Lançamento Boitempo: “A cidade das letras”, de Ángel Rama

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Acaba de chegar da gráfica A cidade das letras, do crítico literário uruguaio Ángel Rama. Considerado por ninguém menos que Antonio Candido como “o maior crítico literário que a América Latina teve” no seu tempo, Rama estuda nesta obra de referência a concepção, o planejamento e a consolidação das cidades latino-americanas, desde a destruição da asteca Tenochtitlán, em 1521, até a inauguração de Brasília, na década de 1960. Na análise detida de cartas, grandes clássicos da literatura e outros documentos históricos, Rama examina o desenho dos valores em pauta na formação das cidades e o discurso urbano da conquista. Ao revelar as cidades latino-americanas por meio das letras e da ordem dos signos, Rama traça um paralelo entre os projetos urbanísticos e o ideal desejado de urbe limpa, estéril e civilizada.

O título integra a coleção Marxismo e literatura, coordenada por Michael Löwy na Boitempo, e chega junto com o Seminário Internacional Cidades Rebeldes, promovido pela Boitempo e pelo Sesc.

Leia a orelha do livro, assinada por Flávio Aguiar

Ainda hoje boa parte da intelectualidade latino-americana – a brasileira inclusa – tem mais facilidade para falar de uma “cultura europeia” do que de uma “cultura latino-americana”. E as razões são óbvias: trata-se do estancamento da reflexão numa imagem cada vez mais irreal de uma Europa “encantada”, unitária, verdadeira pólis da cultura e da democracia no pós-Segunda Guerra Mundial, embalada pelo Plano Marshall e pela vitória do capitalismo sobre o comunismo, muito embora hoje essa mesma Europa esteja cada vez mais próxima do desencanto, da fragmentação, da desconstrução de sua autoimagem positiva e da construção do seu Terceiro Mundo disfórico às margens do Mediterrâneo e do Atlântico, com Portugal.

Em relação ao segundo e mais problemático termo, este A cidade das letras nos ajuda a entender uma parte da dificuldade, a começar pela falta que faz a excepcional erudição de Ángel Rama em matéria de América Latina, sua literatura e sua fortuna crítica no universo das letras. Tal erudição causa espanto. Como pode um intelectual tão empenhado nas lutas cotidianas, jogado a vários exílios, voltas e contravoltas de uma vida conturbada pelas perseguições tão características dessas terras (e extensivas aos Estados Unidos, que lhe negaram visto de permanência), desenvolver um conhecimento realmente espantoso a respeito da bibliografia sobre nosso continente?

Só há um fator que possa explicar esse paradoxo. Trata-se do amor desabrido, verdadeira paixão pela América Latina, sua cultura, e seus povos. Uma paixão que não desdenha as molduras ibéricas de nossas culturas, tampouco nega suas pluralidades, interfaces, fronteiras, divisões, tensões e contradições – ricamente dialético como é o pensamento de Rama, herdeiro e companheiro tanto de Platão e Aristóteles quanto de Marx e Lukács, de Adorno e Benjamin, de Antonio Candido, Alfonso Reyes, José Martí e Rodó.

Neste livro seminal, o leitor encontrará a reflexão fulgurante que vai da asteca Tenochitlán, no México, até a Brasília que o sonho (“autoritário” e “populista”, como às vezes é chamado) de e Lúcio Costa e Oscar Niemeyer construiu. Em todas as versões desses projetos, que circularam nas Américas durante séculos, construindo e destruindo “coisas belas”, como diria Caetano, fulgura a busca antiga dos europeus em sua conquista por uma “cidade ideal”, que substitua, em seu imaginário, a visão da crise em que mergulham as cidades renascentistas emanadas da desorganização dos espaços medievais e as contradições de sua reordenação através de projetos reformadores mais ou menos bem (ou mal) sucedidos.

Brilha, na análise de Rama, a consideração do papel dos intelectuais nesse vertiginoso e secular processo de construção, desconstrução e reconstrução. Papel este que se desdobrou em missão sacerdotal, administrativa, escriturária, cartorial (este termo é meu), muitas vezes querendo reafirmar os “valores europeus” diante da “barbárie” nativa do continente.

Mas também se afirmou através de processos mitigadamente “revolucionários”, que a partir do Romantismo, por exemplo, propuseram a substituição do conceito de “belas letras” pelo de “literatura”, aqui entendida como uma vocação nacional nascente capaz de expressar no mundo da cultura de igual para igual com a Europa, que estremecia sob a irrupção napoleônica e a restauração do Congresso de Viena, além dos movimentos operários e marxistas então emergentes.

Não escapa à fina percepção de Rama a contradição tipicamente latino-americana de que muitas das nossas “olas democratizadoras” são oriundas de um “cesarismo democrático”, liderado por formas caudilhescas de governo, muitas vezes autoritárias, mas rompedoras do imobilismo liberaloide de nossas elites, eternamente preocupadas com o próprio privilégio.

Este é um livro revolucionário, escrito por um revolucionário, para espíritos revolucionários – ou para revolucionar os espíritos acomodatícios.

Flávio Aguiar

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Fundador do Centro Ángel Rama, na Universidade de São Paulo, ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o mais novo A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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