de hipotecas. Os governos locais estão sendo orientados a acelerar o desenvolvimento de moradias para aluguel subsidiadas pelo governo e foram instruídos a aumentar o escrutínio sobre tudo, desde o financiamento de incorporadores e os preços das casas recém-oferecidas até as transferências de títulos.

É possível dizer, num formalismo ahistórico bem problemático, que essas medidas não passariam de mero keynesianismo e Welfare State. Não me interessa aqui entrar nesses debates. A questão é bem simples: colocando em discussão esses e outros dados, a lógica de exposição do argumento de Botelho seria prejudicada. Não estou dizendo, com isso, que ele não sabe dessas informações e que precisaria se aprofundar no assunto. Suas afirmações, tomadas como um todo, parecem mais interessadas em provar que a China não é socialista, e que Elias Jabbour é um herege no marxismo, do que compreender a China. Observando somente a exposição de Botelho, somos levados a pensar que o trabalhador chinês está nas mesmas condições, ou ainda pior, que o trabalhador brasileiro. Não é esse o caso.

A intervenção de Elias Jabbour

Em relação aos argumentos de Elias Jabbour, destaco duas questões centrais. Primeiro, concordo com o debatedor sobre a necessidade de uma compreensão histórica e realista do que é socialismo. Se pensarmos no socialismo como um “reino celestial”, o fim de tudo – fim da família, do Estado, do direito, de toda divisão social do trabalho, do aparato público, do dinheiro, da religião, da nação e afins –, realmente, nunca  encontraríamos o socialismo no mundo. Tudo até hoje existente poderia ser classificado como “socialismo traído” ou “capitalismo de Estado”.

Jabbour busca combater uma compreensão messiânica e idealista de socialismo. O que é o socialismo? É uma fase de transição entre o capitalismo e o comunismo que começa com a tomada do poder político – criação de um Estado operário ou poder popular – e realiza uma série de transformações no sentido de socialização da riqueza socialmente produzida, cultura e poder político ao mesmo tempo em que desenvolve as forças produtivas e constrói um novo ser humano. Esse processo de transição pode retroceder ou avançar a depender da dinâmica da luta de classes no plano mundial e nacional e cada revolução, respondendo às condições concretas da formação econômico-social, tem tarefas e ritmos de realização diferenciados.

Concordo com o debatedor no problema, mas discordo de como ele apresenta a solução. Faltou, considerando apenas a mesa que estamos comentando, que Jabbour mostrasse que o poder político na China é um poder proletário. Esse é o ponto central. Explicitar que o país não é controlado pela burguesia nacional e nem subordinado ao imperialismo. Explicar a dinâmica do poder e relacionar de forma mais clara os temas por ele abordados, como o “governo baseado na razão”, “ciência como instrumento de governo”, “novas e mais avançadas formas de planificação”, capacidade de produzir “grandes obras” como “valor de uso” para coletividade como expressão de um poder político de novo tipo.

Ao mesmo tempo, nesse debate, Jabbour coloca pontos muito importantes, mas que escapam à compreensão do grande público por baixa proximidade com os temas abordados. Dois exemplos: a questão do nível de soberania monetária e a capacidade de executar grandes obras na China – e esse não é um detalhe. A China construiu, por exemplo, a maior malha ferroviária do mundo e de todos os tempos em poucos anos. Nunca antes na história mundial uma transformação tão radical na infraestrutura de um país (e um país de mais de um bilhão de habitantes) foi realizada como na China.

Sei a dimensão, o significado e a importância desse tema. Na exposição de Jabbour, nos comentários do chat e na réplica de Botelho, isso passou despercebido. Outro exemplo a ser destacado: o debatedor afirma que a China está planificando a transição do campo para cidade, realizando aquele que é o maior processo de urbanização planejada da história humana. Novamente, nunca antes na história mundial, vimos um nível de urbanização tão amplo, realizado em tão pouco tempo e sem expressões da questão social como a formação de favelas.

Jabbour tem uma explicação teórica global para compreender fenômenos como esses dois citados acima: o que chama de Nova Economia do Projetamento. Faltou uma explicação mais detalhada e sistemática da teoria do debatedor sobre porque essa Nova Economia do Projetamento é expressão de um “poder político de novo tipo” (termo que ele gosta de usar). Jabbour se limitou a dizer que é normal, no socialismo, termos dinheiro, mercado, grandes bancos e afins. Adentrando nessa dinâmica, repetiu que existem “contradições” no processo de transição ao socialismo. Esse foi um ponto fraco de sua abordagem.  

Por exemplo, me parece totalmente compreensível que quem observou o desmonte do sistema de saúde centrado na fábrica a partir do final dos anos de 1980 e enxergou ali uma das provas de restauração do capitalismo na China. Objetivamente, por anos, milhões de trabalhadores ficaram sem o básico de atendimento em saúde, até o governo Hu Jintao começar a mudar a situação. E em casos como esse, não existe “justificativa” de desenvolver as forças produtivas. Não acredito que seja convincente alguém falar que clínicas privadas e planos de saúde ajudaram a China a desenvolver ciência e tecnologia de ponta.

Aliado a isso, é fato conhecido como, durante os anos de 1990, o discurso oficial do Estado chinês centrou-se numa dimensão muito nacional e patriótica com claríssima marginalização do marxismo – recuperado nos últimos anos, durante o governo Xi. O argumento de Jabbour seria mais forte se tratasse de forma direta e específica sobre essas “contradições”. Costumo usar um termo operativo para pensar a política do Partido Comunista Chinês nos últimos anos que é “virada à esquerda”.

Jabbour não concorda com essa “virada à esquerda” para debater a política do Partido Comunista nos últimos anos, abordando a questão como “tarefas históricas” de cada geração. Essa noção corre o risco de cair numa teleologia, desconsiderando ou diminuindo o papel da luta de classes na China – o debatedor citou a luta operária e disse que a China é o país que tem mais greves no mundo, mas não desenvolveu melhor o papel dessas lutas na conformação da política estatal.

Em suma, buscando se defender da abordagem de Botelho ou combater uma visão do socialismo como “negação imediata de tudo que existe” – Botelho afirmou durante o debate que o socialismo corresponderia a “relações de produção não mediadas”, ideia que parece algo próximo do regime do Khmer Vermelho no Camboja, que aboliu imediatamente o dinheiro e impôs o escambo –, Jabbour não abordou com a devida explicação sua tese sobre a Nova Economia do Projetamento e a questão do poder – a questão central e definidora de todo debate sobre o socialismo.

Por fim, discordo muito de Jabbour em sua tese de um “Hegel banido do Ocidente” e de um suposto domínio do positivismo e do kantismo na esquerda brasileira. Botelho não pode ser enquadrado como positivista e muito menos kantista. Aliado a isso, essa tese tem dois problemas. O primeiro é demonstrá-la. Um pequeno exemplo: o “marxismo ocidental” é profundamente influenciado pela Escola de Frankfurt. E o que é a Teoria Crítica senão, dentre outras coisas, uma leitura hegeliana da obra de Marx?

Jabbour poderia argumentar que figuras da Teoria Crítica, como Adorno, têm uma certa interpretação de Hegel que leva a um debate idealista e fora da concretude da luta de classes. Mas para afirmar isso é preciso mostrar esse ponto na obra de Adorno – ou de outros conhecidos e prestigiados estudiosos da obra de Hegel no “Ocidente”, como Slavoj Žižek.

É possível argumentar que com o neoliberalismo, o pós-modernismo e a onda irracionalista dos últimos anos, a dialética foi banida do debate. Tenho acordo. Quando fiz graduação, por exemplo, tive contato majoritário com autores que tinham como uma das suas missões de vida atacar a categoria teórico-ontológica de totalidade e a compreensão materialista de processo histórico (tributária direta do legado hegeliano). Só que isso é uma meia explicação.

Em um debate materialista, temos que constatar não só a dominância de uma ideia e seus efeitos, mas explicar por que essa ideia e não outra e por que agora. Em poucas palavras, falar de um Hegel abandonado no “Ocidente” nas últimas décadas não explica a razão desse abandono – sob que condições políticas, econômicas, culturais, geopolíticas etc.

O segundo problema da explicação de Elias é que ela acaba transitando majoritariamente no campo intelectual. A dificuldade do marxismo ocidental de pensar concretamente as tarefas de uma revolução deriva muito mais do fato que a Europa Ocidental não vê uma revolução vitoriosa desde a grande Revolução Francesa ou uma situação de crise revolucionária há mais de 50 anos. Ilustro esse debate com o trecho de uma instigante e polêmica entrevista de Maurizio Lazzarato:

O pano de fundo teórico mais importante da revolução é o marxismo, que sem dúvidas conserva um ponto de vista eurocêntrico (e os marxismos do norte ainda o tem). Mas a revolução soviética já foi uma revolução “contra O Capital de Marx”, segundo as palavras de Gramsci. As revoluções asiáticas adaptaram, mudaram e inclusive enriqueceram o marxismo do qual haviam tomado algumas coisas. Temos que seguir estes exemplos, justamente porque acredito que a Europa não irá nos prover das categorias que precisamos (e acredito também que o pensamento dos anos 1960 e 1970 também não é muito útil para tais fins). Se a revolução pode voltar a tomar a iniciativa, deverá fazer isso em nível mundial (a última revolução vitoriosa no Ocidente foi a francesa de finais do século XVIII!). E a elaboração teórica não poderá a não ser seguir esta dimensão global. As revoluções do século XX são as primeiras que adquiriram uma dinâmica mundial, enquanto que o capital teve uma estratégia global desde o ano 1492, razão pela qual conta com muita experiência em torno de um possível conflito nesta escala. E, com efeito, deslocou o movimento dos anos 1960 e 1970, organizando uma ulterior e ainda mais profunda mundialização.

Lazzarato caminha no sentido de destacar que o centro da revolução, na segunda metade do século XX, esteve na periferia do sistema capitalista e foram nessas experiências concretas que o marxismo pôde viver um enriquecimento. Não me parece ser um detalhe que os mais criativos e interessantes marxistas que a Europa produziu nas últimas décadas – como Domenico Losurdo, István Mészáros, Alain Badiou, Jean Salem e tantos outros – tenham se conectado com as lutas revolucionárias na periferia do sistema. O caminho adotado por Lazzarato e por Domenico Losurdo me parece bem mais promissor que o assumido por Elias Jabbour nos últimos tempos.

Finalizo este escrito dizendo que o debate sobre a China será uma das grandes controvérsias deste século XXI. O país asiático, em toda sua complexidade, é um desafio para os comunistas de todo o mundo. Sem atalhos, sem caminhos fáceis, sem escolher uma “China para chamar de sua”, vamos ao debate, ao estudo e à pesquisa para fundamentar uma atuação política correta. Afinal, como disse um velho comunista italiano: quem erra na análise, erra na ação.


A última edição da Margem Esquerda, a revista da Boitempo, dedicou-se aos desafios colocados pela China contemporânea a partir de perspectivas diversas que buscam desvendar esse enigma em toda sua complexidade. O dossiê de capa foi organizado por João Quartim de Moraes e Fernando Garcia. Elias Jabbour, que assina o artigo “A China e as novas possibilidades ao socialismo científico” para o dossiê, publicará em breve China: o socialismo no século XXI, em coautoria com Alberto Gabriele.

Confira o debate de lançamento da Margem Esquerda 37, que colocou em confronto duas interpretações sobre o fenômeno chinês, e também o último vídeo de Jones Manoel comentando a análise de Domenico Losurdo sobre o país asiático, na TV Boitempo.

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Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Organizou pela Boitempo o livro Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI (2020), coletânea com artigos, transcrições de palestras e entrevistas de Domenico Losurdo. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

1 comentário em O marxismo e a controvérsia sobre a China: nota sobre o debate entre Elias Jabbour e Maurilio Botelho

  1. Gostei muito do debate, porém concordo com o Jones sobre Botelho a primeira impressão parecer um ortotoxo em questões economicas. Acho que num evento da CSB num 3º Congresso da CSB teve um debate do Jabour com um economista mais liberal de esquerda, foi bom, porque no geral quando se vê o Ellias falando de forma apaixonada parece que a China virou socialista. Enfim, o debate e a contradição são excelentes, ainda mais numa questão complexa como essa. A China se tornou um lugar que teorias simples não se encaixam, nem simplismos como democracia vs ditadura e capitalismo vs socialismo. O que eu penso são os fatos do país que tira 800 milhões da pobreza, eleva sua posição de 46 para 16 no índice de complexidade economia, cria uma soberania monetária, controla o mercado de capitais intervindo na economia de forma que nenhum país do mundo faz sem ter golpe. Enfim, na minha opnião depois da União Soviética e Cuba nunca tivemos um país tão próximo do socialismo. Minha dúvida é a seguinte, sabemos que a China não pode ainda ter um socialismo porque tem ainda muita presença privada e especulação, dado a questão imobiliaria que é um dos países com maior aluguel do mundo. Mas imaginando um prazo de 10 ano, eles poderiam avançar na complexidade economia e superar os EUA, como também em 30 anos não ser mais um país de renda média, aí sim veremos o que realmente é socialismo, porque num país rico não se pode ter pobreza. Essa é uma ótima métrica, porque um país que escapa da renda média tem um alto nível de renda per capita e pode sim ser um país que distribua renda, o caso clássico é de Alemanha, Noruega e Dinamarca. Se de fato a China estiver no top 10 de complexidade economia e um PIB per capita de 30 mil dólares poderemos avaliar se é socialismo ou não. E se realmente for, será um passo imenso no pensamento socialista mundial, penso eu.

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