A tirania da velocidade e da inovação para o lucro

13.05.08_A tirania da velocidade e da inovação para o lucro_Dênis de MoraesPor Dênis de Moraes.*

Uma das verdades mais incômodas e flagrantes sobre o mundo atual chega-nos pela ótica de um magnífico escritor, John Berger: “É um espaço sem horizonte. Tampouco há continuidade entre as ações, nem pausas, nem atalhos, nem linhas, nem passado nem futuro. Vemos apenas o clamor de um presente desigual e fragmentário. Está cheio de surpresas e sensações, mas em lugar algum aparecem suas consequências ou seus resultados.” (1)

Hoje com 87 anos e cada vez mais lúcido, Berger vivenciou, em décadas passadas, tempos infinitamente menos desvairados. Tempos em que as sofreguidões suaves lhe permitiam contemplar o primeiro pôr-do-sol de primavera em uma praia europeia para dividir com uma tela a óleo o que a pintura lhe indicava ser a necessária proximidade com as fagulhas incendiárias do amor.

Vivemos uma época de velocidade implacável, em que tudo parece atropelado pela urgência dos milésimos. A existência dilui-se e restabelece-se sem direito a intervalos. As pausas para respirar parecem insolentes ou extemporâneas. E dizem-nos que assim deve ser porque desfrutamos da conectividade permanente, viabilizada por tecnologias avançadas. Qualquer atraso pode implicar um curto-circuito com a realidade imediata, ou revelar incapacidade de antecipar-se ao futuro fugaz.

A aceleração tecnológica – “velocidade crescente na tradução de saberes múltiplos para sua aplicação no ámbito da produção”, conforme René Armand Dreifuss (2) – lubrifica as engrenagens do capitalismo. O sistema tecnológico, em processos de revisão, superação e retroalimentação contínuas, se incumbe astuciosamente de controlar o repertório de conhecimentos e inovação em circulação na sociedade. O que confere à racionalidade tecnológica o poder de intervir em várias dimensões da vida social e também de induzir a um conjunto de modificações e realinhamentos nos sistemas, métodos e instrumentos de produção, gestão e organização empresarial. (3)

O modo de produção hegemônico necessita azeitar sua capacidade inovadora e reativar permanentemente a cadeia de valor que reforça a acumulação de capital numa economia de interconexões eletrônicas. Cada novo bem ou serviço ambiciona monopolizar a última geração, para estar à frente, suplantar o concorrente. Peter Drucker, velho guru da gestão empresarial, não deixa dúvida quanto às vantagens conferidas pela primazia no ciclo perpétuo da inovação, numa frase já clássica: “A melhor maneira de se prevenir para o futuro é criá-lo.” A velocidade das ações e os meios mais rápidos de mobilidade chegaram à posição de “principal ferramenta do poder e da dominação”, ressalta Zygmunt Bauman (4). Uma ferramenta já livre de resistências do espaço físico e territorial; agora é virtual, móvel, leve, ubíqua, desenraizada.

As mensagens publicitárias sustentam que o que perdemos em durabilidade ganhamos na intensidade dos impulsos. O prazer deve ter breve duração, permitindo que, com a descontinuidade, ressurjam modos de alcançá-lo, especialmente através de objetos de reposição imediata. Regula-se a relação entre desejo, necessidade e satisfação, removendo-se aquilo que retarde o ímpeto de consumir. O parâmetro de avaliação modificou-se: tende a prevalecer o que produz frisson, em detrimento da profundidade das impressões

Volto a dialogar com  Zygmunt Bauman quando observa que a velocidade das inovações está em perfeita sintonia com o mundo fluido, incerto e instável da “modernidade líquida”, avesso a planejamentos e investimento de longo prazo (5). A conexão com a pressa imoderada fundamenta iniciativas inovadoras que interferem nos modelos de negócios, processos operacionais, práticas de propriedade intelectual, estratégias de relacionamento com o cliente, tempo de resposta ao mercado e campanhas publicitárias. A opção pela inovação tem a ver, na lógica dos gestores estratégicos, com a conquista de dividendos competitivos, viabilizando reestruturações dos sistema tecnoprodutivos e gerenciais.

Analisando as formas de domínio das inovações, David Harvey sublinha a ênfase permanente do capitalismo na obtenção do “rendimento monopólico”, que implica o controle da singularidade, da exclusividade e das qualidades de um determinado objeto, de modo a assegurar receitas permanentes e ampliadas (6). Para preservar poderes monopólicos, as corporações recorrem a duas manobras principais: “uma ampla centralização do capital, que busca o domínio por meio do poder financeiro, economias de escala e posição de mercado, e a ávida proteção das vantagens tecnológicas (…) por meio de direitos de patente, leis de licenciamento e direitos de propriedade intelectual” (7).

Significa concentrar nas mesmas mãos todas as etapas e consequências rentáveis dos processos tecnoprodutivos, com vistas a garantir o maior domínio possível sobre a cadeia de fabricação, processamento, comercialização e distribuição dos produtos e serviços. Em cenários assim, às pequenas e médias firmas restam nichos mercadológicos ou o fornecimento de insumos e serviços especializados, sempre que é mais vantajoso para as grandes companhias terceirizar a produção ou adquirir itens cuja fabricação seria dispendiosa. Tudo isso beneficiado pela desregulamentação dos mercados e por legislações omissas ou complacentes diante da força esmagadora dos megagrupos.

A concentração monopólica trabalha para validar o regime de substituição precoce das mercadorias em circulação exigido pela escala da rentabilidade. Entre as matrizes conceituais da obsolescência programada, está a célebre teoria da “destruição criativa” que Joseph Schumpeter elaborou na primeira metade do século XX. Ao analisar os avanços tecnológicos a partir da Revolução Industrial, ele discerniu que o ciclo evolutivo do capitalismo “decorre dos novos bens de consumo, dos novos métodos de produção ou transporte, dos novos mercados, das novas formas de organização industrial que a empresa capitalista cria” (8). O economista austríaco define a destruição criativa como um processo em que antigos objetos e estruturas são substituídos, sequencialmente, por novos, acelerando o ritmo da economia e aumentando a acumulação de renda pelas empresas que operam em tal paradigma, ao mesmo tempo em que asseguraria outros níveis de bem-estar social. A seu ver, o caráter determinante da concorrência não se cinge à fixação de preços competitivos e se projeta na inovação, que acaba por estabelecer as linhas de supremacia competitiva no interior do modo de produção. “O empreendedor é o agente do processo de destruição criativa. É o impulso fundamental que aciona e mantém em marcha o motor capitalista, constantemente criando novos produtos, novos mercados e, implacavelmente, sobrepondo-se aos antigos métodos menos eficientes e mais caros” (9). Com base nessas premissas, Schumpeter advoga que “todos os elementos da estratégia de negócios” sejam concebidos “sob o vento perene da destruição criativa”, não podendo ser compreendidos “sob a hipótese de que existe eterna calmaria” (10).

Gary Hamel e Robert Tucker partem das teses de Schumpeter para classificar a inovação como “combustível para o crescimento das empresas” e como estratégia eficaz para que uma organização possa sobrepujar a concorrente na busca de “receitas de primeira linha”, com rapidez inaudita. Os dois consultores calculam que cada crescimento percentual de 10% no portfólio de novos produtos equivalem a 2,5% no crescimento consistente das receitas e dos retornos para os acionistas (11).

A inovação converte-se, por conseguinte, em requisito valioso numa época em que os bens disponíveis criam problemas e expectativas que somente se equacionam mediante novas demandas e soluções tecnológicas. Como as soluções dependem de lastro financeiro, tecnologias de ponta, know how gerencial e desembaraço logístico-operacional, instaura-se um círculo vicioso: a cadeia de descobertas, transferências e imitações de tecnologias gravita em torno de um rol restrito de corporações que acumulam diferenciais inacessíveis a organizações de menor porte.

Uma das fórmulas para sedimentar dividendos competitivos é suplantar o que acaba de ser lançado. Até 2005, Motorola, Nokia, Samsung e LG conseguiam colocar nas mãos dos clientes um modelo novo de celular a cada 18 meses. Tal prazo agora é considerado uma eternidade. A média caiu para nove meses. Em alguns casos, o lançamento demora seis meses. Outra fórmula é descobrir o que deverá ser inovação daqui a cinco, dez, quinze anos. A Intel trabalha simultaneamente em três gerações de microprocessadores: enquanto prepara a segunda geração, avança no desenho da terceira. São exemplos, entre tantos outros, da subordinação de decisões de investimentos a um padrão de velocidade inédito para que se mantenha (ou venha a alterar-se) a pirâmide da feroz concorrência estabelecida em setores condicionados por tecnologias de ponta.

O quadro acima descrito realça a urgência da crítica à cultura tecnológica que respalda a apoteose da velocidade e a tirania da inovação para o lucro. Se recusarmos a glorificação dos cotidianos conectados sem causa digna, não será difícil enxergar o outro lado da aceleração incontrolável. Ao mesmo tempo em que amplia as nossas capacidades de conhecer, imaginar e interagir, o delírio  tecnológico não desfaz desigualdades socioeconômicas, repõe tensões sociais e, não raro, se presta ao fim último de mercantilizar a vida.

Ainda que os processos não sejam lineares e comportem variações, as tecnologias estão longe de equacionar desníveis nos acessos a informações e inovações. A brecha digital também ocasiona descompassos na produtividade e no desempenho em atividades que não podem prescindir de sistemas e ferramentas tecnológicos. Como assinala Martín Hopenhayn: “Quem não está conectado estará excluído de maneira cada vez mais intensa e variada. A brecha acirra os contrastes entre regiões, países e grupos sociais. Países menos digitalizados vão sendo confinados ao quintal da globalização em termos de intercâmbio cultural, protagonismo político, crescimento econômico e, em consequência de tudo isso, bem-estar social.” Inversamente, acentua Hopenhayn, quanto mais se consegue diminuir a brecha, mais se distinguem no horizonte as possibilidades de integração social, diversificação comunicacional e igualdade de oportunidades produtivas, tanto dentro dos países quanto entre eles (12).

Esses descompassos estão ligados aos vácuos tecnológicos, ao baixo poder aquisitivo, aos altos preços de bens e serviços teleinformáticos, à ausência de políticas públicas de ciência e tecnologia que priorizem a inclusão social e os direitos da cidadania. Os custos de utilização de tecnologias de informação em mercados de baixa renda também inibem investimentos e projetos em países periféricos, constituindo entrave ao desenvolvimento das telecomunicações e adicionando agravantes ao histórico de estratificações entre sociedades, povos e nações.

A evolução técnica deveria ampliar o conhecimento das sociedades e dos homens. Mas, na prática, ocorre uma perversa inversão: as técnicas avançadas são apropriadas por elites e atores privilegiados em função de objetivos determinados. A explosão inovadora não representa um bem comum, nem uma conquista repartida pela maioria das sociedades. Depende, muitas vezes, de estágios tecnológicos e condições aquisitivas marcadamente desiguais. Grandes empresas e instituições hegemônicas detêm a prerrogativa de utilizá-la em função de ambições particulares. São elas que dispõem de poderio financeiro, influência política, capacidade industrial e esquemas de distribuição pelos continentes.

Não estou defendendo a ideia ingênua de que a aceleração tecnológica só produz embaraços e efeitos negativos. Sem dúvida as tecnologias facultam novos modos de sociabilidade, informação, acesso a serviços públicos, metodologias educativas, pesquisas científicas, entretenimento e intervenção política, entre outras potencialidades. Mas esta percepção não autoriza desconsiderar os domínios monopólicos, as competências desiguais para lidar com as tecnologias e as exclusões daí decorrentes.

Se contestamos a velocidade como virtude e desejamos superar o amálgama entre velocidades fortuitas e mercantilização – que alimenta os ciclos de expansão planetária do capital –, devemos rejeitar a idolatria do mercado como síntese de organização social; descartar a velocidade como emblema atávico de evolução sociotécnica; questionar  euforias tecnológicas (sem que isso se confunda com tecnofobia); reverter a comercialização desenfreada da informação; e empenhar forças na longa luta por alternativas socioeconômicas inclusivas e democratizadoras. Penso que essa reação incisiva poderia nos fornecer a chave de resposta, numa perspectiva de humanização da existência e de partilhas equânimes dos benefícios do progresso tecnocientífico, à inquietante pergunta de Jeremy Rifkin: “Quando até o próprio tempo é comprado e vendido, e quando nossa vida é pouco mais que uma série de transações comerciais sustentadas por contratos e instrumentos financeiros, o que acontece com as relações recíprocas de tipo tradicional que surgem do afeto, do amor e da lealdade?” (13)

Notas:

(1) John Berger. El tamaño de una bolsa. Buenos Aires: Taurus, 2004, p. 218.

(2) René Armand Dreifuss. Transformações: matrizes do século XXI. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 266.

(3) René Armand Dreifuss, ob. cit., p. 266-267.

(4) Zygmunt Bauman. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 16-18.

(5) Zygmunt Bauman. Vida de consumo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007, p. 51.

(6) David Harvey, “A arte de lucrar: globalização, monopólio e exploração da cultura”, em MORAES, Dênis de (org.). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 165-167.

(7) David Harvey. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004, p. 85.

(8) Joseph A. Schumpeter. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1984, p. 112.

(9) Ibidem, p. 114

(10) Ibidem, p. 113

(11) Robert Tucker e Gary Hame citados por Sandro Marques e Marcelo Torres, “Inovação, crescimento e sustentabilidade”, Revista da ESPM, vol. 3, ano 12, nº 3, maio-junho de 2006, p. 39.

(12) Martín Hopenhayn, “Educación y cultura en Iberoamérica: situación, cruces y perspectivas”, em CANCLINI, Néstor García (org.). Iberoamérica 2002: diagnóstico y propuestas para el desarrollo cultural. México: Santillana, 2002, p. 328.

(13) Jeremy Rifkin. La era del acceso: la revolución de la nueva economía. Barcelona: Paidós, 2000, p 157.

* Este artigo é uma versão condensada e revista do meu texto contemplado no Premio Internacional de Ensayo Pensar a Contracorriente, concedido em 2010 pelo Ministerio de Cultura de Cuba e pelo Instituto Cubano del Libro, e incluído no livro Pensar a Contracorriente VII (La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 2011, p. 79-105).

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Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1993) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina, 2005). Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Foi contemplado em 2010 com o Premio Internacional de Ensayo Pensar a Contracorriente, concedido pelo Ministerio de Cultura de Cuba e pelo Instituto Cubano del Libro. Autor de mais de 25 livros publicados no Brasil, na Espanha, na Argentina e em Cuba. Pela Boitempo, publicou Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação (2013) e O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (2012). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

1 comentário em A tirania da velocidade e da inovação para o lucro

  1. Olá. Muito bom o texto. Gostaria de conversar mais sobre ele.
    Abraços

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