Alysson Mascaro: “Todo direito é um golpe”

"A reprodução do capitalismo na América Latina contemporânea se faz na marcha de golpes que não se deixam chamar como tais, com constituição de entendimentos ideológicos a partir de meios de comunicação de massa e com poderes judiciários aderentes ao capital que veem a lei como expressão de seu horizonte de mundo. O golpe está no mundo jurídico porque dentro, nas margens ou fora da lei, se fala direito."

alysson mascaro todo direito é um golpePor Alysson Leandro Mascaro.*

Todo direito é um golpe. É a forma do engendramento da exploração do capital e da correspondente dominação de seres humanos sobre seres humanos. Tal golpismo jurídico se faz mediante instituições estatais, sustentando-se numa ideologia jurídica que é espelho da própria ideologia capitalista. Sendo o direito sempre golpe, a legalidade é uma moldura para a reprodução do capital e para a miríade de opressões que constituem a sociabilidade. Todo o direito e toda a política se fazem a partir de graus variados de composição entre regra e exceção.

Pelos espaços nacionais das periferias do capitalismo, cresce, no presente momento, a utilização dos mecanismos jurídicos e judiciais para estratagemas políticos e capitalizações ideológicas. Presidentes da República, como no caso do Paraguai, são alijados do poder em razão de artifícios jurídicos. No caso mais recente e talvez mais simbólico e impactante, Dilma Rousseff sofre processo de impeachment e é tirada do cargo presidencial no Brasil por conta de acusação de crime de responsabilidade por “pedalada fiscal”, um tipo penal inexistente no ordenamento jurídico brasileiro. Tal processo de impeachment irrompe após anos de sangramento dos governos Lula e Dilma, mediante reiteradas investigações e julgamentos judiciais de corrupção que não se estendem a políticos de outros partidos mais conservadores e reacionários. O palco jurídico passa a ser exposto pela imprensa tradicional com requintes de espetáculo. O direito, jogando luzes e sombras na política do presente, faz, em alguns países periféricos do capitalismo, o mesmo que processos de insurgência popular faz nos países da chamada primavera árabe ou no caso da Ucrânia: destituem partidos, grupos, classes e facções do poder, engendrando realinhamentos internacionais e reposicionando, a menor, tais países no contexto geopolítico mundial.

A compreensão do papel do direito nas políticas de cada nação e na geopolítica atual exige uma mirada tanto naquilo que o direito é estruturalmente, como forma social necessária e inexorável do capitalismo, quanto, também, naquilo que é seu talhe e sua manifestação hoje. Aponto cinco questões envolvendo o direito, sua política estrutural nos Estados capitalistas e na geopolítica presente:

1. A natureza capitalista do direito e do Estado

O direito é forma social capitalista. Sua materialidade se funda nas relações entre portadores de mercadorias que se equivalem juridicamente na troca. A forma jurídica é constituinte da sociabilidade capitalista. O mesmo quanto à forma política estatal, terceira necessária em face dos agentes da exploração capitalista. O Estado, mesmo quando governado por agentes e classes não-burguesas, é capitalista pela forma. Direito e Estado se arraigam nas relações sociais capitalistas, estando atravessados pelas vicissitudes e contradições de tal sociabilidade da mercadoria. Legalidade e política estão submetidas à dinâmica acumulação, nacional e internacional.

2. Política, direito e formações sociais insignes

Diferentes formações sociais do capitalismo estabelecem distintas instituições políticas e jurídicas pelo mundo. Há um vínculo necessário entre capital, Estado e direito, mas são variáveis os graus de arraigamento institucional, utilização da legalidade, segurança jurídica e mesmo de soberania nacional e estatal efetiva.

Embora todos os Estados contemporâneos sejam juridicamente soberanos, sua autonomia está condicionada à sua força econômica. As condições institucionais da política e do direito dão balizas à constituição de cada formação social específica mas, em especial, são constituídas pela dinâmica das determinações materiais e econômicas.

Países periféricos na economia capitalista mundial, como os da América Latina, têm um grau menor de assentamento das instituições nas quais se fundam política e juridicamente. O horizonte principiológico e normativo que os guia tem limites e contradições necessárias com a própria dinâmica do capital que os atravessa e os constitui. Eventuais políticas de esquerda e juridicidades “independentes” têm dificuldade de materialização em tais formações sociais.

3. Injunções jurídico-políticas neoliberais

Sendo Estado e direito formas sociais do capital, a força e a estratégia das burguesias nacionais e sua relação com as classes sociais locais e os capitais internacionaisgeram a coesão e o desenvolvimento institucional da política e do direito em cada país. Tal processo, no entanto, é plantado em contradições internas e internacionais.

As lutas de classes e grupos e as disputas entre frações do capital fazem com que as instituições políticas e jurídicas sejam atravessadas por tensões, antagonismos e contradições. Por isso, não se pode pensar em Estado e direito como aparatos consolidados, neutros ou técnicos, mas como correias de transmissão de movimentações gerais da dinâmica social.Havendo descompasso entre forças econômicas e posições político-jurídicas, a resolução da reprodução social capitalista se fazsempre em detrimento do plano institucional.

A América Latina sofre, no presente momento, uma rearticulação das classes burguesas e médias nacionais, sob sintonia do capital mundial, empunhando slogans do direito e reconstituindo movimentos conservadores e reacionários que buscam contrastar e diminuir conquistas jurídicas e políticas públicas de caráter mais progressista. Trata-se de momento aberto da luta de classes. O direito é arma privilegiada para tal injunção.

Como não há força material em princípios jurídicos nem em meras repetições ou sacralizações da legalidade, a exceção e o uso seletivo da legalidade, sustentados por vastos controles da informação por meios de comunicação de massa, passam a ser os instrumentos excelentes da luta de classes atual. O direito e a negação do direito se misturam para ações de golpe que possibilitem o rearranjo das classes capitalistas.

Contra os horizontes de alguns dos Estados latino-americanos do início do século XX – mais soberanos economicamente e tendentes a uma dosagem maior de inclusão social dentro do quadro capitalista –, classes burguesas e médias da América Latina encontram-se em um rápido processo de submissão às estratégias do capital internacional. O reagrupamento de frações das burguesias nacionais se faz em torno de projetos e linhas de força patentemente neoliberais.

4. Ideologia jurídica e ideologia dos juristas

Nas injunções das classes e frações do capital latino-americano contemporâneo, o direito tem servido como seu instrumento privilegiado. A ideologia jurídica conduz golpes que não aceitam ser narrados como tais e, ao mesmo tempo, a mesma ideologia jurídica tem sido a bandeira requerida por governos e movimentos sociais progressistas latino-americanos. Até mesmo aqueles depostos por golpe, como o caso do PT no Brasil, conclamam pelo respeito às leis e às instituições…

A ideologia jurídica tem tal primazia porque é constituinte da própria ideologia capitalista. Ser sujeito de direito, cidadão, contratar livremente entre iguais formalmente, respeitar as instituições, cumprir as normas e jungir-se à legalidade, tudo isso é o campo de condições pelo qual a subjetividade se estrutura na sociabilidade do capital. Por isso, da direita à esquerda, as posições políticas disputam a legalidade, mas não rompem com tal horizonte ideológico. No entanto, como a forma jurídica é espelho da forma mercadoria, a ideologia jurídica só se presta à reprodução do capital, não para sua superação.

Os juristas são constituídos pela mesma ideologia jurídica geral, mas portam discursos e formulações que modulam e exacerbam a relevância da juridicidade. Profissionais do direito pertencem à classe média, distinguindo-se então da população apenas no campo econômico, sem maior lastro intelectual que não seja aquele da técnica da dogmática jurídica. O ambiente de convivência dos juristas e dos agentes dos poderes judiciários é a classe média que partilha dos espaços do capital. Por isso, o interesse imediato da burguesia passa a ser o horizonte prático da ideologia dos juristas. No caso da América Latina, o recente alinhamento do capital gera também uma classe de juristas e de agentes dos poderes judiciários que capitaneia uma injunção jurídica regressista.

Com a recente integração tecnológica e de comportamento das classes médias mundiais, os juristas latino-americanos são formados em horizontes de pensamento norte-americanos e capitalistas. A common law, a segurança do capital e dos contratos e um moralismo legalista são louvados mundialmente. Nesse ambiente, eventuais projetos nacionais contrastantes com a movimentação do capital mundial encontram, nos juristas latino-americanos, oponentes ativos.

5. Direito, espetáculo e golpe

Na reprodução social contemporânea, midiática e baseada em informações massificadas e de rede, o direito assume papel importante como espetáculo e como fortalecimento de posições ideológicas. As acusações constantes de ilegalidade, rompimento do republicanismo e corrupção, feitas contra governos de esquerda, encontram cadeia de transmissão nos meios de comunicação de massa e nos aparatos judiciários de cada Estado.

Assim, formas contemporâneas de luta de classes e de afirmação ainda mais sobrepujante de interesses do capital se fazem à custa dos governos e do direito posto, mas com auras de respeito às instituições. Desde Manuel Zelaya a Dilma Rousseff, passando pelos combates constantes aos governos venezuelanos, dentre outros, a combinação de poder judiciário com mídia substitui, no presente, o papel dos militares no passado.

As vantagens de golpes e compressões do espaço político mediante espetáculos jurídico-midiáticos são inúmeras, a começar da incapacidade de reação popular contra injunções que não são claramente de força armada. Acima disso, golpes, constrangimentos e linhas de força conservadoras e reacionárias que agem pelo direito e pelos meios de comunicação de massa pavimentam a ideologia do capital de modo pleno: seus trâmites se dão com a linguagem e dentro do espaço que constitui a própria compreensão da subjetividade – sujeito de direito, lei, ordem, processo judicial, rito, procedimento. Somando-se a isso pleitos morais religiosos conservadores, como no caso dos que capitaneiam o impeachment de Rousseff, o quadro da ideologia estruturante da sociabilidade capitalista se confirma.

Com isso, a reprodução da sociabilidade capitalista na América Latina contemporânea se faz na marcha de golpes que não se deixam chamar como tais, com constituição de entendimentos ideológicos a partir de meios de comunicação de massa e com poderes judiciários aderentes ao capital que veem a lei como expressão de seu horizonte de mundo. O golpe está no mundo jurídico porque dentro, nas margens ou fora da lei, se fala direito.

* Artigo escrito para o número 6/4, de maio de 2016, da revista Megafón: La batalla de las ideas do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais com o título “Políticas e geopolíticas do direito”.

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PARA APROFUNDAR A REFLEXÃO… 5 DICAS DE LEITURA DA BOITEMPO:

  1. Estado e forma política, de Alysson Leandro Mascaro, é considerado uma das mais avançadas reflexões sobre o Estado produzidas no Brasil. A opinião é de Slavoj Žižek, convidado a escrever o texto de quarta capa, e que se surpreendeu com o que considera como “simplesmente a obra mais importante do pensamento político marxista nas últimas décadas”.
  2. A legalização da classe operária, de Bernard Edelman, é uma análise didática e aprofundada sobre como a institucionalidade jurídica burguesa enquadra e cerceia a luta popular, identificando nas próprias noções de representação sindical, partidária e classista, um componente de integração e submissão do ímpeto revolucionário dos oprimidos.
  3. O socialismo jurídico, de Friedrich Engels e Karl Kautsky é uma crítica implacável ao reformismo jurídico, visando combater a sua influência no movimento operário, e esclarecer o lugar do direito na reprodução da sociabilidade capitalista.
  4. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, foi o primeiro livro de intervenção sobre Junho de 2013, com reflexões escritas no calor da hora mas que permanecem hoje como documento histórico e político importante para orientar as lutas do agora. Textos de Lincoln Secco, Carlos Vainer, MPL São Paulo, Silvia Viana, David Harvey, Ermínia Maricato, Paulo Arantes, Roberto Schwarz, Pedro Rocha de Oliveira, Mauro Iasi, Mike Davis, Ruy Braga, Slavoj Žižek, entre outros.
  5. Marxismo e direito: um estudo sobre Paschukanis, de Marcio Bilharino Naves é leitura obrigatória para os interessados em entender a perspectiva marxista sobre o direito.

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Alysson Leandro Mascaro, jurista e filósofo do direito brasileiro, nasceu na cidade de Catanduva (SP), em 1976. É doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (Largo São Francisco/USP), professor da tradicional Faculdade de Direito da USP e da Pós-Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de fundador e professor emérito de muitas instituições de ensino superior. Publicou, dentre outros livros,Filosofia do direito e Introdução ao estudo do direito, pela editora Atlas, e Utopia e direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia, pela editora Quartier Latin e o mais recente Estado e forma política, pela Boitempo. É o prefaciador da edição brasileira de Em defesa das causas perdidas, de Slavoj Žižek, e da nova edição de Crítica da filosofia do direito de Hegel, de Karl Marx, ambos lançados pela Boitempo.

11 comentários em Alysson Mascaro: “Todo direito é um golpe”

  1. Republicou isso em afalairee comentado:
    Ótimo texto do jurista e filósofo do direito brasileiro, Alysson Leandro Mascaro, no Blog da Boitempo. Mascaro é doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, professor da Faculdade de Direito da USP e da Pós-Graduação em Direito do Mackenzie.

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  2. Alysson, como sempre, em todos esses pseudomarxistas, não se leva em conta a estrutura e se resumem os argumentos na superestrutura. Claro! Nunca leram os três livros de Das Kapital! Argumentos pseudomarxistas são levantados. Vamos para a economia e vemos os crimes do PT, vamos para os sindicatos e vemos os crimes do PT, vamos para a estrutura social do país e vemos os crimes do PT: mais de 14 milhões de desempregados, quebra da Petrobrás e da Eletrobrás, deficites que jamais a economia brasileira teve. Em 1985 o PNB do Brasil era superior ao da Inglaterra, ao da Espanha, ao da Itália! Aonde está o Brasil de hoje? com os quinze anos de PT recuamos totalmente e enterramos os sonhos que apareceram nos anos 60 quando foi fundada Brasília, ao som de Vinicius, Jobim e João Gilberto.
    Como título respondo: “Em nome de Neymeieir, Tom, Vinicius e João Gilberto, por favor, acreditemos no Brasil do futuro”. Mas, para fazer isso, é preciso ler Das Kapital!.

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    • Felix Krull // 28/05/2016 às 5:47 am // Responder

      O senhor Benoit, douto e ‘radical’, acredita no país do futuro. Tem um projeto de país, um projeto nacional. Viva a forma estatal! Três vivas à mercadoria!

      Se utilizasse melhor seu tempo, lendo algo mais substancial do autor desse textinho ao invés de escrever devaneios Negacionistas da Negação, saberia que os pressupostos teóricos de Alysson estão muito bem alicerçados na tal “estrutura”, n’O Capital e nos Grundrisse.

      Já o PT, que se exploda.

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    • António Henrique da Silva // 09/02/2017 às 5:14 am // Responder

      Com certeza você deve ter lido!

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  3. Marcus Azaziel // 26/05/2016 às 6:41 pm // Responder

    TODO DIREITO É UM GOLPE???!!! ENTÃO, A DEMOCRACIA É IMPOSSÍVEL?! NÃO HAVERÁ DIREITO NO SOCIALISMO E SEQUER DEVEMOS PROPÔ-LO PARA UMA TRANSIÇÃO AO MESMO? O Direito e o Estado existiam antes do Capitalismo! Marx sabia disto e afirmou (em Crítica ao Programa de Gotha, publicado pela Boitempo) que “todo direito é um direito de desigualdade” e não que era Golpe de Estado! Mascaro indevidamente cita Das Kapital em seu auxílio. Como podem publicar as bobagens enunciadas por Mascaro??!! Francamente… se ideais assim prosperarem só podem resultar em arbítrio e totalitarismo, como vimos na União Soviética e em outros países.

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    • Marcus Azaziel // 04/03/2018 às 6:21 am // Responder

      COMPLETO MEU COMENTÁRIO ANTERIOR, agora de modo mais ponderado, para esclarecer os principais problemas científicos e políticos que, “à luz” da História, decorrem das postulações que Mascaro assume (em especial a partir da obra de Pashukanis). Faço-o também a fim de que a irritação que senti não contribua a atitudes sectárias, ainda que eu faça oposição a ideias que, avalio, podem ter efeitos danosos já verificados.

      O problema principal ao qual quero me referir advém do postulado de que o Direito só existe no Capitalismo (que, portanto, só estaria ligado um modo de re-produção social mercantil em escala ampliada). Mascaro, como no curso sobre a obra de Pashukanis que a Boitempo divulgou, afirma que Direito e conceitos associados como o de cidadania e até mesmo o Estado (!), seriam exclusivamente capitalistas. É mesmo? Não existiu Estado antes do Capitalismo? Não ocorreram Constituições? Não houve o Direito Romano? Não existia antes do Capitalismo o Direito Canônico, da Igreja Católica? A noção de cidadania não existiu milênios antes, na Cidade-Estado Atenas?

      NEM O ESTADO NEM AS CLASSES NEM O MERCADO SURGIRAM COM O CAPITALISMO! O DIREITO TAMPOUCO. Existiu em muitas outras sociedades com classes sociais, antes do Capitalismo! A postulação de Pashukanis é comprovadamente falsa, recusando o Direito como algo mais amplo que sua conexão com as categorias econômicas capitalistas. Existe controvérsia sobre a existência de Direito em sociedades sem Estado (portanto, sem classes sociais, nem mercado). Pode- se querer reduzir o Direito à normatização da desigualdade na repartição dos produtos do trabalho coletivo, EM SITUAÇÕES COM PROPRIEDADE PRIVADA (no caso do Capitalismo, com apropriação de tempo de trabalho alheio assalariado não-pago). Ainda assim…

      Não existe sociedade (com ou sem Estado) em que não haja normas de convivência dos mais variados tipos, com maior ou menor coercitividade. No caso de sociedades estatais que não eram capitalistas, por que Marx mencionou o Direito Romano (o qual surgiu muitos séculos antes do Capitalismo e “renasceu”, no século XV, salvo engano, durante crise do Feudalismo)? Foi usado para se transitar ao Capitalismo! Mesmo no Comunismo não poderemos, presumo, dispensar legalidade, muito menos numa transição (nacional) ao Socialismo-Comunismo (mundial).

      O que houve na União Soviética, ao menos por alguns grupos, antes mesmo do domínio de Stalin, foi uma interpretação equivocada da frase de Marx em que afirmou: “todo direito é um direito de desigualdade”. Para Marx, durante a transição… ou Ditadura do Proletariado, ou Primeira Fase do Comunismo (a qual, segundo ele e Engels, só poderia ser mundial) ainda haveria um Direito, com norma burguesa (a cada um segundo o seu trabalho). RESTA DEIXAR CLARAS AS DIFERENÇAS ENTRE:

      – REVOLUÇÃO POLÍTICA NACIONAL (que deve ser distinguida de Golpe de Estado e pode ter caráter socialista, mas não muda per se o modo de produção capitalista) e…
      – REVOLUÇÃO PLENA, MUNDIAL, de todo o modo de re-produção social (a qual pode ser chamada de SOCIALISMO OU PRIMEIRA FASE DO COMUNISMO). Na União Soviética este problema foi vivenciado… NO DIREITO e NA ECONOMIA (COM A NEP…).

      Na situação da Revolução Russa, Pashukanis não esteve isento de equívocos ao supor que não apenas o Comunismo, mas até uma transição (a definir…) poderia dispensar qualquer Direito! Salvo engano (repito, salvo engano, menciono sem consultar o seu livro), ele hesitou sobre a validade do Direito até mesmo no Socialismo, como uma primeira fase comunista! Ora…
      O Direito, como práxis de agentes sociais a caracterizar, logo, não somente agrupamento de normas do Estado, não tem como “objeto” apenas entes econômicos e políticos, como classes sociais. Diz respeito também à relação entre os sexos (entre homens e mulheres; sobre se não ser heterossexual é legítimo… por exemplo); ao casamento; à reprodução como procriação (adoção de filhos; aborto etc.)… à vida em geral (e também à morte: eutanásia) bem como às nossas relações com outras espécies no planeta (ecologia…)! São elementos de re-produção. Está implicada a economia (como práxis de sustentação, da criação dos meios que mantêm os corpos vivos), mas não só! Na União Soviética, logo depois da Revolução, foram criadas leis facilitando o divórcio, “eliminando” a discriminação a homossexuais etc. Para além do Capital…

      Se confundirmos o Direito com o Capitalismo e, então, com o domínio burguês, passaremos após uma revolução, num suposto Socialismo, à negação do Direito: um totalitarismo! Neste, todavia, continuaria a existir um Direito, imposto pelos novos mandatários, sejam quais forem. Pensar dialeticamente, percebendo a unidade e a diferença, é sempre importante! Tão importante que Pashukanis foi vítima de uma ditadura proclamada socialista. QUERER SUPERAR A DEMOCRACIA SEM REALIZÁ-LA (NÃO APENAS DE JURE, MAS DE FATO, COMO AUTÊNTICO GOVERNO DO POVO) RESULTA NO SEU OPOSTO… e o Direito ainda é válido…

      Juristas soviéticos em polêmica à época da Revolução Russa supunham não ser necessário um Direito Socialista, por ser aquela uma Sociedade de Transição. Então, para quê foi escrita uma nova Constituição? Este raciocínio era análogo ao de Lenin e Trotsky em relação às artes, recusando uma arte proletária (ao contrário do que queriam os participantes do Proletkult). Entretanto, não eram os mesmos fenômenos e a relação da práxis jurídica com o Estado era diferente…

      Para Marx, todo Direito seria um direito de desigualdade. Numa sociedade em que a desigualdade seria superada, haveria apenas o direito burguês na transição (“a cada um segundo o seu trabalho”). Entretanto, ainda assim seria um Direito e este não se reduz à economia! Aos sucessores de Marx, sobretudo os bolcheviques com a árdua tarefa de organizar pela primeira vez uma revolução socialista, coube implementar o que Marx postulou (Pashukanis entre eles).

      Pashukanis teve insights brilhantes. Anotou variações ao longo da História, porém, parece (repito: parece…) uniu tudo como se fosse uma preparação para a realização do Capitalismo. Identificou justiça e troca; Direito e troca econômica etc. Como Vice-Comissário do Povo para a Justiça escreveu: “No atual período de transição… O Proletariado deve ter uma visão crítica, não apenas em relação à Moral e ao Estado burguês, mas também em relação ao seu próprio Estado e sua própria Moral.” Concordo, mas isto supõe moral e ainda há Estado! Também Direito. Penso que a teoria marxiana, mesmo com adendos importantes posteriores, ainda é precária a respeito disto.

      Pashukanis “pagou caro”, sim (foi assassinado nos famosos “Processos de Moscou”, pelo Partido-Estado). Uma legalidade que garantisse direitos individuais, liberdade de expressão etc. teriam sido úteis… sem a ilusão de que bastariam para impedir o “arbítrio”, o que só a ação política pode fazer. Minhas considerações, acima, não são “fechadas” e sim notas para se confirmar, ou não, o que disse Pashukanis, a fim de prosseguir na investigação, sem confundir Revolução e Golpe de Estado.

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      • Marcus Azaziel // 04/03/2018 às 6:26 am // Responder

        ERRATA: ANTES DA POSTAGEM TENTEI ELIMINAR DO COMENTÁRIO A MENÇÃO AO DIREITO CANÔNICO, MAS NÃO CONSEGUI. A referência a considerar é apenas ao Direito Romano e à existência da Igreja Católica naquele período.

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  4. Célia Mota // 27/05/2016 às 9:25 am // Responder

    O professor Alysson Mascaro torna evidentes as relações de classe que interferem no ordenamento jurídico brasileiro. Mostra como o comportamento, as atitudes e a cultura do meio jurídico refletem uma visão de mundo burguês, classe média, que judicializa o combate a pobreza e as políticas sociais. E coloca algemas na liberdade de expressão.

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  5. Muy buen trabajo, estoy leyendo el libro y es muy contundente en sus explicaciones y argumentos. Es un rica obra que sin duda alguna cambiará la forma en cómo se deberá comprender el Estado en su naturaleza y fundamentos.

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  6. Excelente texto, de Alysson mascavo, de clareza límpida faz com que nós venhamos ter entendimento do funcionamento dessa forma de reprodução social nós dias atuais.

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  7. Marlene Araújo // 22/12/2023 às 5:13 pm // Responder

    Prof Alysson Mascaro, em mais uma reflexão importante sobre questões relacionadas ao MPC e formas de sociabilidade. PARABÉNS e agradecimentos por mais importante reflexão. Marlene Araújo (Profa UFPB), em tarde de 22/12/23 – 17:13.

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