Lançamento Boitempo: Alguém disse totalitarismo? de Slavoj Žižek

Alguém disse totalitarismo_Zizek_capa_envio

A Boitempo acaba de lançar Alguém disse totalitarismo? Cinco intervenções no (mau) uso de uma noção, de Slavoj Žižek. No livro, o filósofo esloveno desmascara toda uma estratégia retórica capciosa e revela uma série de semelhanças entre o totalitarismo e a democracia liberal moderna. Como noção ideológica, o totalitarismo sempre teve uma função estratégica precisa: garantir a hegemonia liberal ao rejeitar a crítica de esquerda de que a democracia representativa seria o reverso das ditaduras fascistas de direita. Em vez de fornecer mais uma exposição histórica dessa noção, neste livro Žižek encara o totalitarismo de forma wittgensteiniana, como uma teia de semelhanças de família. Ele conclui que o diabo mente menos nos detalhes sobre o totalitarismo do que naquilo que possibilita sua própria designação: o consenso liberal-democrático em si.

Leia, abaixo, a “dedicatória” de Žižek para Alguém disse totalitarismo?

Em 1991, depois do golpe contra Ceauşescu preparado pela própria nomenklatura, o aparato da polícia secreta romena continuou ativo, é claro, cuidando normalmente de suas atividades. No entanto, o esforço da polícia secreta para projetar uma imagem nova e mais amigável de si mesma, em consonância com os novos tempos “democráticos”, levou a alguns episódios estranhos. Um amigo norte‑americano, que na época estava em Bucareste com uma bolsa do Fulbright, telefonou para casa uma semana depois de chegar e disse à namorada que agora estava em um país pobre, porém amistoso, onde as pessoas eram agradáveis e com disposição para aprender. Assim que desligou, o telefone tocou; ele atendeu e alguém se apresentou, num inglês levemente confuso, como o oficial da polícia secreta encarregado de ouvir sua conversa telefônica, dizendo que gostaria de agradecer as coisas amáveis que ele havia dito sobre a Romênia – depois lhe desejou uma boa estada e se despediu.

Este livro é dedicado a esse agente anônimo da polícia secreta romena.

– Slavoj Žižek

“Eu não sou um daqueles esquerdistas loucos”
Leia abaixo a entrevista de Slavoj Žižek sobre Alguém disse totalitarismo? publicada ontem (29/09/2013) no suplemento Ilustíssima da Folha de S.Paulo. Ao jornalista Ricardo Mioto, o esloveno comenta sua crítica à democracia liberal e aos direitos humanos, a situação da China, do Egito, da Síria, dos EUA, do Congo e até do Brasil além de sua avaliação dos regimes de Stalin e Hitler.

*

O senhor faz uma crítica muito forte à democracia liberal. Diz, no novo livro, que os partidos de esquerda erraram ao aceitá-la e que não tem medo de ser visto como antidemocrático ou totalitário.

Veja bem, não estou dizendo que a democracia liberal seja algo ruim. Claro que eu prefiro isso a uma ditadura aberta. Mas a democracia liberal tem as suas limitações.

Em primeiro lugar, seus mecanismos tradicionais não são fortes o suficiente para controlar problemas ecológicos e econômicos.

Em segundo, veja o que as revelações recentes sobre espionagem nos dizem. É fácil ver o jeito como somos oprimidos e controlados em um Estado abertamente autoritário, como a Rússia ou a China. Se alguém diz “na China, nossa liberdade é limitada”, meu Deus, você está falando o óbvio!

Mas o fato é que, na democracia liberal, também somos muito controlados e oprimidos, embora a maioria das pessoas tenha a sensação de que suas vidas são livres.

Isso não quer dizer que todo controle seja igual. Claro que, nesse sentido, prefiro os EUA à China. O que teria acontecido com Bradley Manning se ele fosse chinês ou russo? Na China, teriam prendido até a sua família.

Qual seria a alternativa às democracias liberais?

Bom, não é um problema simples. Não concordo com quem diz que bastaria que um Hugo Chávez assumisse o comando e tudo se resolveria… Não é só uma questão de imperialismo americano ou algo assim, é toda nossa organização social, tecnológica.

Você vai se surpreender, mas sou contra ficar esperando uma revolução. O Brasil, apesar de todas as limitações, mostra que é possível melhorar as coisas. Se os pobres estão melhor, se a classe média se fortaleceu, é cínico dizer: “Ah, mas são as mesmas velhas relações capitalistas”.

Eu discordo daquela esquerda que nega isso, para quem a social-democracia é um compromisso com a burguesia que só atrapalha a revolução autêntica. Mas isso não significa que não exista uma problemática tendência neutralizante da democracia liberal.

Mas o sr., como intelectual e escritor, não utiliza justamente a liberdade da democracia para expor suas ideias e convencer as pessoas?

Veja, não sou daqueles que dizem “nossa liberdade é ilusão, vamos jogá-la fora”. A liberdade é muito preciosa.

Mas você pergunta sobre a minha condição pessoal. Não é que eu possa publicar tudo que eu queira. Recentemente recebi muitos ataques. Na New Republic, no New York Times. O The Telegraph, na Inglaterra, disse que eu era um fascista de esquerda. Fui acusado até de defender um novo holocausto. E o espaço para responder, quando existe, é mínimo.

A liberdade deles de criticar não é a mesma que o sr. tem para opinar?

Mas há a proporção, é diferente. Publicar na mídia marginal, em pequenas editoras, é fácil, mas a grande mídia é muito fechada.

Não sou só eu. Veja Noam Chomsky. É um intelectual extremamente conhecido, mas você nunca o viu na grande mídia americana. E não estou falando da Fox News. Você nunca viu Chomsky ser convidado a falar na CNN, mesmo no New York Times ele é boicotado. Claro que você pode falar que Chomsky é livre para fazer o que quiser, mas há essa exclusão do espaço público.

Vejo seu nome na grande mídia.

Sim e não. Há três ou quatro anos, publicaram aqui e ali sobre mim no New York Times. Agora não mais. Na França, há dois ou três anos, escrevia regularmente para o Le Monde. Agora estou fora, fui considerado radical demais. Na Alemanha foi parecido.

Não é paranoia minha. Não estou dizendo que haja conspiração, mas que, se você passa de determinado um ponto, decidem que isso é demais. Eu fico me perguntando que limite é esse. Sempre fui muito crítico à esquerda, escrevo muitas críticas a Stalin.

Sobre Stalin, o senhor defende que não há como comparar a União Soviética de Stalin com a Alemanha nazista de Hitler.

Veja, a União Soviética stalinista foi horrível. A quantidade de assassinatos, o sofrimento.

O que eu digo é que Stálin e Hitler não foram iguais. A prova, para mim, é a existência de dissidentes. Stálin teve a todo tempo de lutar contra quem o questionava. Muita gente dizia que Stálin tinha traído o comunismo autêntico, Trótski é um exemplo. Desculpe, mas não havia ninguém assim no nazismo, nenhum grupo questionando Hitler, dizendo que ele era um traidor do nazismo autêntico.

Na União Soviética, algo que originalmente era para dar na libertação do povo –a Revolução de Outubro – terminou em um pesadelo. Mas o objetivo inicial era outro. O nazismo era diferente. Os nazistas conseguiram exatamente o que eles queriam.

Mas o sr. escreve que não vê contradição entre violência e política.

Esse é um ponto importante a esclarecer. Há uma violência no mundo para permitir que as coisas continuem como são. Violência para mim não envolve só armas, polícia, gangues.

Há, por exemplo, a violência social, a violência econômica –uma crise financeira brutal que acaba com empregos e economias de milhões não é uma violência?

Para entender o terrorismo, por exemplo, você tem de entender esse tipo de violência. Não estou dizendo que uma coisa justifica a outra. Mas a violência econômica ou social tem consequências.

Que relação há entre essa forma de ver a violência e a crítica que o sr. faz à noção de direitos humanos?

Eu não sou um daqueles esquerdistas loucos, que acham que os direitos humanos são apenas uma ideologia do imperialismo. Eu concordo que, em algumas situações, direitos humanos podem ser importantes.

Eu não compro o relativismo de esquerda que diz que nós não deveríamos impor uma noção ocidental de direitos humanos. Isso justifica qualquer coisa. Se estão arrancando os clitóris das mulheres, dizem “é a cultura deles, não deveríamos intervir”. É nesse sentido que critico a tolerância.

O que me incomoda é que as decisões de intervenção em nome dos direitos humanos são arbitrárias. Agora se fala muito na Síria. Mas, se você quiser ver sofrimento de verdade, vá ao Congo.

Em dez anos, morreram 4 milhões de pessoas. O Estado não funciona, os poderosos aterrorizam a população enquanto vendem minerais preciosos a empresas ocidentais. Esse é o pesadelo verdadeiro sobre direitos humanos. Mas ninguém se importa. Os países estão fazendo negócios lá – e não só os EUA mas também a China, vários outros –, então ninguém dá bola.

Eu fui a Ramallah, na Palestina e falei: “Vocês sofrem com Israel, mas, para as pessoas do Congo, mudar para cá seria um sonho”.

Decide-se fazer intervenções por motivações geopolíticas e econômicas. Aí, de repente, surgem milhões de imagens terríveis do lugar. Agora lemos todos esses artigos sobre como o Irã é opressivo para as mulheres. Mas o Irã é um paraíso feminista perto da Arábia Saudita, e não se fala sobre isso.

O sr. diz que o totalitarismo é mal compreendido. Em que sentido?

Eu não gosto do termo totalitarismo. Ele tem sido usado de maneira muito genérica. Do mesmo jeito que, nos anos 1960, manifestantes de esquerda diziam que os Estados Unidos eram fascistas.

Meu medo é que o mesmo aconteça com o termo “totalitário” e ele acabe sem sentido, banalizado. Veja como Hannah Arendt usava o termo. Ela é muito específica: apenas nazistas e soviéticos – e estes somente por alguns anos – foram totalitários.

O que muda agora dizer que Assad é totalitário? Claro que ele é um cara mau. Mas totalitário? Ao falar isso, uma análise real de como funciona o regime, das suas particularidades, se torna difícil.

O sr. defende muito a ordem, acha que o mundo é melhor quando tudo está organizado. Seria, nesse sentido, um totalitário?

Nesse sentido, sim. Esse é, aliás, o meu problema com o Brasil. Rio, Carnaval, Bahia, eles dançam muito, se divertem muito, por mim iriam a um gulag [risos].

A sério: eu não acho que desordem, Carnaval, seja libertação. O problema das nossas sociedades é que elas são muito caóticas.

É isso que os americanos não entendem: se você quiser ser um ser humano verdadeiramente livre – ir aonde você quiser, encontrar quem você quiser –, você precisa de uma estrutura muito rígida de ordem pública, de boas maneiras. Sem isso, nossa liberdade é sem sentido. Liberdade e ordem andam juntas. Veja a economia soviética. Não é que ela fosse superorganizada. É o contrário. Por baixo da superfície planejada, nada funcionava, um grande improviso. A União Soviética era autoritária, mas ela não era organizada. O que ela precisava não era de mais caos, mas de mais ordem.

Para isso, acho que precisamos de mais Estado, de poderes internacionais. Os problemas que confrontamos não serão resolvidos nesse nível estúpido de comunidades locais, democracia local.

No livro, o sr. conta a história de um amigo americano que foi à Romênia após a democratização, nos anos 1990, quando a polícia secreta local decidiu ser mais amigável. No hotel, ele ligou para a esposa e disse que o país era pobre, mas as pessoas muito agradáveis. Ao desligar, o telefone toca: um oficial da polícia secreta que ligava para agradecer as palavras gentis. O sr. dedica o livro a esse policial.

Essas histórias sempre me fascinaram, histórias de como, na passagem de um sistema para o outro, a linguagem e algumas regras de comportamento se conservam e criam confusão.

O sujeito da polícia é um caso. Na época da queda do comunismo na Iugoslávia, havia uma rádio independente, de estudantes. Eles convidaram um antigo comunista, um “real” burocrata, para falar.

Perguntaram a ele sobre sexo, e ele queria agradar os jovens, mostrar que aceitava os novos tempos. Então ele disse: “Eu concordo com vocês, sexo é um instrumento muito importante na construção do progresso social e político da nação”. Todos ficaram sem reação [risos]. Eu amo esses momentos.

1 comentário em Lançamento Boitempo: Alguém disse totalitarismo? de Slavoj Žižek

  1. Pedro Cazes // 01/10/2013 às 1:23 am // Responder

    Há dez anos, quando a conjuntura estava era de recuo e defensiva, Zizek publicava um livro sobre Lenin e questionava o totalitarismo. Agora que a conjuntura virou, e que poderá sair alguma coisa relevante no campo da construção revolucionária, o sujeito dá totalmente pra trás, vira um defensor das conquistas lulistas para os pobres (?!), a favor de um “capitalismo com uma face quase humana”? Mordeu a língua! Perdeu toda sua relevância enquanto intelectual na medida em que a conjuntura forçou-o a assumir uma posição revolucionária de fato. Zizek é só blabla, fogo de palha.

    Curtir

2 Trackbacks / Pingbacks

  1. O episódio do Flow nos ensina que comunismo e nazismo não são iguais | Provocações Teológicas
  2. Slavoj Žižek na Palestina - A Terra é Redonda

Deixe um comentário