A guerra sem explosões da literatura

13.07.30_Urariano Mota_A guerra sem explosões da literaturaPor Urariano Mota.

Na última terça-feira, tive a honra de participar do Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana. O convite que recebi se deu em razão do meu romance O filho renegado de Deus. Na mesa, onde se encontravam o escritor João Silvério Trevisan e a ilustre mediadora Guiomar de Grammont, o tema da conversa foi “Escritor em ação: viver e escrever”. Divulgo a seguir a fala que improvisei por escrito para esse encontro. 

Entendo “Viver e escrever” como a vida que se reflete na literatura. Ou de modo mais  preciso: como a minha própria vida se reflete no que escrevo.   

Antes, um esclarecimento que devo fazer misturado a um pedido de desculpa.  Quando digo “falar da vida que se reflete no que escrevo”, isso não é um atestado de narciso, de vaidade ridícula, de supor a minha vida digna da literatura. Não, o meu cotidiano é banal, assim como a banalidade imensa que cerca todas as nossas vidas. Eu nunca fui à lua, não conheço Estocolmo, não sou filho de generais, de traficantes, nem descendo de ladrões riquíssimos ou de famílias quatrocentonas, nessa ordem. Aliás, na minha família a genealogia se perde, na medida em que não identifico sequer os meus avós. Por esse caminho de biografia magnífica, a minha vida não daria um romance, naquele sentido que o povo muitas vezes fala, “a minha vida daria uma novela”.

Como poderia falar de uma vida que não tem ação de rilhar os dentes, nem acontecimentos extraordinários nem amores glamorosos? A minha vida não daria um best-seller. Por isso, corrijo: best-seller, não, mas a minha vida – assim como a de toda gente – é digna da literatura. Dependendo do que se fizer do banal, da limonada dos limões recebidos, a vida de qualquer pessoa é digna da literatura. Ou melhor dizendo, a boa literatura é que é digna da vida de toda a gente.   

De passagem, esclareço o método particular de quem escreve literatura. O escritor de ficção, em vez de narrar ideias gerais, narra pessoas, personagens particulares. É da natureza do nosso gênero, é a nossa forma de trabalhar. Ainda que estejamos escrevendo sobre as coisas mais abstratas, algo como a Constituição Federal atualizada, ainda assim o escritor, o que tem gênese e característica da literatura, falará da Constituição Federal conforme a biografia sentida da própria vida. É como um louco ou doente sem remédio. Em muitos significados, ele é um funcionário permanente. O escritor me lembra um bancário que não conseguia sair do banco. Ia pra casa, o banco o acompanhava. Ia dormir, lá estava o banco.  Ia pro bar, e quando no calor da cerveja se discutia sobre a estratégia da França com a Linha Maginot depois da 1ª Guerra Mundial, o bancário concluía: “Entendo, eu também faço isso. Eu pego os livros de relatórios e empilho na minha frente, pra ninguém me perturbar. Essa Maginot é como lá no banco”.

Não é que o escritor seja um monstro biográfico, que possua um misterioso talento onde não cresçam e frutifiquem ideias. Pelo contrário, não se conhece um só bom autor que não possua uma concepção do mundo e dos seus desconcertos. Mas é que nele, no escritor, as ideias sofrem uma interpretação particular, que se mostram no que ele escreve. Nele não há lugar para a sobrevivência da tese, que é do ofício de todo ensaio científico ou acadêmico. Na literatura, os personagens não são bonecos de ideias gerais. São gente, de cara e dente, onde as ideias se batem, se violentam e mantêm o conflito. Como na vida fora da escrita.        

Nos livros, falo do que vi em minha juventude – tão perto de mim – como eu gostaria de crer. Neles falo da repressão da ditadura, de pessoas heroicas, covardes e loucas, ou em profundo desespero, que eu vi. Falo da minha infância em um subúrbio periférico do Recife, que tem o nome de Água Fria, que não se pronuncia em boa conversa, porque seria o mesmo que falar um palavrão. O melhor de mim está quando volto os olhos para esse mundo sem nome, de pessoas que desaparecem sem nome, cujo sepultamento é apenas um alternativa precária da carniça para os abutres. É para esse imortal escárnio que me volto. Essa gente, gentinha gentalha da minha genética é que me sustenta. Antes, durante suas vidas e depois.

A literatura é a terra da democracia. Ela permite a um filho do povo escrever e por isso ser recebido com tapete vermelho em qualquer palácio. E a honra será dos palácios. Essa democracia da literatura, esta literatura que me permitiu ser menos insignificante, é a minha terra e o meu destino. Eu não sei atirar, esmurrar, e assim não posso combater e matar a injustiça com as mãos cheias de bombas, balas e mísseis. Como não posso, escrevo. 

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

1 comentário em A guerra sem explosões da literatura

  1. Muito bom o post amei vou sempre visitar seu blog !!

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