Sociedad Latinoamericana György Lukács: uma excelente ideia

"Surgiu, há pouco, uma excelente ideia – que já está sendo divulgada entre nós e em vários países da América Latina – que merece uma atenção especial e que, penso, diz respeito a todos aqueles que, independentemente de suas posições ideo-teóricas, têm intervenção/interesses no chamado mundo da cultura."

Por José Paulo Netto.

Esta coluna mensal – espaço propiciado pelos responsáveis pelo Blog da Boitempo e que vem contando com a benevolência dos leitores –, cujo objetivo muito singelo é exercitar uma forma simples, mas séria, de divulgação cultural, seria este mês dedicada a um marxista pouco referido entre nós. Ela teria por objeto a obra e a biografia de G. Politzer, assassinado pela Gestapo, nos arredores de Paris, em 23 de maio de 1942. Mas a conversa sobre Politzer ficará para o próximo mês, substituída pela importância de repercutir uma iniciativa cultural muito relevante.

É que surgiu, há pouco, uma excelente ideia – que já está sendo divulgada entre nós e em vários países da América Latina – que merece uma atenção especial e que, penso, diz respeito a todos aqueles que, independentemente de suas posições ideoteóricas, têm intervenção/interesses no chamado mundo da cultura. Trata-se da proposta da criação da Sociedad Latinoamericana György Lukács, formulada pelo Prof. Miguel Vedda, da Universidade de Buenos Aires, personalidade já conhecida nos meios acadêmicos brasileiros e admirada pela sua competência e rigorosa produção no domínio da teoria estética e dos estudos literários. A meu juízo, a proposta de Vedda deve ser divulgada, debatida e implementada (tudo indica que as iniciativas neste sentido serão registradas, conforme as primeiras informações de Vedda, no endereço eletrônico sociedadlukacs @ gmail . com).

No sintético material através do qual pôs a público sua proposição, Vedda argumenta, corretamente, que se verificam, no subcontinente, condições objetivas que permitem viabilizá-la – condições que vão da significativa existência de individualidades e núcleos intelectuais voltados para a análise das obras de Lukács ao crescente espaço que elas vêm ganhando no mercado editorial. Contudo, o intelectual argentino argumenta mais – e também com justa razão: a criação desta Sociedad… expressa, ainda, uma forma de resistir aos tempos presentes, nos quais a emersão da barbárie se manifesta com força no âmbito da cultura.

No mesmo material, Vedda expõe com clareza o espírito que anima a sua iniciativa. Diz ele:

“Lo que querría pedir, del modo más respetuoso y, a la vez, más insistente, es que seamos capaces de dejar de lado nuestras disidencias teóricas, políticas y personales para llevar adelante esta iniciativa común que es – me parece – sustancial. Deberíamos ser capaces de crear una sociedad en la que encuentren su lugar todos los estudiosos de Lukács, unidos por el interés en examinar y propagar seriamente la obra lukácsiana y en aprovecharla para que otro mundo sea posible, un mundo más allá de la barbarie capitalista. A la vista de estos propósitos centrales, es secundario que los miembros de la Sociedad se ocupen de estudiar al Lukács joven, al maduro o al viejo; que se interesen primordialmente en ‘Historia y conciencia de clase’ o en la ‘Ontología’; que realicen un abordaje – disculpen la puerilidad de la formulación – “leninista”, “gramsciano”, “benjaminiano” o correspondiente a la variedad que ustedes imaginen.”

A meu juízo, é precisamente este o espírito com que se deve implementar a criação da Sociedad: ter como objetivo constituir um espaço democrático e pluralista de troca de informações, de exposição de ideias/estudos/projetos de pesquisa, cobrindo o imenso espectro de textos/documentos/reflexões do filósofo húngaro. Mas um espaço democrático e pluralista não se identifica com um “espaço sem fronteiras” – Vedda afirma-o cristalinamente: um lugar em que possam se inserir “todos los estudiosos de Lukács, unidos por el interés en examinar y propagar seriamente la obra lukácsiana [agora os itálicos são meus – JPN] y en aprovecharla para que otro mundo sea posible, un mundo más allá de la barbarie capitalista”. Mais claro, impossível: a Sociedad – e na formulação de Vedda ouve-se, obviamente, o eco das palavras de Mariátegui na apresentação de Amauta – não deve ser uma tribuna aberta a todos os ventos do espírito, porque nem todos os ventos do espírito sopram na defesa do que Lukács insistia ser o valor maior, a defesa da humanitas.

Há lukacsianos de todos os matizes e o confronto de suas ideias e convicções não só é inevitável – é desejável, porque o confronto de ideias é sobretudo instigante e criativo. Mas avalio que o espaço para esta confrontação é aquele instaurado na/pela produção dos lukacsianos – e, na minha ótica, a Sociedad não deve servir de campo para batalhas de ideias: deve servir prioritariamente para informar da produção sobre Lukács e sua obra. Por isto mesmo, penso que a Sociedad deve ser inequivocamente aberta não só àqueles que se inspiram na obra de Lukács – para vincular-se a ela, não deve ser necessário defender ou aderir às ideias lukacsianas: basta ser um estudioso delas, trabalhando-as na perspectiva de que “otro mundo sea posible, un mundo más allá de la barbarie capitalista”. E sabemos que esta perspectiva, felizmente, não é privilégio dos lukacsianos (nem dos marxistas). A implicação necessária é que a Sociedad não deve abrigar a intencionalidade de “fazer escola”, de qualquer natureza que seja – se ela deve mostrar-se intransigente em face de tendências favorecedoras ou lenientes da barbárie, também deve mostrá-lo contra quaisquer sectarismos ou doutrinarismos (inclusive os exercitados em nome do próprio Lukács). Deve-se fazer todo o possível para que a Sociedad não se forme como um campo de enfrentamentos. Este cuidado precisa ser compartilhado por todos aqueles que se disponham a aderir ao projeto pioneiramente apresentado por Miguel Vedda – um cuidado que não elude as diferenças existentes entre os lukacsianos (e entre os lukacsianos e os intelectuais vinculados a outras sensibilidades do espectro democrático).

Houve um tempo – lá pela segunda metade dos anos 1960/entrada dos anos 1970 – em que os poucos lukacsianos brasileiros eram uma espécie de exército de Brancaleone. Convencidos da verdade da obra lukacsiana, colocaram-se (é fato que nem todos) na militância combativa de tudo o que não lhes parecia dura e ortodoxamente lukacsiano. A experiência foi justificada e, até mesmo, necessária – quem a fez, porém, sabe que aquele tempo já passou (e quem o diz, aqui, o diz porque viveu intensamente a experiência de meio século atrás). Quem a fez aprendeu que um pensador de corte clássico, e este é o caso de Lukács, transcende o seu próprio território: marxista (dos maiores, para alguns o maior do século XX) de quatro costados por cinco décadas, Lukács é patrimônio da cultura universal.

Sem ironia, o general Nelson Werneck Sodré dizia que não se havia inventado o “marxímetro”, instrumento para aferir o grau de “marxismo” de um pensador; parafraseando meu velho mestre, eu diria que também se carece de instrumento similar para mensurar o grau de “lukacsianismo” de quem quer que seja. Isto não significa diluir o pensamento de Lukács e/ou obnubilar as fronteiras entre os lukacsianos (e entre estes e intelectuais que operam com outras matrizes) – mas implica uma abertura intelectual, sem nada conceder ao ecletismo nem ao liberalismo disfarçado de um fácil “pluralismo”, capaz de, como quer Miguel Vedda,

“crear un espacio en el que se haga visible, del modo más generoso, serio y democrático posible, la producción regional y mundial sobre nuestro autor, a fin de que podamos aprovechar la información disponible y coordinar actividades conjuntas [itálicos meus – JPN].”

A proposta de Vedda, seguramente, demandará dos aderentes um amplo debate, preliminar e qualificado, para explicitar sem ambiguidades os princípios e as normas a regular a atividade da Sociedad. Na escala em que esse debate corresponder ao espírito com que Vedda formulou a sua proposição, certamente passaremos a contar – os lukacsianos, mas também os pensadores alinhados na resistência à barbárie – com uma agência cultural da maior importância.

***

José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. Recentemente, organizou o guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.

3 comentários em Sociedad Latinoamericana György Lukács: uma excelente ideia

  1. Republicou isso em Studiume comentado:
    Excelente ideia!!

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  2. Frederico Lambertucci // 14/03/2017 às 6:05 am // Responder

    Sensacional.

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