A Revolução Russa: objetividade e subjetividade na construção do caminho

Diante da Revolução Russa, o marxismo revolucionário de hoje não tem alternativa a não ser enfrentar o problema da transição, debruçar-se sobre os acontecimentos e compreender as determinações que conduziram ao desfecho distinto daquele que se esperava.

Por Mauro Luis Iasi.

“Uma sociedade jamais desaparece antes
que estejam desenvolvidas todas as forças
produtivas que possa conter”
Karl Marx, 1859.

Um dos argumentos principais da ofensiva conservadora e reacionária contra a Revolução Russa reside na afirmação que a experiência socialista teve sua chance na história e fracassou. Diante das reconversões capitalistas da Rússia, China e outras experiências, atualiza-se a ironia segundo a qual o socialismo seria o caminho mais longo do capitalismo até o capitalismo. Considerando o enorme custo político, social e humano destes processos o senso comum de nossa época prepara o julgamento e a sentença: não vale a pena.

Interessantemente, o núcleo central deste argumento conservador figura mesmo em alternativas de esquerda que louvam a Revolução Russa para descartar os caminhos que ela indica, preferindo o lento desenvolvimento através do qual a história nos levará ao futuro inexorável de mais justiça e igualdade, sem traumas e sem rupturas.

O marxismo revolucionário não tem alternativa a não ser enfrentar o problema da transição, debruçar-se sobre os acontecimentos e compreender as determinações que conduziram ao desfecho distinto daquele que se esperava.

Comecemos por recordar os termos em que Marx coloca a questão da transição. A compreensão da história em Marx se fundamenta na convicção de que as sociedades mudam quando as forças produtivas se desenvolvem ao ponto de produzir uma contradição com as relações sociais de produção existentes. Tal princípio nos leva a uma constatação um tanto incômoda: nenhuma sociedade muda antes que desenvolva todas as forças produtivas que pode conter, mais ainda, que jamais surgem novas relações sociais antes que as condições para tanto se desenvolvam no interior da sociedade antiga (Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política, prefácio).

Profundamente coerente com sua compreensão teórica materialista e dialética, o autor acredita que uma sociedade nova se desenvolve a partir da crise da velha sociedade. Neste ponto se apresenta o nó central de nosso problema e que é assim apresentado por Marx:

“O que se trata aqui não é de uma sociedade comunista que se desenvolveu sobre sua própria base, mas de uma que acaba de sair precisamente da sociedade capitalista e que, portanto, apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econômico, do moral e no intelectual, o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede.”
(Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha, Boitempo, 2012).

Tal postulado pode levar a dois problemas de interpretação acompanhados de equívocos políticos práticos. Por um lado, pode levar ao imobilismo. Isto é, uma vez que não estejam dadas as condições e o desenvolvimento necessário das forças produtivas, não seria possível fazer a revolução. Por outro lado, há o risco de se justificar todas as distorções ocorridas na transição pelas características próprias de uma transição (a presença ainda do velho na criação do novo). Creio que tanto um como outro equívoco radicam na desconsideração do aspecto subjetivo do processo histórico.

A história não é pura objetividade. Isto significa que, mesmo não estando dadas as condições objetivas, é possível que se apresentem na subjetividade da classe revolucionária as condições que coloquem como objetivo a revolução e a transformação da sociedade. A humanidade, dizia Marx na Contribuição à crítica da economia política, se só coloca objetivos que pode alcançar, pois quando analisamos mais detidamente já haviam, ou estavam em gestação, as condições materiais que tornam a ação humana. Ora, não há um ponto determinado de desenvolvimento máximo das forças produtivas e da contradição que daí resulta, e sim um processo, um contínuo de desenvolvimento no interior do qual várias situações se apresentam (por exemplo, situações e crises revolucionárias) que podem reunir as condições para a ação daqueles que querem mudar o mundo.

Ocorre que isso não elimina a determinação material. Ou seja, a história não é, igualmente, pura subjetividade. Trata-se de uma complexa síntese: os seres humanos é que fazem sua história, mas não fazem como querem (Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte). Vejam que tal aproximação libera a classe revolucionária do imobilismo, mas não a livra de ter que realizar sua ação histórica em determinadas condições dadas.

Os bolcheviques, portanto, podiam e deviam ter ousado emplacar uma revolução socialista na atrasada Rússia, pois haviam condições políticas, organizativas e de consciência para tanto. Porém, só podiam desenvolver sua ação nas condições econômicas, morais e intelectuais que caracterizavam a formação social onde atuavam.

A vanguarda bolchevique tinha perfeita consciência desses limites, tanto que imaginava que o papel da revolução na Rússia era de ser retaguarda para uma revolução na Alemanha, funcionando como um elo de ligação entre o processo revolucionário do ocidente e do oriente. Como vimos, no entanto, os seres humanos não fazem a história como querem.

A derrota da revolução na Alemanha levará a transição por caminhos que marcariam definitivamente seu devir. No entanto, é aqui que se inscreve o segundo problema, o de justificar por conta desse contexto todos os problemas que daí derivam (o socialismo em um só país, a burocratização, etc.). Aqui também opera a dialética entre condições objetivas e subjetivas.

É fato que as condições materiais em que teriam que se dar a transição apresentavam problemas evidentes. Primeiro, do ponto de vista político era preciso garantir o poder recém conquistado e as classes derrotadas não pareciam dispostas a aceitar o surgimento de um Estado proletário. À destruição causada pela Guerra mundial (1914-1918) se soma a Guerra Civil e o resultado é catastrófico.

Entre 1918 e 1921 ocorre um debate no Partido e na sociedade soviética que nos parece expressar de forma didática esta questão: o debate sobre a forma de gestão da produção e o papel dos sindicatos.

Os estudiosos concordam que o pais estava em ruínas.* A intervenção de 14 Estados de três continentes diferentes (Europa, América e Ásia) potencializou a destruição material do novo Estado que tentava se erguer (Poliakov, et al, 1979, p. 62). Considerando as baixas desde 1914, temos mais de 20 milhões de mortos e cerca de 4,4 milhões de inválidos entre os 16 e 49 anos. As precárias condições de vida levavam a proliferação de epidemias, apenas o tifo atingiu 3,5 milhões de pessoas (idem, p. 104-5). A economia resistia a duras penas. A produção agrícola caiu pela metade, a produção industrial caiu mais de dois terços, na grande indústria a queda foi de 80%, na produção de setores estratégicos, como carvão e petróleo, a queda chegou a 70% (Reis Filho, 2003, p. 71; Ponomarev, 1960, p.389). A população das principais cidades reduzira-se de forma drástica, entre 1917 e 1920 a população de Petrogrado diminuíra em 57,5% e a de Moscou em 44,5% (Reis Filho, 1985: p. 99).

Nestas condições, Lênin afirmara de maneira drástica que não se tratava de iniciar a construção do socialismo, mas de manter uma sociedade minimamente civilizada. Mas, qual o caminho para enfrentar esta dramática situação? Dadas estas condições objetivas impossíveis de serem contornadas, existia um grande debate sobre questões essenciais diante do qual a vanguarda bolchevique tinha posições divergentes.

Entre os vários temas que poderíamos citar, destacaremos um que nos parece central pelas implicações que traz ao nosso tema: a questão da gestão da produção.

Entre os anos de 1918 e 1921 ocorre um intenso debate sobre a forma de gestão ou controle operário da produção. Veremos que a opção por um ou outro termo terá implicações. Trótski, que comandara o Exercito Vermelho no esforço de enfrentar a reação, propunha que a organização econômica deveria seguir o modelo implementado com sucesso na organização dos correios e ferrovias. Tal proposta implicaria numa rígida hierarquia e disciplina militar, de forma que os sindicatos e organizações operárias se centralizariam pelos organismos planejadores do Estado. A Oposição Operária, liderada por Alekssandra Kollontai, discordava desta tese e ponderava que a classe operária deveria gerir a produção industrial através de seus órgãos de poder (sindicatos e conselhos de fábrica) como forma de aprendizado que levaria a classe operária a gerir o conjunto da sociedade como nova classe dominante.

Este debate foi muito intenso e público (chegou-se a realizar enormes assembleias de massa discutindo o tema), desembocando em Congressos Sindicais e do Partido. Estou convencido que seu desfecho marcará o caminho da transição e seu destino. A posição de Lênin sobre o tema será decisiva. O líder bolchevique tinha uma forma própria de condução política que foi extremamente útil para o desenrolar da revolução e sua condução até aquele momento, isto é, defendia radicalmente suas posições e atacava impiedosamente seus adversários, mas se chegava a posições em que vários aspectos de seus interlocutores eram incorporados as decisões tomadas. Foi assim nos debates sobre as teses de abril, sobre a insurreição, sobre a constituinte, etc.

Neste sentido, Lênin discordou radicalmente da posição de Trótski, mas sabia do papel central da produção na questão da segurança e manutenção do Estado Soviético, assim como da necessidade da centralização e do planejamento na organização do ato econômico. Atacou impiedosamente as posições da Oposição Operária, mas ressaltava a importância da organização operária e dos sindicatos, mesmo em um Estado Operário. No entanto, a habilidade política tem limites. A solução que pode parecer mais adequada e politicamente possível em um determinado momento, pode levar a graves consequências no desenrolar dos fatos.

A posição de Lênin era, sobre vários aspectos, problemática. Em primeiro lugar pela valorização dos sindicatos. Tratava-se muito mais de criar meios pelos quais a política do estado chegasse até a classe trabalhadora do que formas de autopoder da classe e sua experiência de gerir uma produção socializada. É neste ponto que não é surpresa que Lênin opte pelo termo “controle operário” e não “gestão operária”. Uma vez que o Estado não era apenas Operário, mas operário e camponês, era necessário que a ação política desse Estado criasse condições de enraizamento nas massas, neste sentido o sindicato seria um elo entre o Partido e o Estado, nos quais os segmentos de classe e das massas pudessem apresentar suas demandas e agir em nome de seu Estado, eram, nos termos do próprio Lênin, instrumentos para criar mais que um poder de Estado, uma hegemonia (Lênin, V. Sobre os sindicatos, o momento atual e os erros de Trótski. In_ Sobre os Sindicatos. São Paulo: Polis, 1979, p. 191).

Mas, controle e centralização para fazer o que? É neste ponto que a posição de Lênin, que acabou prevalecendo é muito problemática. Lênin assim coloca o problema:

“A última palavra do capitalismo neste terreno – o sistema Taylor –, da mesma forma que todos os progressos do capitalismo, reúne toda a refinada ferocidade da exploração burguesa e várias conquistas científicas de grande valor no que concerne aos movimentos mecânicos durante o trabalho, a superação dos movimentos supérfluos e torpes, a adoção dos métodos de trabalho mais racionais, a implantação do sistemas ótimos de contabilidade e controle.”
(Vladímir Lênin, “As tarefas imediatas do poder soviético”, p. 110).

A Oposição Operária irá confrontar este argumento com pontos que no mínimo deveríamos considerar. Diz o texto da Oposição:

“A causa desta crise se encontra na suposição de que “homens realistas” – técnicos, especialistas e organizadores da produção capitalista – podem libertar-se repentinamente das suas concepções tradicionais sobre a maneira de gerir o trabalho (concepção neles profundamente impregnadas pelos anos passados ao serviço do capital) e adquirir a capacidade de criar novas formas de produção, de organização do trabalho e de motivação dos trabalhadores. Supor que isto é possível é esquecer que um sistema de produção não pode ser mudado por alguns indivíduos geniais, mas somente pelas necessidades de uma classe.”
(Alexandra Kollontai, Oposição Operária. São Paulo: Global, 1980 p. 27).

Nenhum membro da Oposição Operária desconhecia o fato que os trabalhadores deveriam ser preparados para gerir a produção, técnica e politicamente, e que não estavam preparados naquele momento. A questão é outra, trata-se de organizar a produção de forma a fortalecer o poder da classe operária ou de enfraquecer este poder pela função, aparentemente técnica de administradores “cientificamente preparados”, ou nos termos que Lênin colocava a questão: a gestão de um só homem. O fato é que esta não é uma questão simplesmente técnica, mas terá implicações decisivas, como antecipa o próprio texto da Oposição Operária:

“Numa República operária, o desenvolvimento das forças produtivas pela técnica desempenha um papel secundário em comparação com o segundo fato, o da eficiente organização do trabalho e a criação de um novo sistema de economia. Mesmo que a Rússia consiga levar à cabo seu projeto de eletrificação geral, sem introduzir nenhuma mudança essencial no sistema de controle e organização da economia e produção ela não fará mais do que aliar-se aos países capitalistas mais avançados em matéria de desenvolvimento.”
(idem: p. 39).

Muitos anos depois, diante de um novo e diferente contexto, Che Guevara encarará esta problemática retomando alguns destes elementos, vejamos:

“Resta um longo trabalho por fazer na construção da base econômica e a tentação de seguir caminhos já trilhados do interesse material, como alavanca propulsora de um desenvolvimento acelerado, é muito grande.

Corre-se o risco de que as árvores impeçam a visão do bosque. Perseguindo a quimera de realizar o socialismo com os meios legados que vêem do capitalismo (a mercadoria como célula econômica, a rentabilidade, o interesse material individual como alavanca, etc.) se pode chega à um beco sem saída. E se chegamos à um ponto, depois de percorrer uma grande distancia em que os caminhos se entrecruzam muitas vezes e onde é difícil perceber o momento em que nos equivocamos de caminho? A base adaptada, entretanto, terá feito seu trabalho de solapar o desenvolvimento da consciência. Para construir o comunismo, simultaneamente com a base material, teremos que construir um homem novo(…) Não se trata de quantos quilos de carne se come ou quantas vezes por ano se pode ir à praia passear, nem de quantos belezas se pode trazer do exterior e comprar com os salários atuais. Se trata, precisamente, de que os indivíduos se sintam mais plenos, com muita riqueza interior e com mais responsabilidade.” (Che, apud Tablada Perez, Ernesto Che Guevara: hombre y sociedad. Buenos Aires: Antarca, 1987: p. 66-67).

Evidente que nenhum processo histórico se resolve em uma única determinação, mas estamos convencidos que neste caminho escolhido iniciou-se a formação de uma base material para os descaminhos que levariam às deformações burocráticas e aos impasses da transição. Não apenas pelas opções tomadas, não unicamente pela objetividade que constrangiam a ação dos revolucionários, mas certamente pela combinação e interação destes fatores.

Resta saber se isso, como costumam afirmar os detratores conservadores da Revolução Russa, desmente as teses centrais do marxismo. Me parece que não. Pelo contrário, como costumo afirmar, Marx estava dramaticamente correto, não apenas porque confirmou-se que nenhuma sociedade pode gerar novas relações sociais antes que se desenvolvam as condições materiais para tanto, como também pelo fato que os seres humanos mudaram a sociedade e foi sua ação que levou a novas contradições que precisaram ser enfrentadas e solucionadas em uma ou outra direção.

Já começamos a construir o futuro, mas a velha sociedade ainda agoniza sem morrer. Não temos outra opção a não ser buscar os sinais do novo nas entranhas do velho que perece. Como dizia Brecht: na mudança de lua, a lua nova segura a lua velha uma noite inteira nos braços. Como sabem os bons navegantes, mudança de lua não é uma época fácil, mas nem por isso desistem de navegar.


* Ver a respeito Poliakov, Leltchuk e Protopopov (1979), Carr (1979), Ponomarev (1960), Reis Filho (1983,2003), Netto (1981).

Referências

Aleksandra Kollontai, Oposição Operária (1920-1921). São Paulo: Global, 1980.
Boris Ponomarev (org.), Histoire du Parti Communiste de L’Union Sovietque. Moscou, 1960.
Carlos Tablada Perez, Ernesto Che Guevara: hombre y sociedade. Buenos Aires: Antarca, 1987
Daniel Aarao Reis Filho, Rússia, anos vermelhos (1917-1921). São Paulo: Brasiliense, 1985.
____. URSS: o socialismo real (1921-1964). São Paulo: Brasiliense, 1983.
____.  As revoluções russas e o socialismo soviético. São Paulo: UNESP, 2003.
Edward Hallet, A revolução Bolchevique II. Porto: Afrontamento, 1979.
José Paulo Netto, O que é o stalinismo?. São Paulo: Brasiliense, 1981
Karl Marx, Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
____. Crítica do programa de Gotha. São Paulo, Boitempo, 2012.
____. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo, Boitempo, 2011.
Poliakov, V. Leltchuk, A. Protopopov, História da sociedade soviética, Moscou: Ed. Progresso, 1979.
Vladímir Lênin, “Sobre os sindicatos, o momento atual e os erros de Trótski”. Em Sobre os sindicatos. São Paulo: Polis, 1979.

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Tariq Ali apresenta O Estado e a revolução, de Lênin, na TV Boitempo.

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

1 comentário em A Revolução Russa: objetividade e subjetividade na construção do caminho

  1. José Alves de Sousa // 09/11/2017 às 12:56 pm // Responder

    Caros(as) amigos(as) e companheiros(as),

    Neste 7 de novembro se cumprem exatamente cem anos da “Grande Revolução Socialista de Outubro” na Rússia e, na condição de ex-diretor do Instituto Cultural Brasil-URSS do Ceará, não poderia deixar de expressar-lhes minhas reflexões apressadas e improvisadas permeadas de sentimentos contraditórios de alegria, esperança, mas também de tristeza e frustração em relação ao maior acontecimento da história da humanidade, a meu ver.

    Esperança porque continuo acreditando na construção do socialismo na Venezuela Bolivariana, na reunificação socialista da República Democrática Popular da Coreia (RPDC) e em Cuba, mas sobretudo no Brasil. Frustração porque quem foi pró-soviético nos anos 80 do século XX e tinha como únicas fontes de informação, materiais impressos que chegavam no Instituto ou direto da Embaixada Soviética em Brasília, ou de publicações como “Socialismo, Teoria y Prática”, “Novedades de Moscú”, “Sputnik”, “Mulher Soviética” e outros, além dos discursos oficiais de Mikhail Gorbachov e outros dirigentes, não poderia senão aceitá-los acriticamente. Acreditava piamente que a contradição fundamental era, então, entre socialismo e imperialismo e ser anti-soviético era ser considerado anticomunista. Era e continuo sendo Prestista e acho que Prestes já previa o que poderia ocorrer quando uma vez disse em uma entrevista que “aqueles que querem trazer o capitalismo de volta estão equivocados”, dizia mais ou menos assim. Preferiu o silêncio a fazer coro com o anti-sovietismo e o anticomunismo.

    No ano de 1989 quando dava aulas de idioma russo na UBRASUS (União dos Institutos Culturais Brasil-URSS), no Rio de Janeiro, depois de ter feito o curso básico de russo pelo Instituto em Fortaleza e ter recebido uma bolsa de aperfeiçoamento para o Instituto Pushkin de Moscou (acabei não viajando por vários motivos), tive a oportunidade de presenciar na Livraria Página, na Rua das Marrecas, velhos militantes comunistas que pareciam haver estado na URSS, mas expressavam seu desacordo com o regime de Mikhail Gorbachov e suas “Perestroika” (reestruturação”) e Glásnost (“transparência”). Lembro que um deles dizia que “o inimigo tem que ser morto a pau”, imagino que estava querendo dizer que não se reconcilia com inimigos de classe nem com o imperialismo.

    Por outro lado, foram os comentários desalentados que ouvi de um professor comunista da UFRJ (o então Reitor era Horácio Macêdo), no mesmo ano de 1989, sentado num banco no Campus da Ilha do Fundão, depois de ter compartilhado com uma delegação científica da República Popular Democrática da Coreia (RPDC), nos quais dizia que tinha ouvido dos coreanos que o que estava ocorrendo na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) era uma restauração do capitalismo. Expressava desesperançado que o que se deveria era acabar com a divisão da sociedade em classes e não restaurá-las. Esse comentário já me deixou de orelha em pé, pela minha pouco experiência e pelo meu pró-sovietismo ingênuo. Não tendo viajado a Moscou naquele ano voltei à Fortaleza para participar da campanha do segundo turno em apoio à candidatura de Lula à Presidência da República.

    No entanto, o que realmente viria a me desalentar e entristecer profundamente, foi o fato ter lido uma carta de um colega angolano de origem portuguesa, Luis Felipe, estudante de sociologia na UFC, que depois de ter começado a estudar russo no Instituto, conseguiu chegar a Moscou em 1986 ou 1987 e se matricular no curso de Filosofia da Universidade Estatal de Moscou (MGU). Depois de haver estado três anos ali, chegou à seguinte conclusão em sua inesquecível e desalentadora carta:

    Dizia nela mais ou menos assim: as contradições que adquirem no interior do PCUS a aparência de luta entre forças que defendiam as posições do marxismo e do socialismo, por vezes eram apenas contradições entre aqueles que queriam uma restauração do capitalismo aos poucos (Gorbachov) e os que queriam uma restrauração em 500 dias (Ieltsin). Ouvi pela Rádio Central de Moscou o golpe contra Gorbachov e a tentativa de contra-golpe com a instalação do chamado Comitê Estatal para o Estado de Emergência, que finalmente fracassou. Dizia também que o que havia de menos no PCUS era comunistas de verdade.

    Ainda nessa carta, descrevia mais ou menos assim a evolução do Partido Comunista da URSS:

    1º fase: esquerdismo (perda de ligação com as massas)
    2ª fase: fortalecimento da burocracia
    3ª fase: aburguesamento da burocracia
    4ª fase: traição final (oportunismo)

    Lembro-me também que tive acesso em 1990 a um dos exemplares do jornal Granma (orgão oficial do Partido Comunista de Cuba), que chegavam na Casa de Cultura Hispânica da UFC. Tratei de fotocopiá-lo e distribuir para alguns amigos. Para mim continua sendo um mistério como esses exemplares chegavam ali junto com a revista Boêmia, mas suspeito que foi por iniciativa da culta professora anti-imperialista Isabel Máximus, falecida recentemente aos 94 anos de idade. Precisamente nesse exemplar, o comandante inolvidável Fidel Castro expressava: “… a URSS ainda não se desintegrou, ainda não caiu em mãos contra-revolucionárias, mas os perigos existem e são reais”. O comandante Raúl Castro, em outra entrevista que li no Granma, em Português do Brasil, dizia que a URSS havia abandonado militarmente Cuba já nos inícios dos anos 80 porque os soviéticos diziam, segundo ele, que “não iriam quebrar a cara a 11 mil quilômetros de distância”. Foi o mesmo Raúl Castro quem disse no discurso pelos funerais do irmão que Fidel tinha previsto dois anos antes o que viria a ser chamado por Cuba de “desmerengamiento” (derretimento) da URSS. Cuba começava a censurar certa imprensa soviética, acho que a revista “spútnik”, quando percebia que sua linha editorial negava os princípios da Revolução de Outubro durante o regime de Gorbachov e as próprias conquistas sociais da revolução. Aí é que cheguei à conclusão fatal que a desintegração da URSS representaria uma tragédia para Cuba e Coreia do Norte.

    No entanto, como diretor de Cultura da Casa de Amizade José Martí do Ceará, por exercer um bom domínio do espanhol (meu segundo idioma até hoje) fui enviado a Cuba em outubro de 1993 como tradutor-revisor do semanário Granma Internacional para o Brasil. Estando na ilha, para minha surpresa, não ouvia, (ao menos não me lembro) nenhuma autocrítica oficial de Cuba sobre o regime de Gorbachov, mas alguém me dizia discretamente e com certa timidez que “ninguém previa” que a URSS se desintegraria sem disparar um tiro sequer. Mas recebi de um sub-diretor do Granma algum material impresso que analisava a “perestroika” e a “glásnost” e questionava já o que estava ocorrendo na URSS, embora pelos meios de comunicação de Cuba parecia haver um silêncio ensurdecedor. Fidel viria a reconhecer em 2005, na Universidade de Havana, que a Revolução Cubana poderia ser derrotada por erros internos de seus dirigentes, como ocorrera com a URSS.

    Bem, essas são minhas apressadas e, repito, improvisadas reflexões que queria compartilhar com os amigos e amigas nesta data histórica dos cem anos do “ano que mudou o mundo” e agradeceria seus comentários.

    Aproveito a oportunidade para informar-lhes o enlace a seguir:

    Dossiê Revolução Russa // 1917: o ano que abalou o mundo

    Saudações comunistas revolucionárias

    Prof. José Alves de Sousa

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