Ça ira! Ça ira!

Bons tempos aqueles!

ESTUDANTES/SPPor Mouzar Benedito.

Ça ira! é uma música simbólica da Revolução Francesa. A gente só se lembra da Marselhesa, mas houve outras, e uma das mais lindas e ameaçadoras (para a nobreza e a Igreja) era Ça ira!. expressão que pode ter várias traduções, como “vai indo”, “que vai” e a que prefiro, “assim será”.

Segundo consta, anos antes Benjamin Franklin fez uma visita à França e, quando perguntaram a ele como ia a guerra de independência das treze colônias, ele respondeu num francês macarrônico: “Ça ira” (pronuncia-se sairá), com o sentido de “vai indo”, mas num tom otimista, e se inspiraram nele para fazer essa música.

Ela foi cantada a primeira vez em 1790, quando o povo levantado havia um ano estava cheio de esperanças, querendo aplicar pra valer o lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. Era cantada com paixão, chegando à beira da loucura, com uma fé extraordinária na Revolução e no povo que a fazia. A letra era de Landré (não sei o nome inteiro dele), colocada sobre a música Carrillon national, de Bécourt.

A letra é quilométrica, contra o clero e a nobreza, mas há versões mais reduzidas, como a da gravação maravilhosa de Edith Piaf, feita em 1953, que dá uma vontade danada de ter vivido aquele momento, ainda que a Revolução Francesa tenha desandado depois. Quer dizer, desandou numa série de reviravoltas, com divergências entre facções revolucionárias, muitas mortes, mas de qualquer forma ela deixou um legado enorme, como a Declaração dos Direitos do Homem, que depois se tornou universal, e a transformação da França num estado laico. 

Ouvindo Edith Piaf, lembrei-me de dois momentos vividos por minha geração, no Brasil, especialmente em São Paulo, e mais especialmente ainda, no caso do primeiro deles, vividos na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, e no segundo momento vividos na Vila Madalena.

Eram tempos radicais, duros, mas de muita esperança, muita crença, como a do povo francês que em 1789 se levantou contra a nobreza e o clero, classes que detinham o poder e o executavam sem piedade.

Nossos momentos não chegaram a mudar o mundo como a Revolução Francesa, mas também não foram de se jogar fora. Em 1968, meus tempos de estudante de Geografia na USP, apesar de toda a opressão da ditadura, que se radicalizou ainda mais em dezembro, com o Ato Institucional número 5, tínhamos uma esperança infinita de mudar o mundo e nos julgávamos protagonistas da História. Do nosso lado, achávamos, estavam os bons; do outro lado, os maus, opressores, canalhas etc. etc.

A gente se ferrava, às vezes ia parar na cadeia, nos anos que se seguiram muitos foram assassinados, muitos mais foram presos pra valer e torturados e outros tantos se exilaram. Mas lutava-se, tentava-se mudar o mundo, uma pretensão que hoje podem considerar ingênua, pretensiosa ou delirante, mas na época era concreta, presente, e nos vitaminava para a vida.

O outro período, não tão “revolucionário”, foi quando começava a se consumar o fim da ditadura, no final dos anos 1970. Grandes manifestações por liberdade, pela volta dos brasileiros exilados, pela libertação dos presos políticos… Uma esperança enorme de que tudo ia mudar. Julgávamos que com o fim da ditadura a felicidade se tornaria ampla, geral e irrestrita para todos.

Nas nossas manifestações, não se cantava Ça ira!, mas a brasileiríssima Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré, e um monte de músicas de Chico Buarque e outros artistas que puseram a voz do povo em suas músicas.

O clima era menos radical, mas foi mais duradouro que 1968. Nos anos seguintes, seguimos cheios de esperanças, uns criando o PT, outros legalizando os PCs… Eu estava entre os petistas, achando que criávamos um partido diferente, transformador. Dificilmente chegaríamos ao poder, acreditava, mas incomodaríamos bastante esse poder. Como muitos, perdi empregos por causa da militância política, fecharam-me várias portas, mas e daí? Nós éramos o futuro!

Não me arrependo de nada, pois o momento era para fazer o que foi feito (e talvez muito mais) e ficar fora dos acontecimentos parecia uma traição, ou pelo menos uma covardia.

Aí deu-se o fim da ditadura… Foi uma transição “exemplar” segundo quem queria mudar tudo sem mudar nada: não se fez justiça. Os líderes civis da ditadura continuaram no poder, bastando lembrar que José Sarney, presidente da Arena, o partido da ditadura, foi o civil que governou logo depois dos militares. E continuaram desfrutando o poder expoentes civis do governo militar, como Maluf, Marco Maciel, ACM, Borhausen e muitos outros, agora eleitos “democraticamente”.

Muita gente da imprensa brasileira, e da política também, acha uma maravilha que na Polônia as pessoas que faziam parte do estafe da ditadura (não só os figurões, mas ocupantes de cargos secundários também) foram proibidas de participar dos governos seguintes, mas se a gente dissesse que os caras da ditadura daqui deveriam ser proibidos definitivamente (nem estou falando em cadeia pra eles) de participar da política brasileira, nos tratariam como fanáticos alucinados, no mínimo.

Mas continuamos anos com a consciência de que éramos os bons, os adversários (aí já não se falava deles como inimigos) eram os maus. Até que fomos percebendo que muitos dos nossos bons não eram tão bons assim. Fomos mudando, se adaptando à velha política. Em vez dos políticos da ditadura se adaptarem a outros tempos, os homens dos novos tempos é que foram, em boa parte, se adaptando aos velhos tempos, às velhas práticas políticas.

Enfim, está aí um texto meio saudosista, de lembranças dos bons tempos de muita esperança e de confiança em nós mesmos e nos nossos parceiros, aliados, companheiros. Quem não passou por isso não sabe o que perdeu.

E pra completar, aí vai a letra de Ça ira!, a versão reduzida cantada por Edith Piaf, com uma tradução pra lá de livre (foi-se também o tempo em que eu entendia um pouco de francês), com a esperança de um tempo de mudanças pra valer, chegando finalmente a um estado de real liberdade, igualdade e fraternidade!

E se alguém ouvir a música, que não tente adaptar a letra em português, que não cabe nos versos e não tem rima.

Refrão:

Ah! Ça ira! Ça ira! Ça ira!
Lês aristocrates a la lanterne
Ah! Ça ira! Ça ira! Ça ira!

Les aristócrates, on de pendra!
Trois cents ans qu’ils nous prometent
Qu’on vas nous accorder du pain
Voila trois cents ans qu’ils donnent de fêtes
Et qu’ils entretiennent dans catins!
Voila toris cents ans qu’on nous écrase.
Assez de mensonges et de phrases!
On ne veut plus mours de faim!!!

Refrão

Voila trois cents ans qu’is font la guerra
Au son des ffres et des tambours
En nous laissant crever de misère
Ça ne pouvait pas durer toujours…

Voila trois cents ans qu’ils prennent nos hommes
Qu’ils nous traitent comme des bêtes de somme.
Ça ne pouvait pas durer toujours!

Refrão

Lê châtiment pour vous s’apprête
Car le peuple reprend ses droits.
Vous êtes bien payê nos têtes.
C’en est fini, messieurs les rois!
Il faut plus compter sur les nõtres:
On va s’offrir maintenant les vôtres,
Car c’est nous qui faisons la loi…
Refrão

Assim será! Assim será! Assim será!
Os aristocratas aos candeeiro
Assim será! Assim será!”Assim será!

Os aristocratas enforcaremos!
Há 300 anos eles nos prometem
Que vão nos prover de pão
São 300 anos que eles festejam
E que se proveem de putas!
São trezentos anos que nos massacram.
Chega de mentiras e discursos!
Nós não queremos morrer de fome!!!

Refrão

São 300 anos que eles estão em guerra
Ao som de pífaros e tambores
Deixando que morramos na miséria
Isso não poderia durar para sempre…

Há 300 anos eles levam nossos homensQue nos tratam como bestas de carga.

Isso não poderia durar para sempre!

Refrão

A punição de vocês está próxima
Pois o povo reconquista seus direitos.
Vocês pagarão com suas cabeças.
Está consumado, senhores reis!
Vocês fizeram pagar caro os nossos:
Agora vão pagar os vossos,
Pois nós é que executamos a lei!

Refrão

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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

1 comentário em Ça ira! Ça ira!

  1. Mouzar, o link da música, caso seja permitido postar. Grande abraço.

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