O igualitarismo e a “PEC das Domésticas”

13.04.05_Domésticas_João Alexandre PeschanskiPor João Alexandre Peschanski.

A Emenda Constitucional 77, na sequência da PEC 66/2012, conhecida como a “PEC das Domésticas”, pôs em foco pelo menos duas dimensões da divisão social do trabalho do capitalismo. Em primeiro, e de cunho específico ao capitalismo brasileiro, o emendo à Constituição estabelece um elemento de justiça no mercado de trabalho. Isso foi observado por vários jornalistas e analistas: encerrou-se um desequilíbrio de acesso a direitos; até a nova regra, que já vale, ao trabalhador doméstico, cuja atividade profissional se define por níveis elevados de exploração e toda sorte de estigma, só uma parte dos direitos trabalhistas era garantida. A “PEC das Domésticas” rompeu com essa estratificação de direitos e cidadania dos trabalhadores e, por isso, representa um avanço para uma sociedade mais igualitária. Bem tratada na mídia, não entro em maiores detalhes na análise dessa dimensão.

A segunda dimensão diz respeito ao debate da divisão social das tarefas com base no prazer que proporcionam e tem a ver com o sistema capitalista de maneira mais geral (definimos aqui o que entendemos por capitalismo). Aqui, prazer é o sentimento de viver plenamente a realização das capacidades humanas, desabrochar suas aptidões – trata-se de uma definição vaga, provavelmente insuficiente, mas a teoria igualitária não chegou ainda a uma melhor. Imaginemos agora uma escala das atividades profissionais que conhecemos, em que os níveis de prazer que essas atividades proporcionam vão de 0 a 10, qual nota daríamos à atividade doméstica? Há certamente pessoas que se realizam nessa profissão, mas no agregado social é provável que a atividade de arrumar a sujeira e limpar o banheiro alheios não tenha uma nota alta, certamente mais baixa do que profissões em que talentos e aptidões são mais claramente realizados. Na sociedade há tarefas que consideramos mais prazerosas do que outras.

Assumindo que não temos tecnologia no atacado para substituir todas as tarefas penosas e que estas precisam ser realizadas, quem deve ficar a cargo delas? Ou seja, qual o critério para definirmos as pessoas que devem realizar as tarefas socialmente necessárias em que o sentimento de viver plenamente a realização das capacidades humanas é baixo ou pelo menos mais baixo do que o de outras tarefas? No contexto da discussão em torno da “PEC das Domésticas”, quem tem de fazer o trabalho doméstico?

Uma resposta comum no capitalismo é que, estabelecida a injustiça entre pobres e ricos, à qual correspondem no geral níveis profundamente desiguais de acesso à educação, é um desperdício de talento e qualificação esperar que os ricos (os trabalhadores com altos níveis de educação) tenham de realizar tarefas pouco prazerosas, na medida em que seu tempo é melhor gasto – com consequências positivas para a sociedade, supõe-se – na realização de suas aptidões. Nessa perspectiva, torna-se ineficiente criar mecanismos sociais que façam com que, por exemplo, o neurocirurgião tenha de desempenhar funções domésticas, enquanto poderia usar seu tempo para salvar vidas, uma capacidade que ele adquiriu por causa de um acesso diferenciado a oportunidades educacionais e muito esforço pessoal. No capitalismo, aliás, é considerado um resultado merecido que o neurocirurgião, que faz algo considerado socialmente importante, que poucos conseguem fazer e que precisou estudar muito mais do que a mediana estuda para desempenhar sua profissão, tenha um salário elevado.

A imagem de capa da Veja da última semana de março sintetiza de certo modo a resposta comum no capitalismo. Não sei se é nessa linha o argumento da matéria – pois não compro e não leio a revista –, mas a capa traz um homem, possivelmente um empresário ou executivo (pois veste camisa e gravata), lavando louça, com ar de que está fazendo algo que não quer fazer. A manchete é “Você amanhã”. Essa imagem estampa a realidade à qual estamos acostumados: numa sociedade em que oportunidades são desigualmente distribuídas de acordo com gênero e renda, a do “você hoje”, executivos não lavam louça. Há um exército de mulheres pobres para fazê-lo por eles, dando-lhes a chance – supostamente benéfica para a sociedade como um todo, pelo menos é o que nos diz versões a economia trickle-down – de realizar tarefas mais importantes, que só eles têm competência para realizar. Essa perspectiva se funda, legitima e reproduz a desigualdade social.

Expus aqui as mazelas diretamente relacionadas à desigualdade social e, então, como proponentes de uma sociedade mais justa, nos cabe pensar uma solução igualitária para a difícil questão da divisão social das tarefas com base no prazer que proporcionam. O capitalismo, apesar de seus problemas, é um sistema que se reproduz com equilíbrio relativo e, portanto, é consistente com variados níveis de desigualdade; para alguns, é até este o incentivo fundamental da reprodução e do avanço do sistema. Antecipo: não temos ainda uma resposta igualitária convincente à organização institucional da distribuição de tarefas.

Uma perspectiva igualitarista – rasa! – é consistente com uma divisão social de tarefas organizada a partir de uma loteria. Por exemplo, todos os membros da sociedade aptos a realizar uma tarefa específica participam de um sorteio e têm a mesma probabilidade de serem escolhidos para desempenhar essa tarefa. A pessoa qualificada para atuar como neurocirurgiã tem então a mesma probabilidade de acabar limpando o banheiro alheio do que uma pessoa sem qualificação. O igualitarismo lotérico rompe com a reprodução dos privilégios, que se mantém no capitalismo, mas dificilmente pode ser visto como um mecanismo justo e eficiente, pois não leva em consideração o resultado final da distribuição, que não é otimizado, e portanto desperdiça talentos e recursos.

No meio anarquista norte-americano, especialmente canadense, surgiu uma proposta de instituição igualitária mais profunda da divisão social das tarefas com base na realização de vidas plenas, os complexos de emprego balanceados (em inglês, “balanced job complexes” – uma justificativa e uma descrição detalhada dessa instituição podem ser lidas aqui, em inglês). A proposta se vincula à obra e ao ativismo de Michael Albert, autor de Parecon: a vida depois do capitalismo (Verso, 2004) e principal articulador da ZNet, uma rede de intelectuais e militantes que discutem elementos de um projeto de economia participativa, conhecido como Parecon. A ideia central é que todas as profissões combinem tarefas indesejáveis e tarefas empoderadoras ou, no léxico que adotei, penosas e prazerosas. Nessa proposta, ninguém executa apenas tarefas positivas ou negativas: por exemplo, a distribuição do tempo profissional de alguém pode ser dividido em 33% de atividades prazerosas, consideradas social e objetivamente como atividades com notas altas, como neurocirurgia, 33% de atividades pouco prazerosas, como lavar panelas, e 33% de atividades vistas como medianamente prazerosas. As tarefas são combinadas de tal modo que, na mediana social, nenhum profissional exerce apenas um tipo de atividade de acordo com o nível de prazer que esta proporciona. De acordo com os pareconistas, a distribuição do trabalho dessa maneira é necessária numa sociedade igualitária para que todos tenham a capacidade de participar de maneira genuína de processos decisórios, na esfera da política, do trabalho e do consumo, sem se submeter a uma classe mais qualificada e instruída.

A teoria dos complexos de emprego balanceados se sustenta, na visão de Albert, num processo de remuneração baseado no esforço no trabalho, avaliado pelos colegas no local de trabalho. Albert sugere um princípio de correção da remuneração quando há um descompasso entre sacrifício e esforço no trabalho, como no caso de pessoas com algum tipo de deficiência e com idade avançada. A lógica da remuneração no Parecon é complicada, com variados detalhes, e não pretendo esmiuçá-la mais do que isso.

Há vários problemas na proposta dos complexos de emprego balanceados, assim como na proposta mais ampla do Parecon. As críticas são conhecidas e dizem respeito à inviabilidade, indesejabilidade e inalcançabilidade da proposta. Um exemplo da segunda crítica é a avançada pelo ecossocialista Michael Löwy (disponível aqui, em inglês), que considera que a proposta não leva em consideração os objetivos igualitários esperados para uma sociedade justa, dando ênfase demais ao processo igualitário, que pode levar a resultados não ótimos do ponto de vista da justiça social. A inalcançabilidade não é um problema apenas do Parecon, mas diz respeito a toda alternativa ao sistema vigente; entre outras dimensões, a inalcançabilidade se deve aos custos envolvidos na transição de um sistema para outro, como discutido aqui. A inviabilidade é talvez a dimensão mais interessante para os proponentes de uma alternativa, na medida em que diz respeito à impossibilidade de se construir ou projetar um conjunto de instituições que se reproduzam sem se autodestruir ou se perverter. Um dos problemas claros do Parecon é que ele não gera incentivos para que trabalhadores inovem em seus locais de trabalho, um dos requisitos básicos para a reprodução sistêmica. No capitalismo, a inovação é continuamente reforçada, entre outros mecanismos pela pressão competitiva. No Parecon, tal qual ele está pensado por Albert, trabalhadores não têm incentivo para inovar na medida em que inovações que venham a realizar não modificam a distribuição dos tipos de tarefas, penosas e prazerosas, que lhe cabem: se inventam uma forma que elimina uma atividade penosa, tornando-a prazerosa ou simplesmente abolindo-a, a sociedade lhes repassa uma nova combinação de atividades, uma mediana de atividades penosas e prazerosas. Ademais, os custos administrativos envolvidos na avaliação agregada socialmente, que define notas para todas as atividades desempenhadas em uma sociedade, parecem altos demais para que seja um modelo eficiente, especialmente quando se tem um reordenamento, seguindo uma pequena inovação, que leva a um novo cálculo da mediana dos prazeres de toda a sociedade.

A Emenda Constitucional 77 está longe de avançar uma proposta radical e profundamente igualitária da distribuição social das atividades profissionais. O que faz – e o que não é pouco! – é colocar um ponto de equilíbrio específico num sistema ainda altamente injusto e desigual. No caso brasileiro, trata-se de um passo civilizatório fundamental, pois corrige uma aberração abominável do sistema. Mas não corrige o sistema como um todo, que se reproduz com base em outras aberrações dos princípios de igualdade e justiça. Para conseguir superar o sistema vigente, que nas suas deficiências e ineficiências se mostra absolutamente flexível e resiliente, faz-se necessário constituir um projeto teórico alternativo, uma concepção de instituições diferentes e possíveis, condizente com uma noção igualitária de sociedade.

PS: O cartaz que ilustra este post, onde se lê em inglês “O capitalismo também depende do trabalho doméstico”, foi confeccionado em 1983 pelo Red Women’s Workshop (A oficina das mulheres vermelhas), uma gráfica cooperativa e feminista de Londres, que existiu até os anos 1990. Mais sobre o Red Women’s Workshop aqui, em inglês.

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João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

2 comentários em O igualitarismo e a “PEC das Domésticas”

  1. Ricardo Escorizza // 15/04/2013 às 9:11 pm // Responder

    Lei que assegura novos direitos de empregados domésticos é aprovada
    A partir da próxima terça-feira (2) já começa a valer a lei que assegura aos empregados domésticos os mesmos direitos dos demais trab.
    A partir da próxima terça-feira (2) já começa a valer a lei que assegura aos empregados domésticos os mesmos direitos dos demais trabalhadores. A proposta foi aprovada por unanimidade no Senado e vai trazer uma mudança profunda nas relações de trabalho. São 16 novos benefícios para sete milhões de trabalhadores.
    Saiba o que muda para empregados e patrões Entram em vigor a partir da próxima terça apenas os novos benefícios que não dependem de regulamentação. Na terça é quando o Senado vai promulgar, vai confirmar a existência da nova lei em uma sessão solene.É uma mudança na CF, aprovada em uma sessão com plateia e comemoração. Agora, quem trabalha como empregado doméstico e tem carteira assinada vai ter carga horária de trabalho definida: 8 horas por dia, de segunda a sexta e 4 horas aos sábados.A nova jornada entra em vigor assim que a lei for promulgada. E prevê que o empregado tire um horário de descanso ou almoço. No mínimo uma hora e no máximo duas por dia. Se fizer hora extra, tem direito a receber 50% a mais que a hora trabalhada.Outros direitos, para começarem a valer, vão precisar de novas leis, de regulamentação. São eles: o sal-família, aux-creche para filhos de até 5 anos, seguro-desemprego, adicional noturno e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, que passa a ser obrigatório.
    “O FGTS é 8% que o empregador vai fazer o deposito na conta do empregado”, explica José Kobori, professor de finanças.O professor fez um cálculo. Hoje – com INSS e benefícios como férias, décimo terceiro – uma empregada doméstica com salário de R$ 1 mil custa para o empregador quase R$ 1,5 mil por mês. Considerando o FGTS – que antes era opcional – o custo sobe pouco mais de 6%. Se fizer uma hora extra por dia, o aumento na conta é de R$ 162. Ricardo Escorizza dos Santos.

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  2. Ricardo Escorizza // 28/06/2013 às 3:36 pm // Responder

    PODER JUDICIÁRIO
    TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
    Habeas Corpus nº 0115880-26.2012.8.26.0000

    Vistos,
    A Defensoria Pública do Estado de São Paulo impetra ordem de habeas corpus, com pedido liminar, em favor de Alessandro Souza Macedo e outros, apontando como autoridade coatora o MM. Juiz de Direito Presidente do Colégio Recursal da 38ª Circunscrição Judiciária da Comarca de Franca.
    Aduz a impetrante que atendendo a determinação não formalizada do MM. Juízo da Vara das Execuções Criminais da Comarca de Franca, a Polícia Militar passou a abordar e encaminhar indistintamente ao distrito policial os moradores de rua para a lavratura de termo circunstanciado alusivo a contravenção penal consistente em vadiagem, caracterizando, dessa forma, constrangimento ilegal aos mesmos ante a injusta coação, violando direito constitucional de ir, vir e estar em logradouros públicos.
    Pleiteia, em suma, a concessão da medida liminar para que seja determinada a imediata suspensão dos processos criminais instaurados perante as três Varas do Juizado Especial da Comarca de Franca, bem como a expedição de ofício ao Comandante do Batalhão da Polícia Militar de Franca para que não mais detenham os pacientes ou qualquer pessoa em igual situação, exclusivamente por serem moradores de rua, garantindo-lhes o direito de permanecer nos logradouros públicos da municipalidade francana até o julgamento do mérito deste writ e também daquele impetrado junto ao Colégio Recursal da 38ª Circunscrição (fls. 02/18 e versos).

    Defiro a liminar alvitrada.
    Examinando os autos entendo que prudente a suspensão dos procedimentos com relação aos pacientes até a decisão de mérito interposto no pedido de habeas corpus interposto na origem.
    Oficie-se às autoridades policiais e Comando do Batalhão da Polícia Militar da Comarca de Franca, no sentido que as abordagens devem ser dirigidas às pessoas que lei autoriza a ação, e não somente porque mendigo ou morador de rua, devendo ser observado que a busca pessoal somente será procedida quando fundadas razões a autorizarem, em consonância com os artigos 240, § 2º, e 244, ambos do Código de Processo Penal, e artigo 5º, inciso LXI, da Constituição Federal, de modo a não se consumar abordagens arbitrárias pelo simples trânsito dos pacientes em via pública ou mesmo que nela estejam dormitando.
    Expeça-se o necessário, e requisitem-se informações da autoridade judiciária apontada como coatora, em 48 horas, sobre o alegado, remetendo-se, em seguida, os autos a Douta Procuradoria de Justiça.
    Após, conclusos.

    São Paulo, 05 de junho de 2012.

    PAULO ANTONIO ROSSI
    RELATOR

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