Em defesa da utopia

lula souto maiorPor Jorge Luiz Souto Maior.

Por mais razões que se tenha para perceber o quanto uma parcela reacionária da sociedade se aproveita da situação para impulsionar sua pauta, a defesa pública de Lula, nas condições em que os fatos se apresentam, não é apenas um erro de estratégia dos movimentos sociais é um suicídio histórico.

No artigo, “Dialética das Manifestações”, publicado em março de 2015, escrevi:

“O PT ruiu moral e ideologicamente e é por demais importante que a esquerda brasileira reconheça isso de uma vez, para que os argumentos da moralidade, que embora possam ser desprovidos de uma materialidade imanente, mas que não são de modo algum desimportantes, apropriados pela direita, não continuem quebrando a tradição histórica da esquerda de apontar as dissimulações da exploração da força de trabalho.

É importante, ademais, que o próprio PT, se em algum dia foi um partido de esquerda, tenha a honradez de sofrer sozinho as consequências de seus desmandos, não querendo levar consigo, em conversa de afogado, a esquerda brasileira, os movimentos sociais e as mobilizações sindicais, que, paradoxalmente, impulsionados pelas manifestações de junho de 2013, encontram-se em franca ascensão.

O Manifesto do PT, recentemente publicado, é uma tentativa desesperada de auto-salvação, que chega a se constituir um autêntico escárnio à consciência ao buscar criar a fantasia de que as manifestações de março de 2015 instauraram uma luta da direita contra os avanços sociais promovidos pelo PT, que estaria, assim, sendo atacado não pelos seus defeitos, mas pelos seus méritos. Reproduzindo uma lógica já tradicional, o PT se declara de esquerda e transforma todos que são contrários à salvaguarda do Partido em inimigos ou em membros da direita golpista.”1

E a coisa em vez de melhorar parece estar piorando, pois cerca de 60 (sessenta) entidades, dentre elas MST, CUT e UNE2, ligadas a movimentos sociais, resolveram, publicamente, sair em defesa do ex-Presidente Lula contra o que chamam de perseguição, mesmo após empreiteiras – que não foram desmentidas por ninguém – terem admitido que realizaram – sem serem remuneradas por isso, ou seja, gratuitamente – reformas em um sítio de propriedade de um sócio do filho do ex-Presidente, que é assiduamente frequentado pelo ex-Presidente, e um tríplex no Guarujá, que quase foi adquirido pelo ex-Presidente, mas cujo verdadeiro proprietário também ninguém sabe quem é.

Ora, que o ex-Presidente tem todo o direito de possuir propriedades ninguém há de negar. Aliás, não se está dizendo que tais imóveis sejam de sua propriedade, pois a questão de fundo nem é essa. É evidente, também, que, do ponto de vista jurídico, não se pode negar ao ex-Presidente o seu direito fundamental a ampla defesa, que inclui a presunção de inocência, resultando disso a pertinência do repúdio à condenação pública prévia que parte da grande mídia tem feito do ex-Presidente (até porque esse pressuposto serve a todos os cidadãos brasileiros), assim como à forma desmedida e sem o devido respeito às garantias processuais e jurídicas com que se tem invadido e exposto a vida privada do ex-Presidente. Destacando-se, também, a desproporcionalidade como essa mesma mídia trata os erros cometidos por políticos de outros partidos, ao mesmo tempo em que se mostra conivente com as inúmeras ilegalidades praticadas por uma quantidade enorme de entidades e personalidades, notadamente no que se refere aos direitos dos trabalhadores, chegando ao ponto de defender tais atitudes publicamente. Certo, ainda, que merecem ser denunciadas a utilização seletiva da lógica punitiva e a forma como os conservadores se valem da situação para, sem qualquer relação de causa e efeito, apenas com o uso da força da propaganda, propor retrocessos e estimular uma pauta-bomba no Congresso Nacional.

E é oportuno ressaltar que esse tema em nada se relaciona com o pedido pelo impeachment da Presidenta Dilma, que ao menos até o momento não possui nenhuma base material e seu manejo, da forma como foi conduzido, representa, sim, uma ofensa ao Estado Democrático de Direito.

Mas daí a sair em defesa do ex-Presidente com o argumento de que a reforma bancada pela empreiteira no referido sítio “é a coisa mais natural do mundo”3 vai uma distância enorme que os movimentos sociais que reivindicam a realização de justiça social não podem deixar de reconhecer, sob pena de perecimento da utopia que alimenta seus atos e suas reivindicações. Não se pode, ademais, cair na armadilha da adoção da linha de que o processo tem cunho político porque, afinal, a política está em tudo, incluindo a própria atuação dos movimentos sociais, os quais devem, na essência, recusar toda e qualquer forma de concessão de privilégios a cidadãos “diferenciados”.

Ora, a ligação promíscua do ex-Presidente com empreiteiras, independente do que essa relação tem de legal ou ilegal (o que deve ser apurado pela vias regulares dos poderes institucionalizados, com o necessário respeito às garantias processuais), deve merecer dos movimentos sociais o mais alto repúdio, afinal o fruto dessa relação próxima do governo com as empreiteiras, que se aprofundou no longo período de preparação para a Copa de 2014, foi o que motivou o grave retrocesso para a classe trabalhadora da retomada da pauta pela ampliação da terceirização. Lembre-se, ademais, que no governo Lula não houve avanço concreto de direitos trabalhistas e um dos principais trunfos do argumento dos avanços sociais, o Minha Casa Minha Vida, não se desatrelou do interesse das grandes empreiteiras, o que se verificou, igualmente, em Santo Antônio, Jirau e Belo Monte, tudo regado a muita terceirização, supressão de direitos e sacrifício de vidas.

O que alimenta o sentimento de esquerda é a utopia de um mundo sem exploração do trabalho, justo e igualitário. E para se prosseguir nesta direção é fundamental manter um raciocínio imanente, percebendo as formas de exploração que favorecem o grande capital e que alimentam as acumulações e as desigualdades, além, é claro, de não naturalizar as mazelas de um sistema que perpetuam as injustiças.

Enfim, o que o ex-Presidente Lula fez (ou deixou de fazer), para obter, ainda que indiretamente, benefício material decorrente da atuação de empreiteiras é, no mínimo, um desvio ético, sendo que na perspectiva da preservação das utopias de esquerda é completamente condenável. Ou seja, é incompatível com o movimento de esquerda visualizar a formalidade jurídica para legitimar uma atitude que atenta contra a sua própria razão de ser. Por mais razões que se tenha para perceber o quanto uma parcela reacionária da sociedade se aproveita da situação para impulsionar sua pauta, a defesa pública de Lula, nas condições em que os fatos se apresentam, baseando-se em argumentos que tentam ver como naturais formas de relacionamentos do governante com o setor privado para favorecimento pessoal não é apenas um erro de estratégia dos movimentos sociais é um suicídio histórico, com o grave risco de arrastar consigo os sonhos de muita gente!

NOTAS

1. Jorge Luiz Souto Maior, “A dialética das manifestações“, 05 de abril de 2015, Esquerda Diário, acesso em 14/02/16.

2. “Mais de 60 entidades fazem ato em defesa de Lula na próxima quarta-feira“, Jornal do Brasil, 12/02/2016, acesso em 14/02/16. Esclareça-se que embora a AJD conste como integrante do movimento a entidade, da qual sou membro, não o integra.

3. Como fez o ex-chefe de gabinete do ex-Presidente Lula, Gilberto Carvalho, conforme noticiado pela Folha de S.Paulo, em 04/02/2016. Acesso em 14/02/16.

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Jorge Luiz Souto Maior define de forma concisa o que é um megaevento, e os sentidos desse tipo de dispositivo para o Brasil no contexto do capitalismo global. Confira:

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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.

9 comentários em Em defesa da utopia

  1. Antonio Elias Sobrinho // 18/02/2016 às 2:26 pm // Responder

    Em primeiro lugar quero dizer que esse negócio de Lula como homem de esquerda é uma invenção das esquerdas que, em função da grande popularidade do operário, via nele o instrumento de alçar ao poder maior. Com relação a questões morais, naquela época, em que os políticos tradicionais eram identificados com a corrupção e a mancebia com o negócio privado, era uma maneira de cravar uma cunha na ordem secular de dominação das elites, tentando atrair as grandes massas contra algo que demonstrava sinais de cansaço e nojo.
    Porém, quando o jogo começou seriamente, e o PT, capitaneado por Lula e Zé Dirceu, percebeu que nesse país para dar grandes voos na política é preciso muito dinheiro e, este, encontra-se concentrado nas empresas disponíveis para negócios e não para doações, então, foi por aí que andaram. Fazendo 1 negócio aqui, outro acolá, só que no capitalismo os negócios não podem parar, sob pena de morrer na praia.
    Hoje, sabe-se que na época as pessoas de esquerda possuíam várias interpretações sobre isso, alguns, inclusive figurões, achavam que uma vez se lambuzando um pouco e conquistando o poder, depois passavam a perna nos homens e depois voltavam ao leito natural, que era a defesa dos interesses do povo e da ética e, se não fosse possível a ética, pelo menos se os negócios fossem bem feitos, valiam à pena porque a causa era nobre, compensava.
    O problema é que essas coisas quando começam é difícil a separação do que deve ir para o público e o que pode ser apropriado de forma particular.
    Nessa confusão, Lula e etc. e tal foram jogando com a barriga e muitas pessoas da esquerda não perceberam a sutileza e, até hoje ainda acompanham o andor.

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  2. Guaracy Araújo // 18/02/2016 às 7:59 pm // Responder

    Que tal mudar o nome do artigo de “Em defesa da utopia” para “Em defesa do udenismo”?

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  3. “O PT ruiu moral e ideologicamente”, “argumentos da moralidade”, “apropriados pela direita”, “não continuem quebrando a tradição histórica”.

    Vou tomar este texto por irrefletido na ânsia de cumprir uma obrigação editorial.

    O PT não ruiu, agiu como se esperava de um partido de centro esquerda ao assumir o poder, uma leitura das críticas de Marx à social democracia, ou um pouco de boa vontade levaria o autor a essa nada dolorosa e muito menos assustadora conclusão.

    Qual partido da década de 80 amadureceu como vinho? Porque o PT deveria subir o rio e ser o único partido na história a se depurar depois de alçado ao poder? Lembremos que o PT é um partido político e não uma congregação de frades (apesar de ser menos pecador), o papel crítico de seus anos dourados era o papel natural e esperado de um partido de esquerda inciando se no meio da redemocratização, lutando para eleger seus candidatos, no fim de uma ditadura, nada mais adequado, ser crítico. Se o senhor foi militante sabe que sempre houve rachas e como qualquer reunião de seres humanos, em momento algum como dita o conto da carochinha, foi incorruptível nem mais ético do que qualquer outra agremiação buscando financiamento eleitoral no Brasil da década de 80, cada um com seus programas e ideais fazendo o que era possível…

    A pecha do: “tão limpinho” pois então deve sofrer mais para espiar seus pecados, é mero moralismo de virgindade, pois na ciência penal, que há bem pouco se pauta no bom senso, é o reincidente, este mesmo do dedo em riste a quem o senhor que submeter o sacrifício, este sim, o inimputável, deveria ter sua pena acrescida e não o contrário, pois o réu primário tem maior chance de recuperação, agora, dizer que é mera formalidade jurídica a defesa, dado o “reconhecido” delito moral não tipificado e nem julgado pelo qual o massacram… oras bolas!

    As hipóteses que nem foram consideradas:

    -A CUT, a UNE e o MST… se beneficiariam ao se descolar do PT neste momento? Considerando, financiamento, unicidade sindical, história conjunta e alianças políticas, considerando o óbvio, que a presidente é do PT, este o segundo maior partido do país. Utopias não enchem barriga…

    -O PT e Lula devem ser sacrificados em nome dos argumentos da moralidade apropriados pela direita? O senhor acredita que resoluto este conflito, aqueles se darão por satisfeitos?

    -Numa manchete “UNE, CUT e MST… abandonam Lula e PT as piranhas”, os apresentadores da Globonews sofreriam sincopes devido aos orgasmos incontroláveis que teriam? Aécio iria morar no Rio de vez e abandonaria a política?

    -O senhor acredita na lenda do “vácuo político”? Os mais variados aparelhos privados hegemônicos que pedem o sacrifício estão com meio bete dentro, Gilmar presidente do TSE, Cunha ainda presidente da Câmara, essas “esquerdas” que o senhor aponta aguentariam um peteleco?

    -O discurso contra hegemônico do manifesto do PT é apenas retórico e mira a militância. Tenha dó…

    Que o Lula fala demais e que de quando em quando me obriga a um facepalm é uma coisa, o Aécio, que é ainda mais falastrão e enrolado com inúmeras tretas não investigadas, e nem por isso você vê alguém traíra como o Serra publicando abertamente a necessidade de seu sacrifício, mesmo tendo vantagens objetiva a vista.

    Relembro, Eduardo Cunha ainda é presidente da Câmara dos Deputados, o STF proibiu o HC, Zelotes deixou bilhões pra lá, para investigar besteiras, operação sigilosa sendo revelada na base “do sem querer querendo” entregar um naco de poder em meio a uma crise na esperança de defender o que mesmo?

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    • Hugo Pequeno Monteiro // 27/02/2016 às 2:23 pm // Responder

      Inicialmente, des777br não é um nome nem tampouco um identificador. Como você não deixou seu nome, tenho que chamá-lo disto: des777br. As suas considerações sobre o excelente artigo do Professor Souto Maior são bastante reveladoras do tipo de oportunista, carreirista e ávido por cargos públicos que infesta já há algum tempo a militância do PT. O PT do governo federal está basicamente composto destes oportunistas citados acima e de um bando de torcedores fanáticos das camisas vermelhas que vai as ruas lutar contra seus adversários da torcida organizada azul, leia-se os fascistas do PSDB e caudatários. A associação do PT com a cor vermelha é muito ruim para a ESQUERDA que históricamente se identificou com esta cor. Cor que representa o sacrifício associado ao sangue derramado na luta por ideais revolucionários. O PT com seu ideário “pragmático” e praticamente da “realpolitik” está anos-luz de distância do ideário da ESQUERDA real, aquela que como o Professor Souto Maior luta para que a hoje utopia se converta em realidade no futuro. Como diria o grande Karl Marx, não se pode querer transformar uma realidade cometendo indefinidamente os erros do passado como o faz o governo do pt. Nas palavras do próprio Marx, a classe trabalhadora não pode mais se imaginar reeditando revoluções do passado. Ela tem que olhar para o futuro e neste processo não hesitar um só instante em remover entulhos históricos como o PT e jogá-lo definitivamente na lata de lixo da HISTÓRIA.
      Chega de “pragmatismo” e “realpolitik”!
      Parabéns Professor Souto Maior!

      Hugo Pequeno Monteiro
      Professor Titular
      Departamento de Bioquímica
      Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo

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  4. Rapaz, vc é um “operador do direito” mesmo. Vade retro.

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  5. Antonio Tadeu Meneses // 20/02/2016 às 11:53 am // Responder

    Como se sente uma pessoa que descobre que aqueles que falam em seu nome seguem o pensamento e os princípios de Goebbels?
    “Nós não falamos para dizer alguma coisa, mas para obter um certo efeito”
    Joseph Goebbels

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  6. Nelson Breanza // 09/03/2016 às 1:23 pm // Responder

    Parabéns pelo artigo Jorge, tenho total acordo com ele. Como diria um velho comunista da região onde eu militava, ” … a coisa mais difícil é manter a coerência política … ” e eu acrescento, coisa difícil é perceber que antigos companheiros têm postura relativa na questão da “presunção da inocência” e que varia de acordo com sua identidade ideológica. Abraço.

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