O Movimento Passe Livre

14.01.23_Michael Löwy_Movimento Passe LivrePor Michael Löwy.

Enviado pelo autor em francês e traduzido para o português por Mariana Echalar.

Como todos sabem, foi a luta do Movimento Passe Livre (MPL), movimento a favor dos transportes públicos gratuitos e mobilizado contra o aumento da passagem do ônibus, que desencadeou a ampla e impressionante mobilização popular no Brasil em junho passado, colocando centenas de milhares de pessoas, se não milhões, nas ruas das principais cidades do país. Quais lições podemos tirar dessa experiência e qual é o alcance social, ecológico e político da luta pelo transporte gratuito?

O MPL foi criado em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, como uma rede federativa de coletivos locais. Esses coletivos já existiam havia alguns anos e haviam travado lutas importantes, como a de Salvador, em 2003, contra o aumento da passagem de ônibus. A carta de princípios do MPL (revista e completada em 2007 e 2013) define o movimento como “um movimento horizontal, autônomo, independente, não partidário, mas não antipartidos”. A horizontalidade é, sem dúvida, a expressão de um modo de proceder libertário, que desconfia das estruturas e das instituições “verticais” e “centralizadas”. A autonomia em relação aos partidos significa a recusa de ser instrumentalizado por estes últimos, mas o movimento não rejeita a colaboração e a ação comum com organizações políticas, em especial da esquerda radical. Assim, coopera com associações de bairros populares, movimentos pelo direito à moradia, redes de luta pela saúde e certos sindicatos (metroviários, professores). Vê no transporte gratuito não um fim em si, mas “um meio para a construção de uma sociedade diferente”. Pequena, a rede nunca passou de algumas centenas de militantes, enraizados primeiro nas escolas de ensino médio e mais tarde em certos bairros populares. De sensibilidade anticapitalista libertária, os ativistas têm diferentes origens políticas: trotskistas, anarquistas, altermundialistas, neozapatistas; com uma pontinha de humor, alguns se definem como “anarcomarxistas punks”. Em novembro de 2013, graças ao apoio financeiro da filial brasileira da Fundação Rosa Luxemburgo, o MPL realizou pela primeira vez desde sua criação uma Conferência Nacional em Brasília, com a participação 150 delegados, representando 14 coletivos locais. Algumas resoluções foram adotadas, por consenso, e um grupo de trabalho, composto por representantes dos coletivos, foi encarregado de coordenar as iniciativas, respeitando a autonomia local e a “horizontalidade”. (Obtivemos essas informações graças a dois encontros com militantes do MPL em São Paulo, em novembro de 2013.)

O método da luta do MPL também tem inspiração libertária: a ação direta na rua, frequentemente lúdica e “isolante”, ao invés da “negociação” ou do “diálogo” com as autoridades. Os militantes não fetichizam nem a violência nem não violência; uma de suas ações típicas é o bloqueio de ruas, ao som de música, ateando fogo a pneus e “catracas”. O símbolo do MPL é uma catraca em fogo… Devo lembrar que o transporte comum, que originalmente era um serviço público, foi privatizado em todas as cidades do país, e é de responsabilidade de empresas capitalistas de hábitos mafiosos. No entanto, os prefeitos das cidades têm o controle dos preços das passagens.

A inteligência tática do MPL foi ter estabelecido, em primeiro lugar, um objetivo concreto e imediato: contra o aumento das passagens decidido pelas autoridades locais nas principais cidades do país, tanto as administradas pela centro-direita quanto pela centro-esquerda (o PT, que se tornou social-liberal). Rejeitando os argumentos pretensamente “técnicos” e “racionais” das autoridades, o MPL mobilizou milhares de manifestantes, duramente reprimidos pela polícia. Esses manifestantes se transformaram em dezenas de milhares e, depois, em milhões (à custa, é verdade, de certa diluição política), e os poderes locais foram obrigados a, precipitadamente, revogar os aumentos. Primeira lição importante: a luta compensa, é possível ganhar e dobrar as autoridades “responsáveis”!

Ao mesmo tempo que travava esse combate prático e urgente, o MPL não deixou um só instante de agitar seu objetivo estratégico: tarifa zero, transporte público gratuito. Para isso, observa a Carte de Princípios, é necessário “retirar o transporte comum do setor privado, pondo-o sob o controle dos trabalhadores e da população”. É o que os militantes do MPL denominam “perspectiva classista” do seu combate. Trata-se de uma exigência de justiça social elementar: o preço do transporte é proibitivo para as camadas mais pobres da população, que vivem na periferia degradada das grandes cidades e dependem dos transportes comuns para trabalhar ou estudar. Essa é uma reivindicação que interessa diretamente aos jovens, aos trabalhadores, às mulheres, aos moradores das favelas, isto é, à grande maioria da população urbana.

Mas a tarifa zero é também uma demanda profundamente subversiva e antissistêmica, dentro do espírito do que poderíamos chamar de método do programa de transição. Como observa a Carta de Princípios do MPL, “nossas demandas ultrapassam os limites do capitalismo e põem em questão a ordem existente”. Ela é um belo exemplo do que o filósofo marxista Ernst Bloch chamava de uma utopia concreta. É claro que há cidades, tanto no Brasil como na Europa, em que essa proposta pode ser realizada. Numerosos estudos especializados demonstraram que é perfeitamente possível colocá-la em prática sem sobrecarregar o orçamento das administrações locais. A verdade, no entanto, é que a gratuidade é um princípio revolucionário, que vai ao arrepio da lógica capitalista, pela qual tudo deve ser mercadoria; portanto, é um conceito intolerável, inaceitável e absurdo para a racionalidade mercantil do sistema. Ainda mais que, como propõe o MPL, a gratuidade dos transportes é um precedente que pode abrir o caminho para a gratuidade de outros serviços públicos, como educação, saúde etc. De fato, a gratuidade é a prefiguração de uma sociedade diferente, baseada em valores e regras diferentes daquelas do mercado e do lucro capitalistas. Daí a resistência obstinada das “autoridades”, sejam elas conservadoras, neoliberais, “reformadoras”, centristas ou sociais-liberais.

Há ainda outra dimensão da reivindicação do transporte gratuito, que por enquanto não foi suficientemente alegada pelo MPL (mas começa a ser levada em consideração): o aspecto ecológico. O sistema atual, totalmente irracional, de desenvolvimento ilimitado do carro individual, é um desastre tanto do ponto de vista da saúde dos habitantes das grandes cidades – milhares de mortes são causadas pela poluição do ar, diretamente provocada pelo escapamento dos veículos – quanto do ponto de vista do meio ambiente. Como se sabe, o carro é um dos principais emissores de gás de efeito estufa, responsável pela catástrofe ecológica que são as mudanças climáticas. O carro é, desde o fordismo até hoje, a principal mercadoria do sistema capitalista mundial; consequentemente, as cidades são inteiramente organizadas em função da circulação automobilística. Ora, todos os estudos mostram que um sistema de transportes coletivos eficaz, extenso e gratuito, permitiria uma redução significativa do uso do carro individual. O que está em jogo não é somente a tarifa do ônibus ou do metrô, mas outro modo de vida urbana, simplesmente outro modo de vida.

Em resumo, a luta pelo transporte público gratuito é ao mesmo tempo uma luta pela justiça social, pelo interesse material dos jovens e dos trabalhadores, pelo princípio da gratuidade, pela saúde pública, pela defesa dos equilíbrios ecológicos. Ela permite formar amplas coalizões e abrir brechas na irracionalidade do sistema mercantil. Nós temos muito que aprender com o MPL…

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O MPL assina o artigo de abertura do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, editado pela Boitempo em 2013. Disponível em versão eletrônica (ebook) aqui por R$ 5,00 e em versão impressa por R$ 10,00, a coletânea de mais de 100 páginas conta ainda com artigos de Slavoj Žižek, David Harvey, Ermínia Maricato, Ruy Braga, Mauro Iasi, Raquel Rolnik, Mike Davis, entre outros!

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Cidades Rebeldes_JornadasConfira a cobertura das manifestações de junho no Blog da Boitempo, com vídeos e textos de Mauro Iasi, Ruy Braga, Roberto Schwarz, Paulo Arantes, Ricardo Musse, Giovanni Alves, Silvia Viana, Slavoj Žižek, Immanuel Wallerstein, João Alexandre Peschanski, Carlos Eduardo Martins, Jorge Luiz Souto Maior, Lincoln Secco, Dênis de Moraes, Marilena Chaui e Edson Teles, entre outros!

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Michael Löwy, sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Homenageado, em 1994, com a medalha de prata do CNRS em Ciências Sociais, é autor de Walter Benjamin: aviso de incêndio (2005), Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade (2009), A teoria da revolução no jovem Marx (2012) e organizador de Revoluções (2009) e Capitalismo como religião (2013), de Walter Benjamin, além de coordenar, junto com Leandro Konder, a coleção Marxismo e literatura da Boitempo. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

1 comentário em O Movimento Passe Livre

  1. CURIOSO, para dizer o mínimo: não ter uma única chamada na página virtual do ‘MPL – São Paulo’ sobre o gigantesco escândalo da roubalheira no metrô! Será que toda essa bandalheira, desde tão longas datas, sob as asas de ‘ínsuspeitos’ governantes, não prejudicou ainda mais a qualidade do transporte público na cidade? Será? Será que não tem nenhum caroço no angu cozido pelos artífices do MPL? Será que essa temporã e doce goiaba política, se não nasceu bichada, já não foi contaminada?
    E por que será que tantos intelectuais bem pensantes, apenas entoando loas aos inéditos meios e metas, aos méritos e aos “mestres” do MPL, escrevem, escrevem, escrevem mas não chamam qualquer atenção para isso? Afinal, estão mesmo vesgos e sendo complacentes com o quê? Uma quase cegueira involuntária ou deliberada? Será que não se dão conta de que esses jovens, presumindo-se espertos jogadores, correm claro risco de serem usados como peças de um tabuleiro cujos efetivos jogadores estariam longe dos holofotes midiáticos? ESTRANHO, para dizer o mínimo!
    Guinada na primavera árabe do Egito à direita, guinada na Espanha à direita… mas esse é um tema espinhoso que sequer entra em pauta nesta e em várias outras análises sobre as manifestações populares, como se sequer se cogitasse a possibilidade de existir ocultos e poderosos interesses, aqui ou alhures, por trás das horizontalidades virtuais, dos supostos apartidarismos ou da ausência de lideranças convencionais.
    Quem quiser ser um pouco menos crédulo, desavisado ou desatento, vale conferir: http://saopaulo.mpl.org.br/

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