Poder e desaparecimento

14.01.15_EmirSader_JuanGelman_Por Juan Gelman.*

Em 7 de maio de 1977, um comando da Aeronáutica sequestrou Pilar Calveiro em plena rua e a levou ao que ficou conhecido como “Mansão Seré”, um centro presidiário clandestino dessa força militar instalado a duas quadras da estação Ituzaingó. Naquela noite Pilar sonhou com sua família – marido, filhas, pais – imóvel numa foto na parede, despedindo-se dela com um gesto de mão. Naquele dia começou seu percurso de um ano e meio num inferno que continuou em outros campos de concentração: na delegacia de Castelar, na ex-casa de Massera, localizada na esquina da rua Panamericana com a Thames e transformada em centro de torturas do Serviço de Informações Navais, e, finalmente, na Esma [Escola de Mecânica da Armada]. E este seu livro Poder e desaparecimento é um livro extraordinário.

Existem obras notáveis sobre a experiência concentracionária de sobreviventes dos campos de concentração nazistas ou dos gulags soviéticos – Primo Levi, Gustav Herling –, escritas em primeira pessoa, conforme exige o depoimento. Este livro é diferente: a autora recorreu à terceira pessoa, a pessoa outra, para falar do que viveu. Somente de passagem nomeia a si mesma, “Pilar Calveiro: 362”, número que os repressores lhe deram na Esma. A partir desse distanciamento, oferece um campo de reflexão rico e matizado sobre “a vida entre a morte” dos prisioneiros, a esquizofrenia dos algozes, o cruzamentos necessário entre uns e outros, as diferentes atitudes de uns e outros. Não evita nenhum tema, nem mesmo aquele ainda hoje urticante na Argentina, das suspeitas dirigidas aos sobreviventes de um campo, tal como ocorrido na Europa do pós-guerra. Pilar Calveiro desmonta a fácil divisão dos cativos entre “heróis” e “traidores” e aborda a dura complexidade do problema no universo dominado pelos tormentos, pelo silêncio, pela escuridão, pelo corte brutal com o lado de fora – separado apenas por uma parede –, pela arbitrariedade dos algozes, senhores da vida e da morte, cuja vontade era fazer da vítima um animal, uma coisa, um nada. Fala também da “virtude cotidiana” da resistência dos “desaparecidos”, dos pequenos atos valiosos, anônimos, de grande risco, exercícios da dignidade humana que nem o mais totalizador dos poderes pode afogar.

A rigorosa reflexão de Pilar Calveiro não se detém nisso: adentra nas relações entre o campo de concentração e a sociedade argentina – “correspondem-se”, diz –, transformada em habitante de um enorme território concentracionário manipulado pelo terror militar. Adverte: “a repressão consiste em atos arraigados no cotidiano da sociedade, por isso é possível”. Trata-se de ideias sobre as quais convém meditar: a História está repleta de repetições, e poucas pertencem ao domínio da comédia.

Na verdade, Poder e desaparecimento é uma façanha. Pilar Calveiro atravessou a situação mais extrema do horror militar e teve a difícil capacidade de pensar a experiência. É singular que sejam os sobreviventes dos campos as vítimas que mais penetram no que ocorreu. Saem assim do lugar de vítima que a ditadura militar quis lhes impor para sempre e somente elas sabem a que custo. Sua contribuição para elucidar a verdade e para a memória cívica é inestimável à sociedade argentina. Que algum dia – espero – reconhecerá essa dívida.

O livro contém dois relatos. O primeiro é o que sobrepõe o preto no branco, analítico, pensante, aparentemente despersonalizado. Aparentemente. O segundo relato, invisível aos olhos, é o que sustenta uma escrita que jamais decai, alimentada por uma paixão intacta, apesar da tortura e da visão de diversas faces da morte, e seguramente movida pelo desejo de acabar com “o silêncio que navega sobre a amnésia” social. Com o trabalho para e a partir deste texto, Pilar Calveiro sai airosa do campo de concentração, e com ela, vivos ou mortos, todos os seus companheiros de dor. Ou seja, Poder e desaparecimento é também uma vitória.

* Publicado originalmente como “Prelúdio” à edição brasileira de Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina, de Pilar Calveiro.

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Leia também Juan Gelman, homenagem de Emir Sader ao poeta, amigo e ativista que acaba de nos deixar.

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Juan Gelman foi um poeta, tradutor e jornalista argentino. Nascido em Villa Crespo, Buenos Aires, em 1930, filho de imigrantes ucranianos judeus – seu pai, José Gelman participara da revolução russa de 1905. Ativista político, foi ligado aos Montoneros e após o golpe militar de 1976, exilou-se da Argentina. No mesmo ano seu filho e sua nora, grávida, foram sequestrados e “desaparecidos”. Autor de mais de vinte livros de poesia, venceu o Prêmio Cervantes em 2007, o mais importante da literatura espanhola. Faleceu no dia 14 de janeiro de 2014.

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