O que acontece com os médicos brasileiros?

14.12.09_Emir Sader_MédicosPor Emir Sader.

Talvez nós todos nos tivéssemos deixado levar por uma imagem imaculada do médico. Afinal, essa pessoa que tem o poder de nos curar das doenças, de minimizar nossas dores, de estender vidas, deve ter um dom que está acima das contradições terrenas.

A própria imagem da figura com avental branco, que nos receita – de forma sempre ilegível, talvez para confirmar que são de outro planeta, de outra índole – remédios que só nos fazem bem, pode nos ter induzido ao erro. Quem se dedica – mesmo se muito bem remunerado – a cuidar de quem está doente, de quem sofre, só pode ter valores humanistas, ser um ser solidário. Aprendemos que a profissão de medico é sacrificada, que ele tem que estar disponível, a qualquer hora, a deixar tudo de lado, mesmo um almoço dominical com a família, para correr atender casos de emergência, ao simples toque de um telefone.

Uma profissão como essa só poderá ser exercida por seres generosos, solidários, humanistas, dispostos a todo tipo de sacrifício. Essa a imagem a que fomos acostumados.

De repente, quando o Brasil faz a lista dos lugares em que são necessários médicos e consulta que médicos brasileiros estão dispostos a ir onde mais são necessários, onde mais há doenças e carência de atendimento, poucos, muito poucos, se dispõem a aceitar. As razoes alegadas são muitas: falta de condições ótimas de atendimento nesses locais, salários insuficientes, entre outras.

Mas onde estão esses médicos, formados, em sua grande maioria, em universidades públicas, gratuitas, que oferecem os melhores cursos de medicina do Brasil? O mapa da localização desses médicos, formados com recursos públicos, é totalmente contrastante com onde estão as necessidades de atendimento da população. Eles estão situados onde há uma clientela de maior poder aquisitivo, que pode pagar caro, muito caro às vezes, pelas consultas, pelos remédios e pelos tratamentos recomendados.

Isto é, o Estado brasileiro forma médicos, com recursos públicos, arrecadados pelos impostos da população cuja maioria não consegue ver seus filhos chegar às universidades, para que eles não devolvam à sociedade, através de serviços públicos, pelo menos parte do que se gastou com sua formação. Esta é usada para que se acumule somas de recursos apropriados privadamente, sem correspondência, nem com o que a sociedade gastou com sua formação, nem com as necessidades da maioria da população.

Então o governo se viu obrigado a trazer médicos de fora do Brasil – a maioria, de Cuba – pelo programa Mais Médicos para assumirem os postos que os médicos brasileiros rejeitaram. Resultado da recusa da grande maioria dos médicos brasileiros de atender as necessidades da grande maioria dos brasileiros.

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A situação incômoda para essa maioria de médicos brasileiros os levou a reações que desnudaram a verdadeira imagem da maioria dos médicos brasileiros. Numa atitude elitista, corporativa, tentaram, primeiro impedir que os médicos cubanos viessem. Depois, tentaram constrangê-los, para que não assumissem as funções que vieram.

Saíram às ruas para, vergonhosamente, reivindicar seu monopólio de exercer a profissão, a cuja dignidade demonstraram não estarem à altura. Houve afirmações indecentes dos que defenderam essas posições – como a de uma jornalista, que disse que: “As médicas cubanas se parecem a empregadas domesticas”, numa expressão de discriminação, de racismo e de elitismo indigna de um ser humano. A não ser que ele estivesse querendo dizer que uma pessoa que no Brasil seria empregada domestica, em Cuba consegue ser médica! Feliz o país em que os médicos têm a cara do povo e não a cara de elites desvinculadas do povo!

Esses médicos acharam que, como têm autoridade profissional sobre seus pacientes, iriam ter força para convencê-los a não votar na Dilma – não se sabe com que argumentos que pudessem ser aceitos por um brasileiro comum. Fracassaram. Não conseguiram esse efeito político e, derrotados, nunca mais tiveram coragem de fazer manifestações nas ruas. Enquanto que o apoio ao programa Mais Médicos foi rapidamente se aproximando a 90% da população, conforme o trabalho dos médicos em municípios que nunca tinham tido atendimento medico local, foi mostrando seus resultados. Os brasileiros foram se encantando cada vez mais com os médicos cubanos, tanto por sua experiência profissional para, mesmo em condições de precariedade de atendimento, cumprir suas funções, como também pelo espirito de solidariedade e de sacrifício com que atendem a todos.

As cenas escandalosas reveladas de Faculdades de Medicina da USP – que podem perfeitamente ocorrer em outras similares – vieram complementar a nova imagem que o Brasil descobriu como a verdadeira personalidade da grande maioria dos médicos. Estupros, violências de toda ordem contra mulheres, atitudes machistas vergonhosas das próprias autoridades das Faculdades, vieram revelar qual o lugar onde estão se formando a maioria dos médicos brasileiros, esses mesmos que tiveram essa atitude elitista contra os médicos cubanos.

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O Brasil precisa mudar o tipo de ser humano que se dedica à medicina. Mesmo com dificuldades, a política de cotas começa a formar novas gerações de médicos, eles mesmos originários dos setores populares da sociedade, com compromisso com as necessidades dessa população. Que terão que fazer plantões nos SUS, que terão que se deslocar para onde a população brasileira precisa.

Ai estaremos formando médicos que correspondam àquela imagem que tínhamos dos médicos – de dedicação, sacrifício, solidariedade, humanismo – de atuar para diminuir a dor e as doenças dos outros.

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A Boitempo acaba de reeditar o clássico Estado e política em Marx, de Emir Sader. Confira o depoimento abaixo, em que Sader relembra o contexto da defesa e publicação desta que foi a primeira tese sobre Marx defendida na USP:

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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.

23 comentários em O que acontece com os médicos brasileiros?

  1. ELIAS PAULINO // 10/12/2014 às 9:49 am // Responder

    Até parece que com médicos cubanos chegamos ao paraíso, faltam remédios, para cumprir a ordem da receita prescrita. Talvez até se consiga através do lento e indecifrável Judiciário.

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  2. Margarida F. M. Mendes // 10/12/2014 às 12:16 pm // Responder

    Emir não dá para generalizar…. Existem médicos, jornalistas, políticos, advogados e demais categorias bons, competentes , idealistas e outros profissionais que infelizmente contribuem para a má fama da categoria profissional em que atuam. O que nos devemos perguntar é porque na sociedade contemporânea está grassando esta falta de ética em todos os níveis desde o pessoal até grupos e associações de n pessoas? Porque esta subversão de valores éticos intrínsecos é observada em uma amostragem significativa indivíduos independente das suas posições de ideologia política? Certamente muitas são as perguntas assim como muitas são as respostas. Compete á cada um de nós dentro dos nossos limites de compreensão e esfera de atuação buscá-las, responde-las e agir procurando contribuir para um mundo melhor.

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  3. Caro Emir,
    É triste, mas imprescindível ao meu ver, constatar que os problemas relatados não se restringem ao médicos brasileiros. O autocentrismo, a ganância, o materialismo, a análise superficial de fatos históricos interdependentes, o ódio, o preconceito, a incapacidade de se compadecer, enfim, a depreciação crescente da racionalidade aliada a valores humanos… este é um sintoma evidente do estado mental da sociedade contemporânea, doente, patológico!
    Esses médicos (porque, claro, não são todos) são apenas exemplares dessa doença. São vítimas, como são também alguns engenheiros, advogados, garçons, jornalistas, faxineiros, filósofos, padres, professores, frentistas…
    Estamos todos no mesmo barco. Precisamos reconhecer, enfrentar e superar o verdadeiro obstáculo.

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  4. ~vicente torres mourâo // 10/12/2014 às 9:53 pm // Responder

    Os médicos são filhos da burguesia sem nenhuma sensibilidade para com o povo .Infelizmente são para servir a burguesia que as nossas universidadeas públicas formam m´edicos Ainda falam mau8 das cotas para negros e quem estudou nas escolas públicas .

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  5. Um babaca desse deveria ter vergonha na cara e deixar de ser idiota.
    Quer aparecer? Bota a melancia na cabeça e se mata…
    Um imbecil desses deveria sofrer no SUS que mata tanta gente pobre nesse brasil.

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    • Tomara que você George não seja um doutor. Se for é uma pena, não tem argumentos por isso seu discurso é ignorante. Você quer criticar o prof. Doutor Emir Sader, estude, se qualifique, tenha argumentos, não baixe o nível seu desqualificado.

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      • José Celso Garcia // 05/01/2015 às 8:55 pm // Responder

        Tõ contigo Fernanda. Falo de cátedra por ter implantado em meu município as unidades básicas de saúde (chamávamos de Centros de Saúde de Bairro), com médicos voluntários e espaço criado pelas próprias comunidades. Foi o início, ainda no começo dos anos oitenta, de um sistema municipal de saúde. Hoje, oficializado, com grande resultatividade. Não existiria se fosse se basear em mercenários da doença. Mas em médicos dedicados e uma população organizada. O Emir está corretíssimo.

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    • José Celso Garcia // 17/12/2014 às 5:02 pm // Responder

      Esta resposta do George (que nome é este?) confirma tudo o que escreveu o Emir Sader. Sem argumento, desqualifica o êmulo. Que pena. Trabalho em UTI há 27 anos. A maioria dos pacientes são do SUS (90%) e são tratados sem qualquer discriminação. E temos número de sucesso comparável a qualquer UTI (80%). São Lourenço – MG

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  6. Sou a favor do programa, só discordo da remuneração MUITO desigual dos cubanos.

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  7. Não, não estamos formando médicos que correspondem àquela imagem que tínhamos dos médicos. As pessoas quando passam pelas Faculdades de Medicina e se deparam com o corporativismo, o conservadorismo e elitismo da academia, sofrem uma lavagem cerebral.
    Não sei de fato o que acontece onde seres bons transformam-se em monstrinhos capitalistas, sem o mínimo de consideração e respeito ao ser humano. É essa a imagem hoje que os médicos transmitem.
    E suas atitudes mesquinhas são respaldadas pelo seu órgão de classes, pelas suas entidades no geral.
    É uma mudança na estrutura da formação do médico brasileiro que necessita urgentemente ser feita. Uma formação mais humanizada, mais voltada para o social, para o respeito ao ser humano, e menos voltada para a reprodução de preconceitos. Preconceitos inclusive em relação aos outros profissionais de saúde. A definição de multiprofissionalismo ainda não conseguiu ser incorporada por esses médicos. E isso com certeza é deficiência na formação.
    Médico não é semideus e sim um profissional que cumpre um papel específico na sociedade, como tantas outras profissões.

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  8. Não chegamos ao paraiso mas temos atendimentos onde antes não tínhamos com os médicos brasileiro.

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  9. Zanon Passos // 11/12/2014 às 2:24 pm // Responder

    Sou médico e atuo em serviços de saúde do SUS desde 2008. Optei por não me afastar da minha família e trabalho/trabalhei em municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro. Em média, acabo ficando 1,5 em cada serviço. Isso nao se dá porque sou elitista ou porque não quero atender a quem mais precisa dos meus serviços. Em vários locais em que trabalhei, não tive carteira assinada, meu salário atrasou, faltavam medicamentos e insumos, havia uma demanda de atender a toque de caixa. Mas continuo insistindo. Deixei meu consultório particular e continuo trabalhando no SUS, com muito orgulho. Não posso falar por uma classe, mas posso falar por mim. E agradeço ao senhor, que não é médico, não passa pelos desafios que eu enfrento no SUS, e está divulgando uma visão parcial e enviesada do problema da saúde no país. Parabéns!

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  10. Elias Paulino, nós que vivemos nós grandes centros urbanos, possuímos planos de saúde não mensuramos a importância desse profissional que se submete a viver nos grotões, selva e caatinga. Mesmo não sendo o paraíso, acredito que é melhor do que não ter nenhum. Fiquei com vergonha ser brasileira, ao ver como foram recebidos por colegas brasileiros, que não vão para o sertão e não aceitam que outros o façam. Como é sabido por todos, os cubanos estão em todos os países do mundo, levando sua medicina preventiva. Os médicos brasileiros deveriam achar bom, pois assim diminuiria a demanda nos grandes centros. Aqui deveria ser como nos EUA, lá existem pouquíssimas universidades públicas. Só com muito dinheiro ou muito inteligente( bolsista), se consegue vaga. Os pais, desde que seus bebês nascem já começam a poupar para pagar a universidade.

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  11. fausto nunes dos santos // 11/12/2014 às 10:55 pm // Responder

    Parabéns pela forma fiel com que retratou o assunto…sem remedos.

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  12. É isso ai, temos que formar mais “Madres Terezas de Calcutá”. O problema não é a índole de quem forma em Medicina. Se fosse assim, todos os profissionais formados em instituições publicas deveriam “devolver” o dinheiro gasto pelo estado no aprendizado. Engenheiro teria que trabalhar nas obras do PAC. advogado para o estado, dentista atender de graça, professor dar aula de graça (já ta quase assim mesmo), e por assim vai. Não sejam hipócritas, ninguém trabalha onde não acha condições dignas. Queria mesmo que fosse como nos EUA, faculdade particular sim, mas TODOS hospitais também… mas com o tanto que o governo nos rouba a vida toda aqui no Brasil, daria de sobra pra pagar por isso.

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  13. Sou a favor do SUS, sou a favor das políticas sociais universais pensadas e elaboradas pelo Estado no enfrentamento das desigualdades sociais. Saúde é direito, não é mercadoria. É mercadoria para os médicos mercenários, que pensam em enriquecer às custas das mazelas da população.

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  14. Hahahah mas quanta imbecilidade. Todos os engenheiros, advogados, operários e professores podem ir livremente pro lugar que ganham mais dinheiro. Daí o médico é diferente, ele não pode, tem que servir a uma “causa nobre”. Isso não existe cara, temos o (bom) capitalismo, quem se dedica ganha bem, se dá bem e dita as regras. Qualquer classe se protegeria de uma concorrencia que entra abertamente no país, como esses cubanos, daí os medicos têm que tolerar. Uma barbaridade, o autor desse texto só pode ser comunista. Garanto que votou na Dilma hahahah

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    • Eu acho graça dessa gente que não vive a realidade de uma profissão e quer falar… Médico não é gente? Pelo amor de Deus! Escolhi a medicina por vocação e, já no vestibular, abri mão da vida! A gente não faz nada além de estudar quase a vida inteira. São INFINITAS noites sem dormir por causa de provas, outras INFINITAS vezes sem comer, são úlceras, desgastes emocionais… tudo pra ter que ler esse discurso ridículo de um bando de babaca que não conhece NADA sobre o assunto, um grupo de hipócritas que criticam porque é mais fácil falar mal do que apoiar!

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  15. Estranho que o autor do texto não esteja se dedicando ao magistério numa escola pública do interior do pais…. Poderia estar dando aulas em Alagoas, ou até na Amazônia …. Mas parece que escolheu trabalhar na USP…. Escolheu ter uma carreira no Magistério com um salário de encher os olhos….

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    • José Celso Garcia // 30/03/2015 às 8:29 pm // Responder

      Pois é, Jorge. Se ele estivesse numa escola no interior do Brasil, certamente realizando um bom trabalho, não teríamos a oportunidade de ler esta matérias tão lúcidas. O Brasil precisa de gente boa em todos os lugares, inclusive na USP, para que possam contribuir para formar mais e mais cidadãos que entendem que cidadania não é só direitos, mas e sobretudo deveres. Não há nada de estranho termos intelectuais que façam jus ao nome e nos lugares em que podem ser mais úteis ao país.

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  16. Tragam mais médicos cubanos, esses médicos brasileiros são um bando mercenários.

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  17. Trate-se com um médico cubano quando adoecer. Fácil falar deste amor todo para com o próximo quando não é você que tem que ir para uma periferia, ganhar um salário de miséria, sem a menor condição de trabalho e colocando sua vida em risco em meio à violência.
    Por que você não se sujeita a dar aulas nas mesmas condições? Prefere, lógico, contar com verbas estatais, bajulando Lulas e Dilmas da vida.
    Sou médico formado em universidade pública brasileira, católico (misto de ortodoxo com melquita), descendente bilateral de libaneses. Você é uma vergonha para a colônia libanesa brasileira. Tenho nojo do seu marxismo fajuto – um pleonasmo – e do seu português chinfrim. Apoia este governo asqueroso que quer transformar o Brasil numa nova ditadura comunista.

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