O Rei Roberto Carlos e sua especial história

13.11.05_Urariano Mota_A história especial de Roberto CarlosPor Urariano Mota.

Os argumentos dos compositores do Procure Saber contra as biografias sem autorização têm sido um desastre danoso de danação. Grandes artistas da música brasileira como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento e, por vizinhança da companhia, o Rei Roberto e Erasmo Carlos, quanto mais falam, mais afundam em areia movediça. Quanto mais se revolvem no pântano, na lama, mais se perdem nos últimos anos das suas vidas.

Os compositores da música popular não precisavam deste presente e desonroso capítulo. Mas Roberto Carlos, talvez em razão da sua majestade, cometeu em um domingo a mais expressiva decadência dos músicos. O Procure Saber pode agora dispensar Paula Lavigne para ser irrefletido, inculto e estúpido. Antes, a doce Paulinha, para Caetano, já havia falado em seu natural soft:

“Aqui no Brasil parece que só existe liberdade de expressão, o direito à privacidade não é respeitado… Nosso grupo é contra a comercialização de uma biografia não autorizada. Não é justo que só os biógrafos e seus editores lucrem com isso e nunca o biografado ou seus herdeiros. Usar o argumento da liberdade de expressão para comercializar a vida alheia é pura retórica”.

Salve, simpatia, poderíamos cantar. Mas descansem agora as opiniões e pernas de Paula Lavigne, pois um valor mais alto se alevanta. O Rei Roberto Carlos fala melhor em grossura, como nestes momentos da entrevista a Renata Vasconcellos, no Fantástico:

Roberto Carlos: O biógrafo também pesquisa uma história que está feita. Que está feita pelo biografado. Então ele na verdade ele não cria uma história. Ele faz um trabalho e narra aquela história que não é dele. Que é do biografado. E partir do que ele escreve, ele passa a ser dono da história. E isso não é certo.

Renata: Por uma questão também comercial?

Roberto Carlos: Por tudo…”

Amigos, é de causar surpresa, e surpresa muito ruim, descobrir a profunda ignorância de artistas da música popular sobre o próprio ofício, sobre a própria condição da arte. Criadores, até como um dever de casa, deveriam investigar mais as razões do seu modo de ser no mundo. Mas não. Na entrevista ao Fantástico, Roberto Carlos é de um primarismo absoluto ao declarar a crença de que a sua história já está feita. Ou, no caso das biografias, que a história dele já está feita por eles. Engano. Ele quis dizer – e não soube como – que os anos foram vividos por ele. O que já seria uma burrice, pois os que estivemos nesse mesmo tempo somos parte legítima para contá-la. Ou em frase mais clara: a história da vida de um homem, mesmo que de um pop star, de um semideus, será feita por quem contá-la. Elementar. A vida será contada a partir de fatos que foram vividos não apenas pelo biografado. Nesse particular sentido, a história de uma pessoa está sempre a ser recontada.

O fato, mesmo, é que ao lado da ignorância de Roberto Carlos se encontra algo mais palpável: é grana, é dinheiro, é moeda. Ele e os demais compositores querem faturar o restinho das suas vidas com os subprodutos, como se fosse uma utilização total de um boi, que eles creem ser subprodutos, espécie de aproveitamento de ossos de um açougue para a sopa. Ah, não, a venda dos ossos é minha. Ou para sair da metáfora de matadouro bovino: os compositores avançam sobre a venda de direitos da “sua” história para o cinema e a televisão.

E disse mais Roberto Carlos à repórter do Fantástico, entre pausas e sorrisos na máscara de maquiagem que envergonhada cobre os muitos anos no rosto:

Roberto Carlos: Eu estou escrevendo a minha história. E informando muito mais a essas pessoas sobre a minha vida, sobre as minhas coisas, muito mais do que qualquer outra fonte.

Renata: Quem escreveria a biografia do Roberto Carlos com as bênçãos do Rei?

Roberto Carlos: Eu. Detalhes que com certeza não vão estar em outras biografias… Também não sei se vai caber num livro só. Talvez dois ou três livros pra escrever toda a minha história.

Renata: A vida do Roberto não cabe num livro só.”

Ele próprio, Roberto Carlos, vai escrever a sua autobiografia! Isso é maravilhoso. Todos sabem que o Rei é incapaz de escrever um simples texto de 3 linhas, mais conhecido pelo nome de bilhete, mas será capaz de escrever uma longa autobiografia. E em vários volumes, porque a sua vida não cabe em um só livro. Meu Deus. O seu conhecimento de tempo dramático, de síntese, de montagem e seleção, de hierarquia de acontecimentos de uma vida, é zero. Por isso ele conclui, em um esforço de modéstia, que depois de 72 anos a sua vida pode dar 3 volumes. Imaginem se reunir os diários de todas as suas horas até hoje: o mundo se encherá de livros com os títulos Roberto Carlos I, Roberto Carlos II, Roberto Carlos III… infinito.

Para o Rei, o show já terminou. Mas disso ele ainda não tem informação, conhecimento ou consciência. Saudade de Paula Lavigne.

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

3 comentários em O Rei Roberto Carlos e sua especial história

  1. Marcos Lima Filho // 05/11/2013 às 7:36 pm // Responder

    Caro Uriano, seu escárnio com o cantor Roberto Carlos faz jogar na vala comum a crítica a um artista e um direito humano fundamental. O que está em jogo nas biografias não é a “história” romântica de criação que você fantasia, mas a devassa na vida de vários indivíduos e o achincalhamento de nossa História enquanto sociedade em face do lucro abutreiro de editoras que financiam fabricadores de picuinhas e fofocas para vender best-sellers. Esse é o cerne da questão.Se não há direito à privacidade, como então se defender de governos invasivos? Isso é uma consequência que sua posição terá de lidar. Ademais, imagina os conflitos na cabeça de uma criança ao saber estórias de seus pais que antes diziam respeito apenas às consciências deles e que agora fazem parte de um vídeo show em rede nacional graças a um fofoqueiro de plantão legitimado por intelectuais de esquerda. Parece demais. Se a proibição completa não é a saída, não me parece uma coisa tão banal a liberação total. Isso merecia uma melhor reflexão, ainda mais quando envolve um Chico Buarque. A Folha e a Globo fazer isso, já é esperado, mas aqui? Aqui,não.

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  2. Talvez um dois ou tres.livros.
    Editora Globo promete uma nova trilogia para lerem nos metros rsrsrs

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  3. letrasemendadas // 20/12/2016 às 2:28 am // Responder

    Negócio seguinte: aqueles gregos todos, dos antigos tempos, aedos, não? Aí viraram Bardos e depois na alta IM, trovadores. Sobre os últimos tem um romance jóia do Gore Vidal sobre um que era apaixonado pelo Ricardo I da Inglaterra e saiu em busca do seu amo(r) pela Europa a fora, quando o soube cativo. Vai ver a gente se enganou e quem sabe das coisas é o Rei Roberto e a encantadora moça do Caê. Tem horas que acho que já vivi demais… Os fados podiam ter me poupado de certas coisas…

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