Instrumentalização do antissemitismo: um gerador eterno de privilégios

Os defensores da brutalidade israelense contra palestinos em Gaza continuam usando a perseguição de judeus no passado para desqualificar as críticas a Israel.

Foto: Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu (Alan Santos/PR, Flickr Palácio do Planalto).

Por Antony Lerman

Milhares de israelenses se juntaram em Jerusalém dia 28 de janeiro para uma conferência da extrema-direita. Lá, exigia-se o reassentamento de Gaza e a transferência da população do território, descrita de maneira desonesta a partir do eufemismo “uma maneira legal de migrá-los voluntariamente.”

Os principais convidados eram líderes governistas proeminentes e extremistas, incluindo Itamar Ben-Gvir, o ministro da segurança nacional (Otzma Yehudit), e o ministro das finanças Bezalel Smotrich (Tkuma). Seu plano, proposto por membros do governo de extrema-direita desde os primeiros dias de ataques em Gaza, pode ser chamado de limpeza étnica.

Qualquer palestino que ficasse em Gaza seria submetido à extensão territorial do apartheid sancionado pelo estado dominante em Israel pré-1967, na Cisjordânia pós-1967 e nas Colinas de Golã. Esse plano genocida foi saudado pelo ministro do Turismo do Likud Haim Katz como “uma oportunidade de reconstruir e expandir o território israelense”.

“Viés antissemita

Por isso, houve grande rejeição da decisão de 26 de janeiro da Corte Internacional de Justiça (CIJ) da ONU de que “Israel deve tomar medidas para prevenir a violência genocida por suas forças armadas” e “prevenir e punir” o incitamento ao genocídio. Também foi um endosso à maré de acusações de tratamento antissemita com Israel a partir da decisão da CIJ. Os primeiros a se manifestarem foram representantes do governo israelense, que declararam que a Corte teve um “viés antissemita”.

Líderes do J7, o US Jewish Communities’ Task Force Against Antisemitism [Força-Tarefa das Comunidades Judaicas dos EUA Contra o Antissemitismo], concordaram. O editor da Jewish Chronicle, Jake Wallis Simons, escreveu ao Telegraph que a CIJ foi “capturada pela propaganda antissemita”. O uso do antissemitismo instrumentalizado para desviar críticas às respostas de Israel aos ataques do Hamas em 7 de outubro nos assentamentos e unidades do exército israelense era evidente, mesmo quando as notícias das atrocidades ainda estavam surgindo.

Por isso, a reação à decisão da CIJ não foi surpreendente. Afinal, este é um gerador eterno de privilégios, com décadas de existência: usar as experiências passadas de perseguição aos judeus para desqualificar críticas e gerar simpatia pela ideia de um Estado judeu.

Ataque de propaganda

Como analisei em meu livro Whatever Happened to Antisemitism?, essa estratégia é adaptável a praticamente qualquer violação dos direitos humanos dos palestinos por parte de Israel. Ela foi usada no dia 7 para justificar o que levou o Hamas aos ataques, e desde então para minar e desviar qualquer demanda por um cessar-fogo imediato.

Dentro de horas, em algo que pareceu um ataque coordenado de propaganda, funcionários e membros do governo israelense estavam chamando os ataques de “pogroms” e nomeando este como o “dia mais mortal para os judeus desde o Holocausto”. Essas narrativas continuam influenciando o discurso público na compreensão dos eventos de 7 de outubro.

Pogrom” é uma palavra russa que se refere a ataques violentos contra judeus no Império Russo e em outros países no século XIX. Eles foram perpetrados por um opressor poderoso contra uma vítima fraca e vulnerável. Ainda que tenha sido grotesco, o ataque do Hamas foi precisamente o oposto: “uma demonstração sem precedentes de violência anticolonial”, escreveu Tareq Baconi em um comentário para Al Shabaka, o Centro Internacional de Estudos Palestinos. Este foi um ataque a um alvo simbólico do regime racista antipalestino: o poderoso Estado israelense, responsável pela subjugação da população de Gaza.

“O truque que sempre usamos

Quanto à comparação com o Holocausto, tal linguagem apocalíptica distorce e trivializa o genocídio nazista dos judeus. Shulamit Aloni, a líder do então partido mais à esquerda de Israel, Meretz, na década de 1990, descreveu tal comparação como “um truque, que sempre usamos. Quando alguém da Europa critica Israel, nós evocamos o Holocausto”.

Se compararmos a instrumentalização do antissemitismo naquela época com suas dimensões hoje, nós vemos que é cada vez mais significativo o papel do Holocausto nesse jogo de whitewashing do apartheid israelense, com justificativas à opressão e à limpeza étnica dos palestinos. Isso foi possível por meio da Aliança Internacional para a Lembrança do Holocausto, e sua definição de antissemitismo adotada em 2016, conhecida pelo acrônimo da organização: IHRA.

Independentemente da definição em si, quem questionaria algo disseminado por uma organização com “Lembrança do Holocausto” em seu nome? – especialmente quando os promotores da definição praticamente decretaram que era um sacrilégio questioná-la. No entanto, a maioria dos exemplos de antissemitismo trazidos na definição servem para justificar a ausência de direitos dos palestinos de falar sobre suas experiências, e não servem para proteger os judeus do verdadeiro antissemitismo.

Comportamento protegido

Mesmo antes de 7 de outubro, as narrativas comuns de antissemitismo serviam para associar os palestinos quase que exclusivamente ao terrorismo. Como hoje “palestino” e “terrorista do Hamas” são frequentemente vistos como sinônimos, sugerir que os palestinos possam merecer direitos, soberania e solidariedade é apoiar a violência contra os judeus, segundo a jornalista e acadêmica Natasha Roth-Rowland. Isso “coloca toda a violência estatal israelense – limpeza étnica, encarceramento em massa, assassinato extrajudicial, roubo de terras – como uma forma de comportamento tolerável, porque é realizado por judeus”. Ao redefinir antissemitismo como antissionismo, o antissemitismo não se trata mais de “quem odeia os judeus”, mas de “quem os judeus odeiam”.

Antissionismo

O sucesso da estratégia de instrumentalização se ancora em uma visão distorcida e aparelhada da história judaica: a noção de que, de um lado, o antissemitismo é eterno e imutável e, de outro, o antissionismo é o “novo antissemitismo”. Em ambas, as organizações anti-antissemitismo incentivam as pessoas a acreditar que nossa aniquilação pelo antissemitismo está sempre iminente.

A primeira, compreensão eternista do passado judaico, uma visão lacrimosa e triste, ignora as formas contingentes e historicamente específicas do antissemitismo. Quanto ao antissionismo, nada poderia ser mais judaico. Os judeus foram os primeiros antissionistas, e assim permaneceram em maioria até a Segunda Guerra Mundial. São centenas de milhares de judeus antissionistas até hoje.

No entanto, é interessante para Israel cultivar a visão de que os judeus em todo lugar são igual e eternamente vulneráveis, mesmo que o papel do sionismo tivesse sido de acabar com o ódio aos judeus. Quando tantos parecem abertos a ceder às reivindicações duvidosas de um antissemitismo em constante crescimento, por que não continuar instrumentalizando o discurso do Holocausto e dos pogroms como se fossem perigos claros e presentes?

Para os líderes israelenses, cada confronto militar e cada batalha com o Hamas ou o Hezbollah são em nome do “povo judeu”, ainda que não distinguir o estado de Israel e os judeus em todo o mundo seja tido como uma crença antissemita, de acordo com a IHRA.

Ephraim Mirvis, o rabino-chefe da British United Synagogue, certamente não leu o roteiro quando elogiou os soldados israelenses pelo genocídio em Gaza em nome da erradicação do antissemitismo, chamando-os de “nossos incríveis soldados heróicos”. Não poderia estar mais claro que a instrumentalização do antissemitismo é um perigo claro e presente até mesmo para os judeus que não clamam por direitos iguais para todos do rio ao mar.

Publicado em Declassified UK e traduzido por Isadora Szklo, do Vozes Judaicas por Libertação, para o Blog da Boitempo com autorização do autor.


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Antony Lerman é parte do Bruno Kreisky Forum for International Dialogue de Vienna e membro honorário do Parkes Institute for the Study of Jewish/non-Jewish Relations de Southampton University. Ele é autor do livro Whatever Happened to Antisemitism? Redefinition and the Myth of the ‘Collective Jew’ (Pluto Press, 2022) e The Making and Unmaking of a Zionist: A Personal and Political Journey (2012).

Vozes Judaicas por Libertação é um coletivo de judeus antissionistas fundado em São Paulo em 2023, dedicado à libertação da Palestina e ao fim do regime de apartheid e limpeza étnica no território.

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