A crítica crítica (crítica, crítica, crítica)

15.01.13_Harvey_Linera[Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia e o geógrafo marxista David Harvey]

Por Emir Sader.

“A teoria, quando penetra nas massas,
se torna força material.”
– Karl Marx

O intelectual olha para a teoria e a encontra magnifica (de fato, varias delas o são). Olha para a realidade e a encontra muito menos coerente e atraente. Fica enfim com a teoria, dando as costas para a realidade. Essa é a postura espontânea dos intelectuais, cuja pratica está vinculada a atividades acadêmicas, desvinculadas da pratica política.

A postura normal de um intelectual é a de interpelar a realidade a partir da teoria, perguntando-se por que a realidade não obedece aos cânones da teoria, sendo sempre um desvio em relação a esses cânones. Nada melhor então que o refugio da teoria, das teorias sobre as teorias, da crítica crítica.

Ao invés de interpelar a teoria a partir da realidade, que é a forma dialética de pensar as relações entre teoria e prática. O que a teoria tem para nos ajudar na transformação profunda da realidade?

A dissociação dramática entre a teoria e a prática política dentro mesmo do marxismo – que propõe, na sua essência, um vinculo indissolúvel entre elas –, foi abordada por Perry Anderson em seu Considerações sobre o marxismo ocidental, publicado pela Boitempo no Brasil. Como resultado da confluência da ação repressiva dos fascismos europeus e da stalinização dos Partidos Comunistas – ambas agindo na direção de bloquear o debate e a criatividade teórica, surgiu a figura do marxista acadêmico – uma categoria contraditória com o próprio marxismo.

Fragmentavam-se, por um lado, teorias sem transcendência na realidade, fechadas sobre si mesmas, cada vez mais debatendo suas próprias teorias. Por outro lado, práticas políticas pobres de reflexão teórica e estratégica.

As duas figuras se perpetuaram no tempo. Passaram a proliferar intelectuais que se consideram marxistas, apesar de não terem vinculo partidário algum, e que agem como franco-atiradores, críticos da esquerda realmente existente. De posse dos livros, se consideram mais marxistas que quaisquer outros, críticos contumazes das praticas partidárias, que se rendem às realidades concretas, “traindo” a teoria.

No Brasil eles proliferam na academia e na mídia tradicional, em geral criticando a esquerda, nunca, ou quase nunca, a direita – uma espécie de condição implícita para ter esses espaços. Publicam livros e têm amplos espaços na mídia, contanto que sejam livros críticos da esquerda, desencantados, pessimistas, céticos no limite do cinismo. São da turma do Cambalache: tudo é igual, nada é melhor. Se estiver melhor, se esgota sua perspectiva cética, então o uso da teoria por ele é para desmascarar qualquer possibilidade transformadora da realidade.

Para esse tipo de intelectual a teoria não é, ao mesmo tempo, um instrumento de compreensão e de transformação da realidade. Para que fosse assim, eles teriam que ser militantes, membros de partidos, participantes da construção coletiva de processos políticos realmente existentes e não livre atiradores – o que se contrapõe frontalmente à possibilidade de que possam se reivindicar o marxismo.

É na América Latina, nos processos pós-neoliberais mais avançados – na Bolívia e no Equador –, que essa dicotomia começa a ser superada. O presidente equatoriano Rafael Correa e o vice-presidente boliviana Álvaro García Linera, são as duas expressões mais claras dessa recomposição entre prática teórica e capacidade de direção política, onde se mostra que a crítica profunda da realidade só pode desembocar em projetos de transformação profunda da realidade, se não quiser permanecer sempre como crítica crítica.

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A Boitempo acaba de reeditar o clássico Estado e política em Marx, de Emir Sader. Confira o depoimento abaixo, em que Sader relembra o contexto da defesa e publicação desta que foi a primeira tese sobre Marx defendida na USP:

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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Publicou, entre outros, Estado e política em MarxA nova toupeira e A vingança da históriaColabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.

2 comentários em A crítica crítica (crítica, crítica, crítica)

  1. Márcio Joffily // 20/01/2015 às 10:05 pm // Responder

    Lembra o jovem Marx em seu embate com os jovens hegelianos de esquerda, além da crítica a Hegel. Lá, revolucionário; aqui, apenas paráfrase, para a miséria da teoria. Na do que escrevermos, silenciemos !

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  2. Eloy Palacio Urrutia // 28/01/2015 às 12:02 am // Responder

    Sader se equivoca cuando afirma: “O presidente equatoriano Rafael Correa e o vice-presidente boliviana Álvaro García Linera, são as duas expressões mais claras dessa recomposição entre prática teórica e capacidade de direção política”. Me refiero en particular al Ecuador, mi país. El presidente ecuatoriano ha rechazado explicitamente, en diversas oportunidades, el legado teórico de Marx, sea el concepto de lucha de clases o su teoría del valor. Por lo demás, Ecuador ha sido testigo en varias décadas anteriores de experiencias anticapitalistas, subversivas, que fueron aplacadas mediante experimentos populistas autoritarios, el más conocido, el ‘Velasquismo’. La irrisoria idea de una ‘Revolución Ciudadana’ solo puede caber en el ideario burgués. Ergo, en teoría política, en el contexto que introduce Sader, el error es mayúsculo.

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