Menos Baudelaire, mais Apollinaire: um novo modelo editorial para o Brasil

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Por Christian Ingo Lenz Dunker  e José Roberto Barreto Lins.

O recente fechamento da editora Cosac Naify, símbolo de excelência editorial, cobiça autoral e de respeito aos leitores qualificados, faz pensar não só no fracasso de uma experiência individual, com seus ganhos e perdas, mas nas razões para uma nova articulação entre o espaço público. Afinal, trata-se de publicação, e os agentes produtores de ciência e cultura encontram cada vez mais facilidade quanto aos meios que tornam algo público e cada vez menos propósito nos fins a que se destinam.

Desde os anos 2000 é mais rápido e menos dispendioso publicar, dadas certas inovações técnicas como o print-on-demand, a redução dos custos de estocagem e a precarização das atividades de revisão, diagramação, composição de capa e finalização. A profissionalização das carreiras universitárias fez da publicação o signo de existência e razão de ser do pesquisador e do programa de pós-graduação ao qual ele pertence. Na cultura digital, é cada vez mais trivial publicar, dado o incremento informal da prática da escrita em blogs, redes sociais e demais modalidades digitais de expressão.

O fenômeno encontrará análogos em diversas outras práticas que envolvem técnicas produtivas de massa, aplicação de formas expressivas provenientes da ciência, da arte ou da tecnologia e dependência relativa com o mercado consumidor. Filmar e produzir vídeo ou cinema, compor músicas ou trilhas sonoras, tratar imagens fotográficas, expor artes plásticas em circuitos alternativos, escrever e publicar alta, baixa ou medíocre literatura tornou-se muito mais acessível. Pequenas produtoras e novas companhias de teatro e de dança continuaram a surgir. Isso contribuiu para a formação de uma nova geração sensivelmente orientada para a criação de conteúdo, dos vlogs até as “utilidades domésticas” disponíveis na rede. Nosso sistema de financiamento para a cultura, baseado em leis de incentivo e editais capazes de articular interesses públicos (medidos por estatísticas de acesso) com vantagens privadas (medidas por direcionamentos fiscais), sob certos aspectos, deu certo. Apesar do hiato vindouro, os últimos 16 anos assistiram um processo de inclusão social sem precedentes, em grande medida apoiado por estas circunstâncias favoráveis. Muitos saíram da miséria e vislumbraram o passo seguinte no processo de ascensão social: cultural.

Foi nesta hora que tudo que deu certo, deu igualmente errado. O número de salas de cinema e teatro decresce no país, as editoras abrem no verão e fecham no inverno, mesmo as melhores desistem, os profissionais das leis de financiamento criam condomínios voltados para atender uma estrutura de marketing cultural completamente viciada e que pouco possibilita em termos de realizações fora de um mainstream do mercado cultural. As massas de alunos incluídos pelo ProUni ficaram exiladas dos livros de qualidade, de certo por seu preço e acessibilidade, mas por outros motivos culturais ainda maiores. A praga das apostilas, e seu raciocínio “gráfico”, se espraiou para todo lado. Professores e pesquisadores entulham revistas e editoras com lixo “produtivo” universitário para marcar mais pontos no Lattes. Pequenas cooperativas culturais isolam-se em unidades voltadas para a própria subsistência. Os gêneros populares com o sertanejo e o funk encontram pouca evolução formal. As artes separam-se dos sistemas de pensamento, a educação da cultura, as linguagens conversam pouco entre si, leem-se pouco, apoiam-se muito menos do que o esperado.

O mundo cresceu e ficou mais acessível, por outro lado ele diminuiu, deixando um surpreendente sentimento de pobreza. Enfim, o que parecia ser um momento de manifestação pluricultural de diversos grupos, inclusive com a inserção de atores historicamente sempre excluídos da cena, tornou-se uma grande massa cinzenta, nublada e disforme na qual se transformou o conteúdo disponível e “inqualificado” das internets.

A tarefa que se coloca agora é a de se inventar um novo pacto – não de burocratizar ou controlar o acesso à esfera pública. Um símbolo desta nova fase bem poderia estar representado pela retomada da antiga figura real do editor, aquele capaz de pensar o autor no conjunto da conversa “pública” na qual este se insere. Aquele que possui existência cotidiana tangível. Com quem podemos falar face a face e não apenas por um endereço eletrônico para envio de originais ou pareceristas incógnitos e mascarados. Reencontramos aqui a figura do crítico que tem critérios para publicar uma informação relevante socialmente, e não ficar apenas disponibilizando conteúdos ou repetir sua habitual ação entre amigos. A diferença estratégica hoje nesta cena saturada é que estes critérios não têm de obedecer às regras dos mercadores de informação e entretenimento, nem a limites impostos por políticas autoritárias de Estado. Eles se tornaram livres e independentes de catracas, de bilheterias, de público ou de leitores. Deveriam agir como tais.

Guillaume Apollinaire (1880-1918) foi um poeta, crítico e animador cultural, antes de tudo viajante e aventureiro tendo lutado na primeira guerra mundial. Sua produção poética é de inegável qualidade, como se pode ver em Calligrammes (1918). Professor, cronista, colaborador de inúmeras revistas esteve sempre interessado pessoal e esteticamente nas vanguardas. Vinha da turma de Montmartre sendo amigo de quase todos intelectuais franceses de sua época, mas em especial Pablo Picasso (de quem se tornou grande amigo), Georges Braque, Modigliani, Gertrude Stein e Max Jacob. Ele teria inventado a palavra surrealismo, escrito o manifesto cubista e se envolvido com os simbolistas e futuristas. Responsável pela publicação de obras libertinas (em particular o Marquês de Sade) e amigo de artistas e pensadores, Apollinaire era o que se pode chamar de um agitador cultural. Estrangeiro, dreifusard*, foi acusado injustamente de envolvimento no roubo da Mona Lisa do Louvre.

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Guillaume Apollinaire (1880-1918), em retrato de Pablo Picasso

O fato para o qual queremos chamar a atenção é que Apollinaire é um artista, mas ele é antes de tudo um engajado na cultura, alguém que parece ter se libertado de seu complexo de identidade, que tantas vezes aflige os escritos e artistas. Antes ainda da figura do intelectual engajado, do qual Sartre nos dá o protótipo, ele é uma espécie de boêmio transversal, interessado não apenas em sua obra, mas em descobrir autores, traduzir, publicar e editar esquecidos, dar impulso e visibilidade para novas tendências, criar programas estéticos, enfim, engajar-se em polêmica e confusão gratuitamente.

Charles Baudelaire (1821-1867) fez quase tudo como Apollinaire, só que de outro jeito. Desregrado, boêmio e revolucionário, ele estabeleceu as raízes da poesia moderna e do simbolismo com Flores do Mal (1857). Mas ao contrário de Apollinaire, Baudelaire não aprova a destruição da ilusão de realidade. Ao contrário do estrangeiro em busca de um grupo para apoiar, Baudelaire vive desregradamente de sua milionária herança. Protótipo do dândi, ele parece estar interessado em pequenas viagens (flâneur), mediadas pelo cultivo da beleza dos pormenores em um senso estético da vida, no qual a intelectualização e a cultura ocupa lugar de relevo, porque ela é antes de tudo uma distinção pessoal. Enquanto Apollinaire brinca com a pergunta “quem sou eu?”, Baudelaire distende infinitamente as alteridades que constituem seu eu: exercícios para sair da vulgaridade, da mesmice e da mediocridade. Ele desenvolve um método de vida, que é antes de tudo a arte de produzir efeitos de si mesmo e de criar produtos rentáveis de si mesmo, de sua marca, de sua grife, de seu spleen**.

O Brasil da Retomada produziu uma cultura, particularmente uma cultura editorial, feita para Baudelaires. Editoras de qualidade com grandes ambições, nem sempre orientadas para regulação da bilheteria ou da crítica ou então totalmente orientada para tal. A cultura como signo egóico de origem ou de herança, contra as barbáries e vulgaridades das classes médias e o paganismo das hordas ascendentes e emergentes. Editoras que na verdade são gráficas. Debates culturais que deixaram a cena do jornalismo. A educação e a pesquisa tornando-se baseadas em resultados. Nesse contexto, confusão e polêmica só podem retornar em oposições políticas simplórias e retintas de ódio identitário. Pois passam a ser percebidas como movimento de interesses escusos ou luta entre agremiações de raça, gênero ou classe. Em meio a este cenário, os jovens agentes culturais só podem viver a cruel oposição entre ser um gênio simbolista ou não ser nada senão uma tentativa fracassada.

Entre a miséria dos que não aconteceram e o sucesso destas “Flores do Bem”, falta-nos o debate sobre os autores médios, o respeito pelas iniciativas efêmeras e o reconhecimento pelos criadores remediados. Falta-nos a discussão sobre as formas estéticas para além e para aquém de suas expressões ou identidades culturais. Falta reconhecer mais e melhor os que fazem o meio campo da cultura: tradutores, resenhistas, roteiristas, editores, publishers, revisores, críticos ocasionais, programadores visuais, capistas, iluminadores que, como Apollinaire, faziam a cultura acontecer como coletivo de produção e criação. Exclui-se acintosamente os professores, para ressaltar que é inaceitável que eles estejam hoje privados da sua condição de agentes culturais. Falta ampliar o microfinanciamento, o crossfunding e outras formas de circulação, de insumos e apoios culturais. Isso não pode acontecer como se a qualidade, por ser um atributo controverso, jamais possa ser discutida. Vivemos ainda uma situação entre a indiferença produtiva e o intervencionismo normativo do Estado. Nas universidades públicas falar em dinheiro privado é falar em corrupção ou privatização. Enquanto isso as universidades privadas continuam a cantar como os Titãs: “Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? Comida é pasto, bebida é água.

Nos faltam Apollinaires…

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Voltemos à nossa cena específica, a cena editorial. É interessante distinguir o editor do publisher. O editor articula o pensamento de um grupo para inseri-lo na cena pública com intuito de transformá-la. Muito distante de ser um facilitador, como pregam as casas do “faça seu livro, torne-se um autor e tenha seu dia de noiva”. Há um projeto por trás da ação do editor, um pensamento que sonha em permanecer e que não pode ser reduzido ao resultado ocasional de oportunidade. O publisher é um animador cultural antenado. Farejador, com sua competência e agilidade, ele reconhece e lapida uma produção, mesmo ainda embrutecida, para que fique azeitada a ganhar maior repercussão num prazo mais curto possível. O publisher faz junto, ele vive com os criadores, ele os conhece de perto, deste a coxia, desde a defesa de tese, desde a crítica no blog.

A atualidade é particularmente escrava do imediato, da repercussão, do concomitante, da competência do publisher, que, como Apollinaire, é, foi, ou poderia ter sido um autor. Os vapores densos do efêmero dificultam o reconhecimento de ações renovadoras de longo prazo (mundo do editor), mas estas têm seu outro tempo para se afirmar. Já o publisher pode catalisar estas iniciativas, fazendo com que pousem mais rapidamente, desde que tenham pertinência e que façam cultura, no sentido de vida comum, no sentido de comunidade de destino.

A função do editor é conseguir reconhecimento público – o que se faz também com os movimentos oportunos característicos do publisher. Mas o editor trabalha na perspectiva da inserção do novo em um processo. A informação a ser veiculada deve passar por uma maturação, fazer diálogo com um conhecimento vigente e ao mesmo tempo trazer uma contribuição inovadora. Para realizar esta avaliação, o editor se ampara num grupo de especialistas ou de analistas simbólicos, atuando em duas instâncias, uma interna para realização do acontecimento de texto a ser veiculado e outra externa, na colocação desta mensagem na esfera pública.

Publishers, editores, críticos e revisores são como Apollinaire. Estão coletivamente engajados em uma obra coletiva. Os verdadeiros Baudelaires são raros, por definição, e são ainda mais escassos quando tudo o que pode existir são gênios de sucesso e seus marchands informais para uma ação entre amigos. Por isso dizemos que estamos diante de duas ideias sintomáticas e anacrônicas para o Brasil de hoje. A primeira ideia é que a cultura se move por meio de grandes gênios, que com seu talento abrem portas até então inexistentes. A segunda ideia é que qualquer um, ajudado pela boa mão invisível dos superpoderosos culturais, a mesma mão que acaricia a nádega dos artistas, é capaz de vender qualquer coisa, para qualquer um, no mercado da indústria cultural.

Mais Apollinaire e menos Baudelaire…

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NOTAS

* Partidário de Alfred Dreyfus, oficial judeu do Exército francês condenado injustamente por traição, cumprindo sua pena na Ilha do Diabo, antes de ser reabilitado por iniciativa de intelectuais como Émile Zola.
** Estado de tristeza pensativa ou melancolia envolvendo sentimento de desânimo, isolamento, angústia e tédio existência.

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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012, seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, no prelo). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. José Roberto Barreto Lins é teórico da comunicação e editor da Annablume.

4 comentários em Menos Baudelaire, mais Apollinaire: um novo modelo editorial para o Brasil

  1. Dunker, entendo a preocupação quanto à importância de se criar uma cultura de publicação no país. No entanto, creio que suas energias concentraram-se no alvo errado. Comparar os projetos estéticos (e éticos!) da Cosac com Baudelaire é pertinente, mas suas correspondências só alcançaram a superfície. Cosac-Baudelaire não são opostos ao engajamento cultural de Apollinaire (me lembrei também do caso da Sylvia Beach, fundamental na descoberta de Joyce & friends), pelo contrário. Seu Baudelaire assemelha-se a um ególatra bobo, que não traduziu e debateu publicamente não só literatura, mas música e pintura, além de ter sido o responsável pela descoberta e divulgação de Poe. Problemática também sua crítica à Cosac: reduzir o projeto da editora a uma visão de “cultura como signo egóico de origem” é desconhecer a importância da insistência de um belo trabalho em um país conhecido pelo baixo índice de leitura. Não estamos na Europa do modernismo. Este “Brasil da Retomada” incluiu pelo consumo e não pela educação, e em um lugar assim não há como existir Baudelaire, Apollinaire, “publishers”, etc. Nosso caso é típico do problema mais óbvio da atualidade: mais acesso à cultura e seus meios não é sinônimo de boa produção artística.

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  2. Herman Benedykt // 27/01/2016 às 7:40 pm // Responder

    Muito bom ler um texto profundo e leve para a leitura!

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