Sobre médicos e monstros

13.08.29_Izaías Almada_Sobre médicos e monstrosPor Izaías Almada.

Um dos momentos mais tocantes no filme Diários de motocicleta, de Walter Salles, que narra a viagem do jovem Ernesto “Che” Guevara pela América do Sul na companhia do amigo Alberto Granado, é quando “Che” visita um leprosário da Amazônia peruana. Ainda estudante de medicina, Guevara, na noite em que comemora seu aniversário, atravessa um pequeno rio que separava os leprosos da convivência com outras pessoas e vai visitá-los. Um gesto de grandeza humana de quem estava prestes a se tornar um médico.

Essa aventura dos dois amigos argentinos se dá no ano de 1952, tempos antes de Guevara integrar-se à luta guerrilheira de Sierra Maestra em Cuba, sob o comando de Fidel Castro, revolução socialista vitoriosa e que mudou corações e mentes no mundo inteiro.

Alguns fatos e acontecimentos históricos menos ou mais relevantes são assim: trazem, com maior ou menor intensidade, os indícios de alguma transformação social significante. Configuram uma inflexão nos caminhos do homem e prenunciam novas alternativas para a humanidade. Os exemplos nesse quesito serão inúmeros e desnecessários, mas a lembrança dessa possibilidade nos remete à atual fase do desenvolvimento capitalista, bem como seus reflexos para o mundo atual, onde a exploração do homem pelo homem adquiriu novos e sofisticados contornos.

No Brasil de hoje, alguns desses fatos e acontecimentos mais recentes têm sido debitados, a meu ver, a dois fatores políticos e sociais de relevância: os quase doze anos de governo do Partido dos Trabalhadores por um lado e a tentativa oposicionista de interromper a caminhada vitoriosa desse governo, sob inúmeros aspectos, em particular os sociais.

Já é sobejamente conhecida a fúria com que alguns dos setores mais conservadores da sociedade brasileira atacam os doze anos de governos petistas em âmbito federal. E esses setores não só estão representados majoritariamente em partidos como do PSDB, DEM, parte do PMDB e o penduricalho PPS. Contudo, não bastasse a verborragia, normalmente vazia de significados e argumentos sólidos de deputados e senadores de tais partidos, há uma vez mais que chover no molhado: o verdadeiro e mais articulado dos partidos de oposição, no entanto, é conhecido já há algum tempo entre nós pela sigla PIG, o “Partido da Imprensa Golpista”.

É na redação de telejornais, revistas e jornalões da mídia brasileira que a matilha de cães hidrófobos é solta por seus patrões atrás dos ossos da discórdia, onde é possível identificar até alguns imortais da pior cultura brasileira, aquela que é preconceituosa, racista e de traços marcadamente fascistas.

Junte-se a isso os radicais de esquerda das novas gerações, muitos deles portadores de uma espécie de ejaculação precoce quanto à necessidade de transformação do país e que, na ânsia de um orgasmo revolucionário, mais atrapalham do que ajudam, por vezes oferecendo argumentos à tal matilha para a sua empreitada contra o novo Brasil, cujo parto tem sido dos mais difíceis.

O atual episódio envolvendo o programa “Mais médicos” é emblemático: trouxe à tona a síndrome do grande romance de Robert L. Stevenson O médico e o monstro, liberando em boa parte da classe média e médica, insuflada e acobertada pela matilha, o seu lado mais egoísta e irracional, transformando uma questão humanitária num palavrório do mais baixo grau político e ideológico.

É triste perceber, em pleno século XXI, que o Brasil ainda acoberta em suas entranhas gente tão desclassificada e hipócrita, incapaz de olhar o país com olhos mais justos e minimamente solidários para com os mais necessitados. Não são os mesmos que criticam a questão da saúde no país? Que debochada e incivilizadamente sugerem que a presidente Dilma vá tratar o seu linfoma em Cuba? Não são os que repetem como papagaios o que reproduz o esgoto midiático, cujo nível de conhecimento da realidade em que vivem não ultrapassa as páginas de um Almanaque Capivarol?

Sinto calafrios quando penso que os representantes políticos dessa corja possam algum dia voltar ao poder político no Brasil. Já basta ver o que fazem no governo do Estado de São Paulo, onde se praticou e pratica a maior corrupção e bandalheira de assalto ao erário público em proveito próprio, com o butin repartido há anos por integrantes da máquina administrativa do estado, sempre acobertados pela mesma mídia hipócrita e moralista que sistematicamente ataca os governos Lula e Dilma.

Espero, sinceramente, que o Brasil não se torne o único país do mundo que vergonhosamente repudie a missão solidária de milhares de médicos que para cá vieram de outros países, em particular os cubanos, numa atitude ímpar de egoísmo e sensibilidade para com ainda os milhares e milhares de compatriotas espalhados pelas regiões mais pobres, secularmente ignoradas pelos inúmeros monstros de jaleco branco que, ao se formarem, fizeram um juramento da boca para fora… Juramento de Hipócrates ou de hipócritas?

O episódio de Fortaleza é um tapa na cara do país, um escárnio que nos ridiculariza perante o mundo, pois apenas confirma aquilo que todos nós já sabemos: médico no Brasil, só para quem pode pagar. É doloroso ver alguns médicos de formação guevariana serem vaiados por um conjunto de Abdelmasshis.

QUE SEJAM BENVINDOS OS MÉDICOS CUBANOS!

***

Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

12 comentários em Sobre médicos e monstros

  1. neusa velasco // 29/08/2013 às 5:50 pm // Responder

    Estou em sintonia com esse manifesto….me sinto envergonhada pela atitude de certos “brasileiros”.Que sejam bem vindos!!!

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  2. Caros Roberto PITTOLI // 29/08/2013 às 5:51 pm // Responder

    IVA, vc é d+. Belo texto q deixa a gente de alma lavada. Parabéns.
    Complemento dizendo a vc p/atualizar suas referências ao pé do texto p/acrescentar “Sucursal do Inferno”.
    Abraços fraternos, meu Companheiro.
    CRPittoli

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  3. Silvia Wolfenson // 29/08/2013 às 6:37 pm // Responder

    Bravo Izaías concordo em gênero número e grau. Adorei ler e há muito tempo não vejo uma análise tão bem colocada. Não podemos esquecer o que o PIG fez com o “mensalão” e o que vem fazendo com os governos Lula e Dilma, desqualificando, todas e quaisquer decisões tomadas. Muitos beijos
    Silvia Wolfenson

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  4. João Silva Lima // 29/08/2013 às 6:59 pm // Responder

    Grave é saber que as bem “educadas moças vestidas de branco” representam o “espírito cultivado na ignorância” de muitos!

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  5. Realmente chocante as atitudes dessas pessoas.
    Quanto ao filme “Diários da Motocicleta”, a cena é emocionante!

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  6. um grande artigo e muito bem escrito precisamos de pessoas como vc que tem coragem de falar o que muitos tem medo PARABÉNS IZAÍAS

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  7. Coelho Ricochete // 30/08/2013 às 2:45 am // Responder

    Se você insiste em querer desancar quem apanha do sistema cotidianamente por puro comodismo intelectual, e o que é pior, por uma suposta superioridade racional governamental tua, dono e senhor da verdade e razão histórica-socialista-partidária, errrr, sei lá, algo não anda bem aqui no “teu” novo Brasil desde o Astrojildo botou a máquina partidária pra destruir a imagem dos líderes anarquistas perante o povão.
    E sabe o pior de tudo “Isaias”? É que a gente, mesmo que a grossíssimo modo, quer a mesma coisa…

    Bejim na piriquita.

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  8. Corja por corja // 30/08/2013 às 11:14 am // Responder

    Porém. Corja é o sujeito que mora num país de analfabeto, as faculdades de medicina com muitas vagas, e aos invés de ir estudar medicina e ir viver em alguma cidade carente, vive de vender livro, que leva subsídio desse pobres, morar na cidade grande

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  9. Só os desinformados acreditam no PIG, todos viram a reação dos manifestantes totalmente contra os aproveitadores de plantão: Mídia e Partidos políticos da oposição. FORAM EXPULSOS DOS EVENTOS.

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  10. Não vou entrar no mérito da forma, foi agressiva e foi constrangedora, não se deve afrontar alguém que sofre com sua dor.
    Obviamente separo aqui os Cubanos dos médicos de outras nacionalidades, são histórias e realidades diferentes, a única coisa em comum é a burla de não validarem seus diplomas.
    O que diferencia um escravo de um homem livre, é obvio um é livre e o outro não, os argentinos, uruguaios, e outros que vierem, são livres, eu imagino que seus passaportes lhes deem o direito de ir e vir para onde quiserem e puderem, se quiserem trazer suas famílias, desde que seu ganho permita isso, são livres para fazê-lo. Esses são homens livres sem dúvida nenhuma.
    E os Cubanos? Qual é liberdade deles? Em que condições estão vindo para o Brasil estas pessoas?
    Eu não sou contra os Cubanos, eu não sou contra vinda dos cubanos, mas por que as coisas não são claras? Em que condições estão vindo estas pessoas?
    Até onde sei, a crença eh suas famílias ficam como reféns em Cuba. Isto é verdade?
    Juristas estão declarando que a forma contratual é inconstitucional. Isto é verdade?
    Os passaportes destas pessoas, tem restrições. Isto é verdade?
    A questão da validação dos diplomas, é uma questão mais interessante ainda, o que parece é que esses médicos, na verdade perderam o direito de validar seus diplomas. Se algum deles quiser validar, isso será permitido?
    Até onde meu entendimento vai, o contrário de cativo é liberto, um escravo é diferente de homem livre, em suas responsabilidades, deveres e direitos.
    Minha última pergunta, essas pessoas homens e mulheres de Cuba, são livres?

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  11. Luiz Orquestra // 30/08/2013 às 2:38 pm // Responder

    Izaias….como disse o troglô acima,,aliássão 3 que ficaram ofendidos,pois “pegou na veia” ….a grossíssimo modo é a forma com que les comunicam-se.pq o que gostam mesmo é da PM batando e o ideal:que os militares voltassem a assumir o Pais.Sonham com as possibilidades do espirito de Eike Baptista vir a incorporá-los,em uma sociedade ajustada e digna suas chances diminuiriam ao extremo,com o Pais conturbado,atrapalhado,vilipendiado,acreditam que suas possibilidades de triunfar aumentem,mas são uns boçais…..felizmente,nada sobra para êsses otários:são quase todos fascistas,ou quase fasxitas,ou absolutamente fascistas…..
    .

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  12. Maria Livia guimarães // 13/05/2014 às 9:38 pm // Responder

    Quanto ganha o governo cubano com o repasse da remuneração dos médicos? Por que é de Cuba a maioria dos profissionais da saúde que veio para o Brasil? Depois da visita ao leprosário, quantos seres humanos Che sacrificou? Idem Fidel, durante 50 anos de ditadura? Por que os leitores deste blog não respeitam opiniões contrárias e em vez de argumentos usam lugares comuns como fascistas, classe média odiosa, etc? Que democracia é esta, onde não se permite a expressão de opinião dos que pensam diferente?

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