Protestos de rua e (pós-)neoliberalismo

13.08.08_Daniel Bin_Protestos de rua e neoliberalismoBlog da Boitempo apresenta em seu Espaço do leitor textos inéditos escritos por nossos leitores. Quer colaborar também? Saiba como no fim deste post!

Por Daniel Bin.

A inauguração em 2003 de um governo liderado pelo PT levou muitos a acreditar que iniciava-se uma trajetória de abandono do modelo neoliberal consolidado ao longo dos governos liderados pelo PSDB. Aliada ao esgotamento de um projeto econômico incapaz de cumprir o que fora prometido publicamente, a conquista do poder executivo federal pelo partido que se destacara em denunciar a falácia neoliberal parecia anunciar a nova fase. Projetava-se uma ideologia pós-neoliberal. Houve sim mudanças na condução da economia, contudo, fundamentos importantes permanecem os mesmos dados em 1999. Dali destaco o sistema de metas para a inflação, que segue até os dias de hoje subordinando as demais políticas econômicas, em especial os esforços fiscais no lado da despesa.

Tanto no hemisfério norte, donde fora irradiado desde meados dos anos 1970, como no Sul, onde chegou por volta dos anos 1990, os práticos do neoliberalismo prometeram desenvolvimento econômico. Sua sustentação ideológica era a de que o bem-estar social avançaria por meio do incentivo às liberdades e capacidades individuais dentro de um quadro institucional que garantisse mercado e comércio livres e os direitos de propriedade (Harvey, D. 2005. A brief history of neoliberalism, Oxford University Press [Neoliberalismo: história e implicações. Loyola]). A promessa de desenvolvimento, aliás, sempre foi meio para angariar legitimidade para ideologias econômicas cujo objetivo, não obstante, era a acumulação capitalista. Esse também foi o caso do liberalismo de tipo keynesiano que imperou até fins dos anos 1960 e que, devido às contradições do próprio modo de produção, não se sustentou.

Mas se por um lado hoje vemos com clareza que o modelo neoliberal não entregou o que prometera publicamente, por outro, foi exitoso em entregar o que fora projetado nos bastidores do debate público. O principal resultado foi a restauração do poder de classe do capital em geral e da finança em particular. Indicador sintético desse movimento é a evolução da relação entre taxas de juros reais e taxas de crescimento do PIB. Sua média nas sete principais economias capitalistas, que no período 1919-39 fora 2,40 e caíra para 0,36 em 1946-58, se restabeleceu em 1985-97 ao atingir 2,34 (Li, M. 2004. After neoliberalism, Monthly Review, v. 55, n. 8). No Brasil, essa relação, que fora negativa em 1,66 no período 1955-94, alcançou 3,72 em 1995-2011 (6,89 em 1995-2002 e 2,05 em 2003-11). Assim, se “a era neoliberal é a era da finança” (Duménil, G. & Lévy, D. 2004. Capital resurgent, Harvard University Press, p. 110), a proeminência desta última na apropriação da riqueza não nos autoriza afirmar que estamos em uma fase pós-neoliberal.

No plano internacional, um momento singular significativo que alimentou debates acerca do fim da fase neoliberal foi o estouro da crise das hipotecas estadunidense em 2008, que imediatamente se alastrou para os demais mercados mundiais. A quebra de algumas e a quase quebra de outras organizações financeiras, ao atingir justamente quem mais se beneficiava do modelo, logo acenderam esperanças no surgimento de alguma ideologia pós-neoliberal. É certo que não podemos negar que naquele momento o neoliberalismo sofreu um importante golpe de legitimidade. Isso fica claro quando comparamos o que prometeram publicamente os apologistas do livre mercado com o ponto a que se chegou, especialmente no Norte. Adicione-se que ali as marcas mais dramáticas têm sido o aumento do desemprego e os contínuos ataques às políticas de bem-estar na estrita lógica de enfrentamento de crises preconizada pelo complexo Wall Street/FMI/Banco Mundial ao qual se junta a Troika europeia, também formada pelo FMI.

Enfim, entendo que não se pode falar sobre termos adentrado numa fase pós-neoliberal nem aqui nem no Norte, coincidência que não surpreende, afinal todos esses são desenvolvimentos de um sistema capitalista que é mundial. A maioria das medidas recentes apontam para as mesmas fórmulas neoliberais que, sob o pretexto de contenção de crises, têm sistematicamente apostado no aprofundamento da redução de gastos estatais que um dia serviram à sustentação do consenso keynesiano.

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Até aqui, à exceção da menção a Harvey para tratar da sustentação ideológica do neoliberalismo, esta análise passou mais por considerá-lo em seu aspecto histórico e, como tal, superável – espero que as palavras precedentes não tenham sugerido o oposto. Essa distinção entre, digamos, história e ideologia, tem a ver com aquela feita por Leda Paulani ao analisar o neoliberalismo como fase específica do capitalismo e como doutrina (2008. Brasil delivery, Boitempo). Trata-se de uma distinção fundamental neste momento, a qual inspira a hipótese que o neoliberalismo se mantém ainda forte, e caso acredite-se que tenha perdido relevância como fase em que imperam prescrições de políticas econômicas, no plano ideológico há ainda um caminho relativamente extenso até o seu abandono. Ocorre que esse caminho é construído socialmente e, como tal, pode tomar inúmeras direções.

A noção de neoliberalismo como doutrina é bem sintetizada na famigerada afirmação de Margaret Thatcher de que “não há essa coisa de sociedade (…) e a qualidade das nossas vidas irá depender do quanto cada um de nós estiver preparado para assumir a responsabilidade por si próprio.” Se no plano econômico o neoliberalismo não entregou o crescimento falsamente projetado, tão só restabeleceu o poder de classe do capital, no plano político-ideológico fincou raízes profundas, sustentadas por um individualismo que passou a guiar muitas das ações que pautam o comportamento em sociedade. Como diz David Harvey, “a fixação neoliberal no indivíduo é capaz de suplantar qualquer consideração democrática social por igualdade, democracia e solidariedade” (2005. Spaces of global capitalism, Verso, p. 51). E como “os principais feitos do neoliberalismo têm sido redistributivos em vez de generativos” (idem, p. 43), a ideologia individualista tem prestado o grande serviço de erodir os traços de solidariedade que figuras como Thatcher queriam ver varridos do debate político justamente por ameaçar o projeto neoliberal.

Chamo atenção aqui para aquilo que considero tanto símbolo como expressão concreta que engendra o individualismo patrocinado pelo credo neoliberal e que, dialeticamente, tem lavado a reações de potencial distanciamento em relação a essa lógica perversa. Trata-se da questão da mobilidade urbana. Numa pista coloca-se o automóvel, muitas vezes com uma única pessoa em seu interior, onde é possível desfrutar de alguns confortos como ar condicionado, música, televisão etc. Noutra, coloca-se o ônibus, que se tiverem sorte os seus ocupantes comportará cerca de cinquenta pessoas experimentando uma série de sensações que em nada se aproximam de conforto.

O paradoxo é que aqueles que se espremem nos ônibus e trens que circulam nas grandes cidades brasileiras acabam contribuindo para que o sistema de transporte não seja ainda mais caótico mesmo para quem utiliza automóvel. É isso que diz João Peschanski inspirado por um marxismo analítico que, ao recorrer ao cálculo utilitário, ironicamente coloca a batata quente nas mãos de quem insiste que soluções individuais sempre levam ao ótimo social. Segundo Peschanski, “os usuários de transporte público beneficiam toda a sociedade, pois mantêm baixos os custos sociais relacionados ao transporte (poluição, trânsito). Beneficiam até mesmo as pessoas que não usam o transporte público” (2013. Motivos econômicos pelo transporte público gratuito, Blog da Boitempo).

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Como afirmei logo acima, os caminhos que trilhamos são socialmente construídos e, assim, o que vimos nas ruas do Brasil nas últimas semanas pode apontar para mudanças de rumos. Isso, contudo, não quer dizer que o mundo de amanhã será melhor que o de hoje.

Nas manifestações de junho foram colocados em debate público – num sentido forte da palavra, dado pela ida às ruas em protestos e revoltas – questionamentos importantes sobre certos fundamentos neoliberais. Ainda que não tenham sido escolhidos a partir de agendas declaradamente anti-neoliberais como foram, por exemplo, as revoltas Zapatista de 1994, em Seattle em 1999, ou mesmo os movimentos Occupy de 2011, aqui os alvos também eram resultados de políticas neoliberais. Protestos que num primeiro momento se dirigiam contra aumentos de tarifas do transporte público logo se ampliaram para reivindicar melhorias em educação e saúde também públicas. Estas, é bom lembrar, vítimas constantes da pretensa “responsabilidade fiscal” preconizada pela doutrina neoliberal. Doutrina que aliás fez a deterioração desses serviços ser acompanhada da ampliação da oferta de alternativas privadas, bem ao estilo daquilo que Ellen Wood chama de “commodification of life” (2005. Empire of capital, Verso, p. 11 [O império do capital, Boitempo, no prelo]; peço desculpas por manter a expressão em inglês, mas não consegui traduzir respeitando o sentido original).

Também foi objeto de revolta a lógica da privatização de espaços público que tem sido a tônica de projetos relacionados à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016. Outro foi a repressão policial, que, sublinhe-se, constitui mais uma marca neoliberal. Uma marca que se estampa na criminalização de movimentos sociais e em estatísticas de “segurança pública” nas quais estão esquecidos muitos dos Amarildos que há anos desaparecem nas periferias de grandes cidades brasileiras.

Se de um lado elites econômicas, políticas e intelectuais foram capazes de forjar a hegemonia de um pensamento segundo o qual “não há alternativa” ao modelo neoliberal, de outro, esse não foi o pensamento que embalou a ida às ruas. Ali, muitos dos clamores foram a continuam sendo pela devolução de parte daquilo que as políticas neoliberais vêm arrancando à maioria da população usuária de serviços públicos. A importância disso não pode ser subestimada, pois “quanto mais o neoliberalismo for reconhecido como um falido projeto utópico disfarçando um bem sucedido projeto de restauração de poder de classe, mais ele firma as bases para o ressurgimento de movimentos de massa que expressem demandas políticas igualitárias” (Harvey, D. 2005. Spaces of global capitalism, Verso, p. 66).

Talvez as jornadas de junho sejam expressões de um movimento mais efetivo no sentido de reascender esperanças contra-hegemônicas. É significativo que as pautas principais dos protestos tenham sido o transporte público, a educação pública e saúde também pública. O primeiro é emblemático para analisar a vida social nas grandes cidades. Seu caráter é público no sentido mais forte da palavra, na medida que o movimento pelo passe livre significa o oposto do movimento privatizante, que é uma das grandes marcas neoliberais. Se no caso da educação e da saúde fornecidas por meio do estado já existe “passe livre”, ao menos formalmente, ali a luta anti-neoliberal é pela ampliação e melhoria desses serviços. Em todos esses casos, a tônica das ruas era o público, e nesse sentido há que ser reconhecer esse potencial anti-neoliberal dos protestos. É das ruas e da organização democrática de quem estiver ali que podem florescer alternativas mais igualitárias.

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Alguns acontecimentos, aos poucos, mostram a falácia do “não há alternativa”. Deles destaco um fato emblemático ocorrido justamente no momento em que estas palavras são escritas. Trata-se da suspensão do processo de privatização do Maracanã por parte do Governo do Estado do Rio de Janeiro no dia 2 de agosto, em meio a manifestações que, diferentemente de outras localidades do país, persistem, ainda que escala menor. Bastaram algumas horas desde o anúncio da suspensão para que a grande imprensa brasileira iniciasse a gritaria baseada na velha cantilena da necessidade de respeito aos contratos. Sobre isso me ocorre perguntar se quem assinou o contrato—aí incluídos os investidores que dizem não poder sofrer prejuízos com quebras de contratos—se preocupou em saber se foram ouvidos todos os potenciais atingidas pela medida.

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Daniel Bin é doutor em sociologia pela Universidade de Brasília, onde é professor de políticas públicas. Twitter: @profDanielBin Dele, leia também A (in)visibilidade da luta de classes nas Jornadas de Junho, no Blog da Boitempo.

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