O chimpanzé, nosso irmão

13.12.18_Urariano Mota_ChimpanzéPor Urariano Mota.

Não faz muito, toda a imprensa noticiou a espantosa descoberta: 99,4% dos genes do chimpanzé são semelhantes aos do homem. Da imprensa mais grave, que deseja nessa gravidade passar um ar sério, à imprensa mais popularesca, que se vê na alta reputação de imprensa popular, toda ela, grave ou vulgar, divulgou a nova sem restrição, mas sempre conforme o próprio estilo. Na de maior massa exibiram-se fotos de chimpanzé fêmea com lacinho vermelho na cabeça. Já na mais sisuda evitaram-se as fotos, mas os títulos foram bem sugestivos, como os do gênero “Chimpanzés e Homens, tudo em comum”. De comum mesmo, na imprensa de todo gênero, só o sensacionalismo, a leveza mistificadora, acompanhados do inseparável engodo. Pois uma e outra na ânsia de destacar os 99,4% passavam por cima, em voo rápido, da palavra “semelhante” da divulgação original de Morris Goodman, da Academia Nacional de Ciências, dos Estados Unidos. Escreviam-na, “semelhança”, é certo, mas o corpo, o conjunto do noticiado, organizava o “semelhante” com o mesmo significado de idêntico .

Sensacionalismo à parte, pois é do espírito da média imprensa o sacudir o nosso torpor para que nos subam à cabeça os melhores instintos de nossos ancestrais, sensacionalismo esquecido, seria bom uma viagem para o interior do espírito do chimpanzé da notícia. O que se divulgou sem discussão, repetido ao infinito, como um sucesso programado de hit parade, tentemos discutir agora.

O resumo da descoberta de Morris Goodman, publicado no site da Academia Nacional de Ciências fala em “semelhanças” de 99,4% em 97 genes de homens e chimpanzés. Ora, o que esses números, 97 e 99,4%, querem mesmo dizer? Primeiro, que do total de genes humanos escolheram-se 97. Certamente, por serem os mais significativos da existência do homem, supomos. Segundo, que desses genes escolhidos, apenas 0,6% foram absolutamente diferentes dos genes do chimpanzé. Paremos aí. Alguém já se deu conta de que, a depender da área, da região escolhida, da amostra, os números percentuais variam? Por exemplo, e nos perdoem o  grosseiro, se se comparam os números de dedos dessas espécies, homens e chimpanzés coincidem em 100%. No entanto, se se comparam a identidade, a semelhança íntima entre os dedos de ambas, a variação pode ir de 99, 98, 100 a 10, 5, 8, 3,2 por cento. Isto porque, a esta altura, teríamos entrado no dificílimo reino de quantificar qualidades. (Vá lá, concedamos, por qualidades compreendemos “pistas orgânicas de evolução”.) Neste caso, os critérios, ainda que mais objetivos e transparentes pareçam, guardam sempre um traço de subjetividade, histórica ou pessoal. Que critérios elegeríamos, para serem comparados nos dedos, a sua superfície, a sua cor, o desenho da polpa, a sua estrutura íntima, ou …, e qual desses critérios seria o caráter final, a natureza fundamental dos dedos? A depender disso, entre 0 e 100 a variação é infinita, ao gosto de quem o escolhe. Os números, quando não bem definidos, quando não referenciados com riqueza, em lugar de esclarecimento, confundem. Pense-se, por exemplo, na quantidade de genes que um ser humano tem a mais que um rato. Não passa de 1% . Isto, 1%! O que isso afinal quer dizer? Que escapamos por um triz de nos mover nos esgotos? Ou que 300 genes a mais, num universo de 30.000, são extraordinariamente mais significativos que todos os  demais 29.700?

O comunicado da Academia, quase diria, pela repercussão acrítica, o comando da Academia fala em comparação de amostras de regiões semelhantes do DNA entre homens e macacos. O que por “semelhantes” quer mesmo dizer? Assim fala o comando: “Comparamos 90 kb de seqüência do DNA de 97 genes humanos  com seus correspondentes sequenciados de chimpanzés, gorilas…”. (Numa rápida olhada, vê-se o quanto é importante o número 90 para a pesquisa do biólogo: 90 kb, 97 genes, 99,4% , 98,4%.) Quer isso dizer que foram comparadas as regiões semelhantes de 97 genes? Sim, é isso. Mas, calma, a dificuldade ainda não vencemos. O que é, onde reside, a se supor um lugar preciso, físico, determinado, onde reside mesmo essa semelhança? O Comunicado, ou o Comando, fala em regiões que sofreram seleção natural. O que é, se bem compreendemos, uma localização bastante vaga, ou tão precisa quanto “uma certa casa no planeta Terra”. Pois, reconheçamos, regiões que sofreram seleção natural são  cada e todo e qualquer infinitésimo milímetro do organismo humano. Se não fomos criados de uma só vez por um sopro divino, cada ínfima parte do nosso ser é resultado de seleção, de luta, de sobrevivência da feliz reunião da sorte, da necessidade e do acaso.

Despercebida essa perigosa reflexão, que detém o avanço ligeiro do método discutível, fácil é passar para o passo seguinte, divulgado pelas melhores revistas, daquelas que ousam uma pose crítica. Assim se pronunciou este instante raro de reflexão: “Com a chegada desse ‘novo’ parente …” (sintomático, as aspas caem sobre o novo, não sobre o parente ), mas não nos interrompamos: “Com a chegada desse ‘novo’ parente, o próximo passo seria descobrir os 0,6% de diferença genética que torna o Homo sapiens capaz de compor músicas, construir prédios e fazer pesquisas científicas”. Ou este primor de originalidade de outra revista: “O certo é que, graças a estes 0,6%, um ser humano – Beethoven – escreveu a Nona Sinfonia…”. Percebam: são uns 0,6% muito revoltados, mui indignados contra os 99,4%! Se falassem, gritariam: “Nós somos o sal que tempera e faz artimanhas em pesquisas científicas”. Pois quando se levam em conta as diferenças cognitivas entre as espécies … das duas, uma: ou essa pesquisa diz absolutamente coisa nenhuma, ou os chimpanzés têm uma forma tão avançada de pensamento que nos seus 0,6% de diferença se escondem. Nessa região que nos ocultam, zombam de nós, os humanos (até prova em contrário), zombam de nós, eles, os chimpanzés, rindo de nossa pretensão em nivelá-los a um mesmo gênero. Ora, o caso pode não ser o de incluí-los no gênero Homo. Talvez fosse o caso de nos incluir no privilégio do gênero deles, os Pan  trogloditas.

Nos últimos tempos, temos sido cada vez mais assaltados por opiniões ligeiras, levianas, de cientistas que saem dos seus sapatos para emitir juízos universais. Já em O Gene da Burrice, e em Máquinas Inteligentes, discutíamos o profundo ridículo desses voos sem asas. Mas desta vez a descoberta é mais ardilosa. Em lugar da simples e pura opinião, como a do prêmio Nobel que falava em isolar o gene da burrice, como se pudesse aprisionar num laboratório o processo social, ou como a do físico que discorria sobre máquinas que imitassem o pensamento, o que, convenhamos, em se tratando do cérebro dele não seria lucrativo para a máquina, desta vez o cientista nos brande 90 kb de pesquisa e uma conclusão amparada em números, em frios e exteriores percentuais.

Se nessa pesquisa não há fraude, como algumas vezes tem acontecido na história da ciência, conforme chamava atenção artigo publicado em La Insígnia (Sobre girafas, mariposas, corporativismo científico e anacronismos didáticos), de Isabel Rebelo, se nessa pesquisa há somente um equívoco, um desnorteio de rumos, então seria a hora de uma volta à clássica discussão do que faz do homem um humano. Ou, antes, para ficar nos limites marcados por essa descoberta: seria a hora de se perguntar o que é que faz do chimpanzé um humano. Para os cientistas envolvidos nessa pesquisa não há dúvida: “Os genes, os genes”, seria a resposta. Já um romancista responderia: “A imaginação”. E completaria: “Não a do chimpanzé, mas a de quem pesquisa sobre ele”. Ao que diria um produtor de televisão: “Sem dúvida, o lacinho vermelho na cabeça da fêmea da espécie. Isso dá uma graça especial à notícia”. Já os noticiaristas não teriam nenhum receio em observar: “Os 99,4%. Que mais querem? Pois 99,4 não são quase 100? E se a esses 99,4 você liga cientistas, gene, macaco e pesquisa, é fatal: é pura ciência”. Ao que completaria o seu editor, com água na boca: “Ciência ou não, o que importa? Esta é uma discussão sem sentido. O que vale é a versão, é a notícia. Chimpanzé e Homem, vizinhos, juntinhos. Um quadro desses é o que importa.”. Já o nosso adotado irmão dos 90 kb de pesquisa, com os seus compridíssimos braços, entre olhinhos buliçosos, nos advertiria: – Eu, se escrevesse estas linhas, não diria o que você disse. Contra genes e bananas não existem argumentos. 

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

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