Žižek: Se eu dominasse o mundo

14.01.31_Zizek_Se eu dominasse o mundoPor Slavoj Žižek.*

No thriller Havana Bay, de Martin Cruz Smith, um visitante americano se vê enredado numa trama contra Fidel Castro, mas depois descobre que ela tinha sido organizada pelo próprio Castro. Castro está perfeitamente ciente do crescente descontentamento com seu governo, mesmo na mais alta cúpula de seus funcionários, então a cada dois anos ele encarrega um agente secreto de organizar um complô para derrubá-lo, a fim de extirpar seus funcionários desleais. Assim, no momento em que o plano está prestes a ser executado, os dissidentes são presos e liquidados. 

Essa é a primeira coisa que faria para assegurar meu reino se eu dominasse o mundo – até Deus faz isso em O homem que era quinta-feira, de G.K. Chesterton, então não estaria em má companhia!

Minha próxima medida seria reduzir o padrão de vida de meus sujeitos. Por que? Aqui sigo a lição do pequeno romance de Ismail Kadare, A pirâmide, em que o faraó egípcio Quéops anuncia que não quer construir uma pirâmide, como seus predecessores. Alarmados com essa posição, seus conselheiros insistem que construir pirâmides é crucial para preservar sua autoridade, pois é uma forma de manter seu povo pobre e distraído, portanto obediente.

Quéops reconhece a sugestão de seus conselheiros, que passam então a examinar opções diferentes de diminuir a prosperidade dos cidadãos: envolver Egito numa Guerra com seus vizinhos, por exemplo, ou trazer à tona uma catástrofe natural (como interromper o fluxo regular do Nilo, prejudicando a agricultura). Mas essas opções são rejeitadas como perigosas demais (o Egito poderia perder a guerra, as catástrofes naturais poderiam levar a um caos incontrolável).

Retornam então à ideia de erguer uma pirâmide tão grande que sua construção mobilizaria os recursos de todo o país e minaria as energias de sua população, mantendo todos na linha. O projeto deixa o país em um estado de emergência por duas décadas – a polícia secreta ocupada investigando sabotagens, organizando detenções pseudo-stalinistas, confissões públicas e execuções. Eu tentaria encontrar uma missão semelhante, mais apropriada aos nossos tempos, como investir quantias astronômicas de dinheiro em expedições humanas a Marte e a outros planetas.

Para financiar esses projetos públicos extravagantes, decretaria leis incentivando o fumo. Fumantes pesados morrem mais cedo – imagine só quanto o Estado deixaria de gastar em aposentadoria e saúde. Sob meu domínio, em estilo soviético, todo fumante que consumir no mínimo dois maços por dia pagaria menos impostos e receberia uma medalha especial como Herói Público de Consolidação Financeira.

Ademais, para manter a moralidade pública e reduzir a depravação sexual, acrescentaria educação sexual obrigatória ao currículo da escola primária. Essas aulas adotariam a abordagem esboçada na famosa cena de O sentido da vida, de Monty Python, em que um professor avalia os conhecimentos de seus alunos em como excitar uma mulher. Revelados como inexperientes no assunto, os alunos, envergonhados, evitam o olhar do professor e gaguejam ao responder. O professor os repreende por não praticarem a matéria em casa e, com a ajuda de sua mulher, demonstra a penetração do pênis na vagina. Um dos alunos lança um olhar furtivo pela janela e o professor lhe pergunta sarcasticamente: “Gostaria de nos contar o que há de tão interessante lá fora no pátio?” Tal educação certamente estragaria o prazer do sexo por gerações.

Por fim – mas não menos importante –, para garantir que as pessoas tratassem umas às outras de forma educada e gentil, instituiria uma regra obrigando que, antes de cada conversa, haja um período ritualizado de insultos vulgares. Por que? Mas isso não seria contrário ao senso comum, que nos diz que só podemos apelar ao xingamento descarado quando, no meio de uma conversa educada, ficamos realmente de saco cheio e incapazes de conter nossa frustração? Mas aqui o senso comum está errado (como costuma ser o caso).

Tenho um ritual com alguns de meus bons amigos: quando nos encontramos, iniciamos durante os primeiros cinco minutos uma rotinizada sessão de xingamentos grosseiros e sem pudor, ofendendo uns aos outros. Aí, depois de nos cansarmos, reconhecemos com uma breve troca de olhares que esse enfadonho mas inevitável ritual introdutório chegou ao fim e, com o grande alívio de ter cumprido com o dever, relaxamos e começamos a conversar de forma normal e educada, como as pessoas gentis e atenciosas que realmente somos. Impor tal ritual em todas as pessoas garantiria a paz e o respeito mútuo.

Acha que essas são meras piadas extravagantes? Pense de novo: já não vivemos em um mundo como esse?

* Publicado em inglês na revista Prospect, de janeiro de 2014.
A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.

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Todos os títulos de Slavoj Žižek publicados no Brasil pela Boitempo já estão disponíveis em ebooks, com preços até metade do preço do livro impresso. Confira:

Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917 * ePub (Amazon |Gato Sabido)

A visão em paralaxe * ePub (Amazon | Gato Sabido)

Bem-vindo ao deserto do Real! (edição ilustrada) * ePub (Amazon | Gato Sabido)

Em defesa das causas perdidas * ePub  (Amazon | Gato Sabido)

Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético * ePub (Amazon | Gato Sabido)

O ano em que sonhamos perigosamente * ePub (Amazon | Gato Sabido)

Primeiro como tragédia, depois como farsa * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)

Vivendo no fim dos tempos * ePub (Amazon | Gato Sabido)

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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidasPrimeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011) e o mais recente, Vivendo no fim dos tempos (2012). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

10 comentários em Žižek: Se eu dominasse o mundo

  1. Carlos Antunes // 03/02/2014 às 8:42 pm // Responder

    “Reduzir o padrão de vida de meus SUJEITOS” ou “SÚDITOS”? Houve um lapso na tradução do inglês “subjects” aí.

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    • Artur Renzo // 04/02/2014 às 6:07 pm // Responder

      Tem razão Carlos, mas não houve lapso na tradução. A palavra em português preserva esse significado. Como esse uso da palavra também é pouco comum na língua original, optou-se pela palavra “sujeitos” mesmo na tradução. Grato pela atenção!

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  2. José Isaías Venera // 04/02/2014 às 2:11 pm // Responder

    A sugestão, absurda, é interessante. É como se precisássemos inverter tudo. Assim, os desejos viriam sempre primeiro. Como se fosse precisos vomitar tudo sobre o outro para depois aceitá-lo de braços abertos… Assim, teríamos que iniciar qualquer interação, primeiro, num ritual canibal (subjetivamente, é lógico) e depois sim, vestiríamos nossa segunda pele, a de civilizados…. Uma forma que expurgar a cada novo passo os chamados conteúdos reprimidos… É quase uma política clínica.

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  3. Bruno Diniz // 05/02/2014 às 1:51 am // Responder

    último parágrafo desnecessário – comprometeu a sutileza do texto. mas afinal de contas, texto excelente

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    • Verdade, Bruno. Um didatismo exagerado que não compromete um texto bacana. Deve estar sublimando toda aquela discussão com o Chomsky sobre fetichização da forma.

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  4. Paulo Gadamer // 14/02/2014 às 5:26 pm // Responder

    A tradução está com dois equívocos, um último parágrafo, em que está escrito “pessoas consideradas” (O correto seria “atenciosas”, ele está sendo irônico!, “considerate” não tem a conotação de “ilustre”), e o outro onde está escrito “sujeito”, que já perdeu há muito tempo a conotação de súdito na língua portuguesa. “Pessoas consideradas” me motivou a ler o texto em inglês, não fez sentido. Mas o texto é bom, parabéns ao tradutor apesar disso

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    • Artur Renzo // 14/02/2014 às 8:31 pm // Responder

      Agradeço o elogio e a atenção, Paulo. No primeiro caso, como esclareci ao Carlos Antunes, trata-se de uma escolha da tradução. A palavra “sujeito”, com carga psicanalítica de tabela, não perdeu essa conotação (no Houaiss, aliás, ela aparece na primeira entrada do verbete), só não comparece na linguagem mais comum, assim como na própria língua de origem. Quanto à segunda observação, realmente é muito pertinente. Valeu e um abraço!

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  5. Ler textos de Zizek é sempre uma viagem ao “País das Maravilhas” com Alice. Tudo é inusitado, herético e subjetivo: uma infâmia necessária para se entender nossa pós-modernidade.

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  6. isso é filosofia: perplexidade, pensamento fora da ordem comum porém com profundidade. De lugar comum estamos cheios.

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  7. É isso q refleti ao ir lendo o q ele faria…essas situações já existem

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