Por que publicar uma nova biografia de Marx?

Michael Heinrich é autor de uma nova biografia em três volumes que promete ser o trabalho definitivo para compreender, de forma integrada, a vida e a obra de Karl Marx. Nesta entrevista, ele fala a seu editor sobre a importância do projeto e discute os desafios de se enfrentar essa tarefa monumental.

Michael Heinrich e Ivana Jinkings, diretora da Boitempo, folheiam um dos volumes da Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA) na sede da editora em São Paulo.

Entrevista especial com Michael Heinrich.

No dia 26 de outubro de 1868, Karl Marx escreveu a seu amigo Ludwig Kugelmann: “Por exemplo, pediram-me já há muito tempo, por escrito, por parte da Enciclopédia Meyer [Meyers Konversationslexikon], que lhes enviasse uma biografia. Eu não só não a fiz, mas nem sequer respondi à carta”. Marx provavelmente não teria aprovado o projeto apresentado aqui. Mas, afinal, também não se pode levar em conta todas as vontades… Nesta entrevista concedida ao seu editor alemão Paul Sandner, Michael Heinrich, autor de uma nova biografia em três volumes que promete ser o trabalho definitivo para compreender, de forma integrada, a vida e a obra de Karl Marx, fala sobre o que o levou a enfrentar esse desafio monumental. Realizada originalmente em alemão, a entrevista foi traduzida para o português por Claudio Cardinali, que também assina a tradução de Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna: biografia e desenvolvimento de sua obra, Vol. 1: 1818-1841 (Boitempo, 2018), de Michael Heinrich, primeiro volume da obra, que tem lançamento mundial agora em maio de 2018 e já está disponível nas principais livrarias do país. O segundo e o terceiro volumes ainda estão sendo escritos e serão publicados, respectivamente, em 2020 e 2022. Boa leitura!

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Até agora, você trabalhou sobretudo com a teoria marxiana. Em 1991 foi publicada sua tese de doutorado, a Ciência do Valor [Wissenschaft vom Wert], em 2004, sua Crítica da Economia Política – Uma Introdução, que é a mais difundida introdução aos três volumes do Capital em países germanófonos. Em 2008 e 2013, você publicou os dois volumes de Como ler O capital de Marx?, um comentário minucioso sobre os primeiros cinco capítulos d’O capital. Por que você está escrevendo agora uma biografia de Marx?

Como acontece muito na vida, o acaso tem seu papel, mas depois percebemos que a coisa toda não foi tão acidental assim. Acho que foi em 2006 que uma amiga minha me perguntou qual biografia de Marx eu poderia lhe recomendar. Eu até tinha algumas biografias do Marx em casa, mas nunca havia feito uma análise mais intensiva delas. [Franz] Mehring parecia-me consistente, mas já muito antigo, [Auguste] Cornu era extremamente detalhado, mas se limitava à juventude de Marx, [Francis] Wheen era uma leitura bastante agradável, mas na época eu ainda não havia percebido quanto desse livro era pura invenção. Eu não podia dizer claramente qual era a melhor biografia, e quanto mais procurava encontrá-la, mais percebia que as biografias existentes eram bastante insatisfatórias. Meu interesse foi despertado ali e eu comecei a pensar sobre as características que uma boa biografia deveria ter, sobre o que eu gostaria de encontrar em uma biografia de Marx, até que, por fim, comecei eu mesmo a conceber uma, mas ainda estava longe de ter certeza se, de fato, chegaria a escrevê-la um dia.

Bom, esse foi o impulso do acaso. Já o fato de eu ter prontamente aproveitado esse impulso foi menos acidental. Na verdade, eu trabalhei em todos os meus estudos sobre a teoria marxiana com o desenvolvimento dessa teoria. Eu havia percebido, já cedo, que era preciso considerar os textos individuais de Marx como passos de um desenvolvimento, que era preciso se perguntar quais eram as questões tratadas por ele, qual era o nível de conhecimento de Marx na época etc. Já em minha tese de conclusão no curso de Ciências Políticas, tratei do desenvolvimento do conceito de “Capital em geral” desde os Grundrisse até o Capital. Também na Ciência do Valor dou grande importância à questão do surgimento da crítica da economia política. E quando se analisa detalhadamente o desenvolvimento das teorias de um autor, acabamos nos deparando, mesmo que marginalmente, com acontecimentos biográficos: quando o autor estudou o quê; o que o motivou a tanto? Nesse sentido, não foi tão acidental que eu tenha reagido ao impulso de estudar a biografia de Marx.

Mas há uma grande diferença entre interessar-se por questões biográficas e escrever uma biografia, aprofundar-se na pesquisa biográfica. Já existe uma série de biografias de Marx, algumas delas inclusive bastante abrangentes. Por que mais uma agora, sua?

Há aproximadamente 30 biografias abrangentes de Marx. Não foi fácil tomar a decisão de escrever, eu mesmo, uma biografia do Marx. Anotei ideias, pensei em algumas concepções, mas, num primeiro momento, nada muito sério. Também não falei com muitas pessoas sobre a ideia, não queria anunciar algo que, possivelmente, não faria. Mas, de alguma forma, esse projeto de escrever uma biografia do Marx foi me envolvendo cada vez mais, e quanto mais eu estudava sobre o tema, mais eu percebia quão insuficientes eram as biografias disponíveis. Não só há uma grande quantidade de erros factuais, mas, com frequência, o material utilizado é escolhido a fim de fundamentar uma imagem de Marx já existente. Ao ler, tive muitas vezes a impressão de que a intenção ali não era investigar, mas meramente reafirmar. Nessa questão, tento uma aproximação mais franca, diferenciando com exatidão o que é comprovado por fontes do que é apenas uma hipótese, ora mais, ora menos plausível. Muitas biografias são, já desse ponto de vista, bastante questionáveis. Muitas vezes, especulações do autor são apresentadas como fatos, as fontes são analisadas de maneira acrítica, sendo que em alguns casos elas não são sequer citadas corretamente.

Mas a grande maioria das biografias de Marx são insuficientes por um outro motivo: vida e obra são geralmente dissociadas. Auguste Cornu e, em certa medida, também David McLellan tentaram proceder de maneira diferente, mas ambos os trabalhos foram publicados há mais de 40 anos, as informações conhecidas, tanto no que se refere às questões biográficas quanto aos manuscritos de Marx, já estão muito obsoletas. A tarefa de analisar igualmente vida e obra ainda está posta, e, devo dizer, acho justamente essa ligação particularmente interessante.

Mas o que são, exatamente, essas ligações entre vida e obra? Afinal, não se pode resolver problemas da teoria através de indícios da biografia.

Isso é verdade. Mas os motivos que levaram Marx, por exemplo, a considerar um determinado problema teórico especialmente urgente em um período específico, e menos importante em outro, têm a ver com a situação política na qual ele queria intervir com seus textos. Isso está relacionado às discussões em que ele estava inserido, que também levantaram novos questionamentos para a teoria. A correlação de vida e obra não está dada somente em pontos específicos. Ao observarmos a obra de Marx como um todo, vemos que ela basicamente representa uma série de projetos de larga escala que ele começou, interrompeu, desistiu, somente a fim de começar um outro projeto, um projeto diferente, que, igualmente, não seria finalizado, seguindo-se então o próximo projeto. Isso começa já com a tese de doutorado de Marx, de 1841, que deveria ser o início de uma série de estudos sobre as diversas escolas filosóficas pós-aristotélicas. Mas nunca ouve uma continuação, nem sequer a tese foi publicada pelo próprio Marx. Os famosos Manuscritos econômico-filosóficos deveriam ser uma crítica da economia nacional, a qual se seguiriam outras críticas, que Marx nunca escreveria; e assim vai. Esses diversos projetos interrompidos não são, de modo algum, expressão de uma flutuação aleatória. Também é possível perceber, nessas mudanças, avanços em seus estudos das condições econômicas e políticas. Mas os motivos das rupturas e dos recomeços não se encontram simplesmente no âmbito teórico, eles também estão relacionados com as circunstâncias da vida de Marx e com os diversos debates políticos em que ele estava envolvido. Em contrapartida, as novas perspectivas também influenciam diretamente o comportamento de Marx nesses debates. Quando determinadas estratégias políticas não mais lhe pareciam sensatas, era então preciso quebrar as velhas alianças e formar novas.

Mas as relações entre vida e obra não se dão somente no plano dos conflitos imediatos. Após a derrota da Revolução de 1848, Marx foi novamente para Paris, exilar-se; ele falava francês fluentemente, tinha muitos contatos lá, poderia trabalhar para diversos jornais, tendo, assim, um meio de subsistência. No entanto, o governo prussiano fez pressão para que ele fosse expulso de Paris. Só por isso Marx foi para Londres, ele nunca o teria feito “voluntariamente”: não falava inglês, tinha bem menos contatos que em Paris e não tinha chances de encontrar uma fonte de renda; lá, ele e sua família viveram, num primeiro momento, em grande miséria. Entretanto, Londres, o coração do capitalismo britânico, era na época o único lugar do mundo onde um livro como o Capital poderia ter sido escrito. Em Londres, não havia somente uma imprensa que discutia intensivamente temas econômicos e um parlamento que publicava importantes relatórios de estudos sobre questões econômicas e políticas, lá também se encontrava a maior biblioteca do mundo, um fator que era muito mais importante nessa época do que é hoje. Se Marx tivesse ficado em Paris, ele talvez até retornasse à Alemanha após alguns anos, e certamente teria escrito alguns livros importantes, mas provavelmente nada comparável ao Capital.

São histórias realmente interessantes. Mas não se corre também o risco de individualizar novamente a história, o risco de que a obra de Marx apareça exclusivamente como a obra de um grande gênio? Existe uma série de argumentos bastante críticos – muitos deles inspirados por ideias marxianas – em relação a essa interpretação de que a história seria a obra de “grandes homens”. O mesmo acontece no plano da história das ideias. Em vez de investigar os grandes gênios, Michel Foucault, por exemplo, direciona sua atenção à formação de discursos. Como você situa seu projeto nesses debates?

Investigar o papel de um indivíduo no processo histórico não significa automaticamente considerar a história de um ponto de vista individualizante. Karl Marx é, sem dúvida, um produto de seu tempo. Nesse sentido, dou grande importância, nessa biografia, não só às relações familiares, mas também às circunstâncias históricas e aos discursos que o influenciaram e com os quais ele se relacionava. E, para mim, isso tudo não é um mero contexto a partir do qual se pode identificar uns poucos impulsos aproveitados por Marx. O questionamento que sempre me acompanha é o seguinte: o que era realmente possível pensar naquela época, em que sentido Marx partilhava dessas ideias e até que ponto ele ia além delas? Em muitas biografias, a pessoa retratada é posta sozinha no centro das atenções, brilhando mais do que todo o resto. Isso pode rapidamente se tornar um culto à genialidade. Mas não necessariamente. Uma investigação biográfica não precisa estar em contradição com as ideias da história social ou daquilo que Foucault chama de “arqueologia do saber”. Muito pelo contrário: para mim, o estudo do papel de um único indivíduo só faz sentido dentro de um enquadramento teórico desse tipo. Assim, meu projeto se diferencia de muitas outras biografias de Marx também no plano da abordagem metodológica. E a fim de deixar isso claro, o primeiro volume contém um anexo tratando da “escrita biográfica”, onde eu exponho as consequências que tirei dos diversos debates literários e historiográficos acerca das possibilidades e limites das biografias.

Uma última pergunta. Como fica a questão da relevância política do seu projeto? Existe tal relevância ou se trata de um trabalho puramente científico?

Primeiramente, acho questionável a oposição entre “puramente científico” e “politicamente relevante”. Quando se trata de uma ciência que envolve a sociedade, há sempre uma relevância política, que às vezes é bem visível e às vezes meio escondida. No que tange à biografia de Marx visada por mim, vejo uma relevância política em vários níveis.

Em primeiro lugar, temos Marx em sua época, com suas questões políticas, que são – ao menos em parte – parecidas com algumas das questões atuais: qual a importância da liberdade de imprensa? Como uma esquerda radical se relaciona com instituições parlamentares? Como devem ser estruturadas as organizações de esquerda? Quais são as possíveis reivindicações políticas a curto e a longo prazo? Não quero dizer, com isso, que as respostas de Marx a essas perguntas foram sempre corretas, ou que se poderia, hoje, simplesmente copiar as estratégias de então. Mas, sem dúvida, é possível, a partir da análise detalhada dessas questões, desenvolver algumas ideias sobre como agir em determinadas situações, ou talvez como não agir.

Um outro nível – político – são as próprias biografias de Marx, que são intervenções no debate acerca de Marx e da teoria marxiana. No século XX, muitos críticos de Marx publicaram biografias com verdadeiras caricaturas dele, ao passo que alguns marxistas descreviam um Marx absolutamente sem defeitos, que sempre esteve no caminho certo e que foi sempre melhorando. As biografias mais recentes não chegam a ser tão rasas, mas também transmitem mensagens por vezes explicitamente políticas. Por exemplo, Jonathan Sperber afirma, em sua biografia de Marx publicada em 2013, que sua intenção era mostrar que Marx teria sido alguém completamente enraizado no século XIX e que não teria, atualmente, mais nada a nos dizer. Stedman Jones argumenta em uma direção parecida, mas não tão extrema, em sua biografia publicada em 2016. Como hipótese de pesquisa, tal afirmação é, sem dúvida, válida. Mas ambos os autores, para dizer o mínimo, não têm nenhum conhecimento profundo da crítica de Marx à economia política, o que não os impede de fazer juízos bastante abrangentes. Tais juízos, independentemente de quão fundamentados ou não, têm um papel importante no debate sobre Marx. Nesse sentido, acho realmente importante pôr algumas questões às claras, e mostrar que alguns juízos são, antes, preconceitos.

Além disso, uma biografia que trata igualmente vida e obra também pode ajudar na utilização e classificação dos textos de Marx. Através da Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA) [Obras Completas de Marx e Engels], que está sendo publicada desde 1975 e que ainda está longe de ser finalizada, temos à disposição, hoje, muito mais textos – também melhor editados – de Marx e Engels do que cada geração anterior. A MEGA deixou claro que os escritos de Marx e Engels já conhecidos há tempos são, na verdade, apenas a ponta de um gigantesco iceberg, cujo volume e estrutura ainda estamos lentamente identificando. Isso, levando em conta não só o aparecimento de muita coisa nova, mas também a nova perspectiva que nos possibilita ver as obras já conhecidas, em alguns casos, sob uma nova luz. Muitas pessoas acreditam que tanto já foi dito e escrito sobre Marx e suas teorias que não é possível adicionar mais nada de novo. Minha opinião é quase que contrária: estamos apenas no início dos debates e eu espero que minha biografia do Marx seja uma espécie de guia que acompanhará esses muitos textos, novos ou reavaliados.

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Leita também, no Blog da Boitempo, o artigo “Vida e obra: o significado político de uma leitura biográfica de Marx“, escrito por Michael Heinrich. Em depoimento inédito (e legendado!) para a TV Boitempo, Michael Heinrich fala sobre alguns dos principais diferenciais de sua biografia Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna. Vale a pena conferir:

Onde encontrar o livro?

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Michael Heinrich é cientista político, matemático e biógrafo de Marx. Foi professor convidado de ciência política na Universidade de Viena e na Universidade Livre de Berlim. Atualmente é professor de economia na Universidade de Ciências Aplicadas de Berlim. Editor da PROKLA (Jornal da ciência social crítica) e do site Oekonomiekritik, participa do projeto MEGA 2, um monumental esforço internacional visando à publicação das obras completas de Marx e Engels. É autor, entre outros, do prefácio à edição da Boitempo do Livro II de O capital, de Marx e dos livros Crítica da economia política: uma introdução, Uma introdução aos três volumes d’O capital de Marx. Em 2018 a Boitempo publicará o primeiro volume de sua monumental biografia intelectual e política de Karl Marx: Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna – ambicioso projeto que comportará ao menos três volumes ao todo!

1 comentário em Por que publicar uma nova biografia de Marx?

  1. aguardo os lançamentos dos outros títulos ainda não traduzidos para o português e os volumes restantes da grandiosa em tamanho e qualidade biografia de Marx.

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