Viagem ao seio materno

14.09.28_Viagem ao seio maternoPor Roniwalter Jatobá.

Numa madrugada fria, no Jardim Helena, em São Miguel Paulista, o trabalhador da construção civil Jacinto Ferreira da Silva sonhou que voltava para sua terra de origem, depois de trinta anos em São Paulo. E tal como em muitos sonhos, havia milagres.

Era um homem bem-sucedido, tinha posses. Nada que lembrasse os dias difíceis, o trabalho em turnos, o trem lotado e caindo aos pedaços, nem as ruas encharcadas e os córregos fétidos ao redor da moradia. Nada que lembrasse esquinas tomadas de lixo, o agonizante rio Tietê e a visão, quando ia para o trabalho, do Jardim Pantanal, onde moradias parecem boiar num horizonte de pesado mormaço. Não, afinal há sonhos onde tudo ou quase tudo é possível.

Num automóvel novo e possante, Jacinto cruza os caminhos para a Bahia. Ficam para trás prédios, depois pastagens e morros. Minas Gerais passa pelo vidro da janela, os olhos cansam nas retas das estradas baianas. Era julho em Bananeiras, tempo de chuvas finas que começam cedo e varam o dia inteiro. Depois de Senhor do Bonfim, deixa a estrada de asfalto e entra no caminho de terra no rumo do lugar onde nasceu.

Vista de longe, sua cidade parece mesmo um mundo perdido, descoberto por acaso. Uma só estrada: por ela se vai e por ela se vem. Cruza com lavradores que carregam enxadas nos ombros e tocam animais carregados de mandioca. Buzina alegre, respondem tristes. Já bem perto, atravessa a ponte de madeira que estrala com a passagem do carro sobre o rio Aipim, onde mulheres lavam roupas e vasilhames junto no leito enlameado.

O Santana preto sobe sem resfolegar a ladeira calçada de pedras, cercada de muros brancos, que leva ao arruamento. Ao longe, ao sul, a montanha azulada, que compõe a serra do Espinhaço, debruça sua gigantesca sombra pelas planícies cheias de verde. Ao centro, a igreja arrodeada de moradias seculares.

Jacinto pára o automóvel junto à igreja, já cercado de crianças maltrapilhas, que, indiferentes à chuva, buscam um trocado. Ele abaixa o vidro:

Onde mora dona Emília?

– Os garotos se entreolham, nenhum sabe a resposta.
– Nasci aqui – diz patético.

Em seguida, dirige contornando a praça até encontrar uma mulher debruçada numa janela. Os olhos dela fitam perdidos a chuva fina, alheios à presença daquele homem dentro do carro, tão fino, que ela sabe quem é.

– Conhece dona Emília?

Ela faz que não escuta. Logo, descruza os braços e fecha a janela. Jacinto desliga o motor e, por minutos, fica ouvindo o barulho da chuva gotejando sobre a capota do carro. Recorda das noites de verão de sua infância, sentado com a turma nos degraus da igreja ainda quentes pelo calor do sol. Chega mais gente vinda da roça.

Ali, falam do dia-a-dia: o boi mordido por cascavel e encontrado morto na ravina, para alegria de urubus carniceiros; o rio com água rala, corta não corta em alguns trechos, à espera da chuva que nessa época vem carregada de coriscos do lado do mar tão distante; os filhos que vão e vêm do Sul sem descobrir seus destinos; do rio naquela enchente que encheu até cobrir a gameleira copuda na beirada da roça do Antoinho; do Armando que se amigou outra vez e uma semana depois largou aquela fulana do Olho D’água, e agora vive bebendo mais do que antes; da festa de janeiro que a cada dia vai se acabando, o povo sem dinheiro para festa.

Ruas silenciosas agora, sem meninos nem mulher. Só ele ali parado no interior do carro, parecendo um fantasma. De repente, surge uma procissão que caminha lentamente em direção ao automóvel. Ele desce protegendo-se da chuva, homens, mulheres e crianças carregam estandartes e velas apagadas, como num funeral. Cruzam com Jacinto ao lado do carro, apenas a mulher desconhecida olha para sua figura enquanto comenta com as pessoas ao lado:

– É ele.

Depois, dirigindo-se a Jacinto:

– Sua mãe, Emília, morreu enquanto você ficou rico. Vá embora, contra a gente você não tem nenhum poder.

Logo, o grupo desapareceu à frente e, novamente, Jacinto estava só. Tentou lembrar-se comendo mangas redondas e amarelas em janeiro; pescando piaus e lambaris à sombra fria de um bambuzal em fevereiro; acordando na sua casa daquela praça com as folhas dos coqueirais voando contra as outras lembrando um vento forte, e lá fora o sol quentinho, em março; saboreando cajus vermelhos e amarelos em abril… Aí, Jacinto Ferreira da Silva deu alguns passos e entrou em seu carro, molhando com sua roupa o estofamento de veludo azul.

Nesse instante, ele acordou e viu que estava em seu leito. No quarto ao lado, seu filho mais velho grita e, em seguida, um cachorro gane. Assustado com lembranças cravadas na memória, mas ao mesmo tempo feliz pelo despertar do pesadelo, levanta. Sabia que estava atrasado e na certa ia perder o primeiro trem para o Brás. Mesmo assim certifica-se que está acordado: no entreabrir da cortina, avista mais um amanhecer que se debruça sobre sua janela em mais uma segunda-feira paulistana.

***

Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

1 comentário em Viagem ao seio materno

  1. Esse texto é daqueles que ao termino da leitura sentimos algo entre a saudade que temos dessas nossas origens e a vontade de ter conhecido seus personagens. A volta para casa, o silêncio que a vida impõe diante o fato imutável

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