Boemia e malandragem: Maria Rita Kehl e a preguiça na cadência do samba

Noel Rosa

Para a semana do lançamento de seu novo livro, 18 crônicas e mais algumas, Maria Rita Kehl nos enviou com exclusividade o texto preparado para sua apresentação durante o ciclo de palestras Mutações: Elogio à preguiça. Foi apresentado com o título “Boêmia e malandragem: a preguiça na cadência do samba”, no Rio de Janeiro (27/09), Belo Horizonte (28/09) e São Paulo (29/09).

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O contrário do burguês não é o proletário, é o boêmio

(Oswald de Andrade)

 

Elogio à preguiça tem sido interpretado neste ciclo como uma defesa das condições do pensamento. Para grande parte dos filósofos, o valor da preguiça repousa (repousa?) no fato dela ser entendida como recusa das atividades produtivas em prol das atividades mais nobres do devaneio e da reflexão. A imagem da preguiça é a do corpo em repouso. Será então apropriado falar de preguiça no caso de uma atividade da qual o corpo participa de maneira tão intensa – canto, ritmo, instrumentos – ou mesmo frenética – alguns modos de dançar – quanto o samba? De que modo  o samba elogia a preguiça?

A preguiça é tema de uma variedade enorme de sambas, desde que o gênero foi batizado como tal, no início do século XX. É verdade que raramente ela aparece com este nome. A exaltação da preguiça no samba é feita sob o nome de malandragem, boemia, orgia, vadiagem. Não se refere à inação, nem às diversas formas de retirada do mundo (Montaigne, Pascal). A preguiça do sambista não se apresenta nas formas da lassidão, do repouso, da inatividade do corpo. Muito menos, do afastamento do mundo – o belo “Samba e amor”, de Chico Buarque, é uma exceção no gênero, tanto rítmica quanto temática (“escuto a correria da cidade, que alarde/ e apressa o dia de amanhã/ De madrugada a gente ainda se ama/ e a fábrica começa a buzinar…”). Aqui o sambista, na década de 1970, é um moço de apartamento, que se refugia nos braços da amada enquanto a cidade ferve, muitos metros abaixo de sua cama. Seu elogio à preguiça, embora claramente diferenciado do discurso da malandragem a que vou me referir, mesmo assim presta homenagem ao que se pode chamar de “lugar comum” do samba tradicional carioca: a incompatibilidade entre o samba e o trabalho. Esta é a tradição que vou privilegiar nessa conferência. Nos sambas a que vou me referir, a preguiça aparece sob os nomes de orgia, malandragem e boemia, a misturar vadiagem e sociabilidade, bebedeira e trabalho criativo (quantos sambas não foram compostos em parcerias espontâneas, ao longo da madrugada, em mesas de bar?), sensualidade malemolente (bela palavra que já soa preguiçosa) e destreza no domínio de algum instrumento de corda ou percussão.

É uma forma nobre de preguiça em que o corpo se entrega ao ritmo, em que o tempo longo da noite (um turno oposto ao horário da fábrica e do trânsito que buzina no samba-canção de Chico) transcorre sem peias, sem acenar com a angústia que nos acomete diante do tempo vazio: é um tempo sincopado, marcado pelo ritmo característico do samba. O ritmo confere outra marcação à passagem das horas, diferente da do relógio. “Repetição sem tédio”, como alguém certa vez definiu o rock’n roll. Sambar, tocar, cantar a noite toda, sem preguiça nenhuma, é uma forma de vadiagem que escapa à polarização atividade/inatividade e, em troca, opõe trabalho a prazer, uso útil do tempo a desperdício inútil das horas que o relógio se esquece de marcar e cuja passagem o corpo não dá sinais de reparar. Preguiçoso, o sambista? Que nada: incansável! “pois então saiba que não desejamos mais nada/ à noite a lua prateada/ silenciosa, ouve as nossas canções…” (Cartola, “Sala de Recepção”). “O sol da Vila é triste, samba não assiste/ porque a gente implora/ Sol, pelo amor de Deus não vem agora que as morenas vão logo embora.” (Noel Rosa, “Feitiço da Vila”).

O protesto pela chegada do sol, que inaugura o dia de trabalho e encerra a noite de samba e boemia, é comum nas letras dos sambas pelo menos até que a política repressiva do Estado Novo passasse a censurar abertamente o elogio da malandragem e incentivar os compositores a gravar sambas de exaltação à pátria (Ary Barroso) e ao trabalho. O samba “Bonde São Januário” por exemplo, de Wilson Batista e Ataulfo Alves (1940) é uma exceção entre os temas recorrentes nas composições de ambos: aqui se escuta um elogio ao trabalho, motivado pela política de incentivo ao tema do “bom crioulo”, ou do “malandro regenerado” durante o Estado Novo. Segundo Cláudia Matos em Acertei no Milhar, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas “abriam-se novos canais de divulgação para os compositores populares, com cachês compensadores”, desde que os sambistas aderissem aos temas incentivados pelo DIP.

“Quem trabalha é que tem razão/ eu digo e não tenho medo de errar/ o bonde são Januário leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar”. (Wilson Batista e Ataulfo Alves).

Há quem diga que a primeira versão desse samba dizia: “leva mais um otário”, e a substituição de otário por operário foi feita “a pedido do DIP” (Cláudia Matos).

Mas este não é o período que pretendo abordar aqui. Quero me concentrar na preguiça, e para isso destacar as duas grandes décadas da origem do samba urbano (carioca), desde meados dos anos 1910 até meados dos anos 1930.

O samba é sociável e ativo. Nunca excluiu de sua roda a companhia da ralé, embora tenha feito um esforço para sair da senzala e alcançar o gosto das classes médias, sobretudo a partir da década de 1920. Mas sua origem é vira-latas. Os primeiros sambistas que se identificavam como tais, viviam entre (ou eram) vagabundos, prostitutas e cafetões, cachaceiros e golpistas, gente miúda vivendo de pequenos serviços, de trapaças no jogo e até mesmo – da venda de sambas.

O desprezo pelo trabalho recorrente nas letras dos primeiros sambas-maxixe (mais adiante explico essa denominação) pode ter duas origens diferentes, porém combinadas. Primeiro, como ideologia de recusa da servidão em uma geração de negros e mulatos descendentes de pais ou avós escravos. Lembremos que a escravidão no Brasil só foi abolida, vergonhosamente, no final do século XIX (1888) e que a Lei do Ventre livre, de 1871, ao invés de proporcionar uma vida mais digna aos filhos dos africanos nascidos depois do 28 de setembro daquele ano, produziu uma situação anômala na qual os proprietários de escravos não se sentiam no dever de manter junto às mães as crianças “livres”, que, a depender da maior ou menor boa vontade de seus senhores, poderiam ter a sorte de serem criadas nas casas e fazendas onde suas mães serviam, livres da escravidão, ou serem abandonadas nas ruas sem nenhuma proteção, nem dos senhores, nem do Estado. Os primeiros menores abandonados no Brasil foram os filhos da chamada “Lei dos Inocentes”. 

Outra deformidade social causada pela escravidão foi a situação do trabalhador livre que “não tinha lugar na sociedade, sendo um nômade, um mendigo, e por isso em parte alguma achava ocupação fixa”. Nas grandes cidades escravocratas, como Salvador e Rio de Janeiro, essas populações deserdadas da ordem social organizavam a vida como podiam, em cortiços e (mais tarde) favelas, criando uma sociabilidade própria, entre ritos religiosos e festas profanas a partir dos restos reprimidos de suas culturas de origem.

Nabuco, a respeito dos escravos que migraram das fazendas para as cidades, escreve: “…essa população foi, por mais de três séculos, acostumada a considerar o trabalho do campo próprio de escravos. Saída quase toda das senzalas, ela julga aumentar a distância que a separa daqueles, não fazendo livremente o que eles faziam forçados”.

Assim se estabeleceram as bases materiais para a compreensão do tema da degradação do valor do trabalho no Brasil do início do século XX. Por um lado, o trabalho era visto pelos mais pobres como um castigo opressivo, por conta do vício e da vergonha do longo período escravagista. 

A isto vêm se somar duas situações que em nada contribuíam para valorizar o trabalho: o desemprego em que se encontraram os descendentes de escravos depois da abolição e a degradação do valor do trabalho braçal, pago miseravelmente a uma grande parcela da população que, duas ou três gerações atrás, era forçada a trabalhar sem pagamento nenhum (situação que, devemos reconhecer, persiste em muitas regiões do Brasil até hoje).

Cocorócó, o galo já cantou/ levanta nêgo, cativeiro já acabou…

Assim canta Clementina de Jesus (“Cocorócó”). A mulher tenta acordar o marido para o trabalho porque o “senhorio” não tem clemência e virá cobrar o aluguel. Mas o homem, negro liberto da escravidão, quer dormir mais um pouco. A vida do trabalhador braçal era (é…) dura demais, e o salário, pequeno.

Sendo assim, “Prá que trabalhar?”. Neste outro samba de Wilson Batista, o cantor se queixa do salário curto, que nem lhe permite pagar o bonde pra ir à sua Escola predileta: “acabou o meu dinheiro e eu vou pro salgueiro a pé”.

De 1870 a 1917

A origem do que depois veio a se chamar de samba foi a zona rural. Fazendas na zona da mata da Bahia. Rodas de improviso, lundus, terreiros de Candomblé, função religiosa. A seguir, migração dos negros libertos para as capitais (Salvador, Rio de Janeiro). A abolição lançou nas ruas do Rio de Janeiro, maior cidade negra fora da África em finais do século XIX, um enorme contingente de homens “livres” do trabalho forçado, mas desamparados, desempregados ou subempregados, para quem a vadiagem não tinha necessariamente o sentido de recusa ao trabalho. Era uma condenação.

Essas populações de escravos e ex-escravos, quando não moravam em casa dos patrões, não tinham moradia nem ocupação nas áreas centrais da cidade. Concentravam-se nos subúrbios, em áreas degradadas e, mais tarde, nas encostas dos morros. As Festas da Penha, nos domingos de outubro, reuniam os antepassados dos primeiros sambistas (ainda não com este nome) junto com tocadores de fados, modinhas portugueses, lundus, cateretês do sertão de Minas, catiras nordestinas. O ritmo que veio a dar origem aos sambas da primeira geração foi o maxixe, cuja marca rítmica era o uso da sincopa (contrametricidade) típica das danças africanas. A sincopa se define pela acentuação rítmica da música num ponto em que o ritmo básico não seria acentuado, isto é, a acentuação rítmica não corresponde às acentuações ou subdivisões do compasso – com isso, surpreende o ouvido e o corpo também. Pode ocorrer pela acentuação de uma nota, ou pela ausência de nota no lugar onde deveria cair uma acentuação forte. (ex: Samba-Lelê, maxixe ou samba amaxixado). 

No final do XIX o samba começa a se movimentar da periferia para o centro, “da roça à cidade, das províncias à capital, dos negros ao povo em geral, movimento que se consumará na criação, entre 1917 e o início da década de 1930, do samba urbano carioca” (segundo Sandroni).

Vale lembrar aqui, ainda com referência à escravidão, a frequência do tema da sedução da escrava pelo senhor nas letras das primeiras modinhas, das polcas dançantes, dos lundus e, mais tarde, do maxixe.

Exs (livro de Sandroni): “Yoyôzinho vá-se embora/ que eu não gosto de brincar/ Não venha com seus carinhos/ minha reza atrapalhar”. Ou: “Ah meu Deus, sinhô Juquinha/ Você é os meus pecados/ Vá-se embora, já lhe disse/ não me queira dar cuidados./ As artes do Sinhô Moço/ são mesmo artes do demônio/ não me posso livrar delas/ nem rezando a Santo Antonio…” Brincar, bulir, “matar”, são expressões alusivas à tentação sexual que o senhor exerce sobre a escrava que mal consegue resistir. O resultado do abuso dessas artes ilícitas é o surgimento, no Brasil, da figura do mulato/mulata, associados desde sempre ao samba, ao dengo e à sedução.

A polca e o lundu abrem passagem para o maxixe, parente afro-brasileiro da polca, com cadência diferenciada por causa da sincopa (comum também ao lundu). O Maxixe surge no Rio em meados do século XIX, e é logo considerado pela elite e pelas classes médias como muito vulgar, um ritmo de “baixa categoria” – talvez por conta do ritmo sincopado, que induzia o corpo a requebrar de modo muito diferente dos passos marcados da polca, por exemplo. Lembrar a dança de salão no conto de Machado, “Um homem célebre”, de 1870: neste conto, o personagem principal (o compositor carioca Pestana) persegue o ideal da música clássica, mas ganha fama por suas polcas e maxixes que os frequentadores dos salões adoram dançar. Quando senta-se ao piano para compor um noturno, os dedos parecem correr sozinhos pelo teclado, ao ritmo contagiante do maxixe. O título de uma polca tocada por Pestana para animar um jantar de aniversário é “Nhonhô, não bula comigo”, alusão de Machado ao tema do abuso sexual dos senhores sobre as escravas.

O maxixe supera a polca no gosto popular por conta da sincopa, quebra rítmica que convoca imediatamente o requebrado típico das danças africanas. Além disso, o maxixe era dança de “par enlaçado” enquanto o lundu, também africano, mas de raízes rurais/coloniais, se dançava em roda, sem enlaçar o par.

A origem da palavra samba também é africana. Era usada no interior do Brasil para nomear um folguedo que conjuga batuque, dança de roda e “umbigada”, (semba na origem angolana) – gesto de forte sensualidade que inclui o samba entre as danças profanas afro-brasileiras (Sandroni). Quando algumas versões do lundu já eram aceitos em “sociedade” (no Rio), o samba ainda era desconhecido até o final do XIX – era visto como um “signo do atraso rural” pelos moradores da capital.

A grande concentração de negros e mulatos em uma região mais central da capital federal aconteceu no bairro da “Cidade Nova” – hoje Estácio – região de mangue aterrado em 1860 que logo abrigou uma multidão de escravos e ex-escravos, pequenos funcionários e trabalhadores braçais, subempregados e desempregados, prostitutas e jogadores, tornando-se o bairro mais populoso da cidade na década seguinte. Em razão da origem social de sua população, a Cidade Nova (que Heitor dos Prazeres batizou de “Pequena África”) também se tornou um centro de “diversões de má fama”. A dança dos negros descendentes de escravos não tinha prestígio entre os brancos e só era tolerada nos teatros de variedades e clubes carnavalescos. Foi nesse meio que se deu a passagem do maxixe ao samba, que ainda não se parecia com o samba atual, criado já no começo do século XX.

O samba nasceu da tradição oral dos escravos – e penso que até hoje a música popular, que recobre a vida social brasileira com um discurso paralelo ao da política, da economia, do consumo, dos modismos em geral, guarda a força da tradição oral na cultura brasileira. A música popular cria sua própria zona de discurso que, com ajuda do rádio e hoje da tevê, mas ainda também da propagação boca a boca, pinta a aquarela de um outro Brasil no qual o Brasil real se reconhece, como num espelho melhorado, comunitário, popular, auto crítico – não necessariamente feliz, mas alegre.

Algumas “tias” oriundas da Bahia tiveram grande importância no período em que o samba nasceu. Os migrantes do nordeste que se aglutinaram na “pequena África” mantinham, na capital federal, fortes laços de solidariedade e uma sociabilidade ainda provinciana. O mais famoso ponto de encontro de sambistas foi a Casa da Tia Ciata, na rua Barão de Itaúna. Hilária Batista de Almeida foi uma negra de classe média baixa, marido chegou a estudar dois anos de medicina. Além de curandeira ligada ao candomblé, Tia Ciata ficou famosa por abrir sua casa para uma variedade de festas com músicas para os gostos da classe média branca e dos negros. (Outras tias: Amélia, mãe de Donga, e Perciliana, mãe do João da Baiana). Embora o candomblé fosse fortemente reprimido na época, o terreiro de tia Ciata foi liberado depois que ela teria convocado seus Orixás para curar a perna doente do então presidente Venceslau Brás – o que mostra também a escassa diferenciação cultural entre as classes no Brasil da República Velha.  

As festas na casa de Tia Ciata eram divididas em vários ambientes entre os quais se mantinha a hierarquia entre os frequentadores. “Baile na sala de visitas, samba de partido-alto nos fundos da casa e batucada no terreiro” (depoimento de João da Baiana). O baile na sala de visitas seria “mais civilizado”, o samba na sala de jantar ainda se parecia com as polcas amaxixadas do conto de Machado e o “batuque” no quintal podia misturar cantos de candomblé com rodas de “partido alto” acompanhadas de palmas, onde também se podia dançar a umbigada – foi neste ambiente que o samba firmou suas primeiras características marcantes. E que exerciam, claro, forte fascínio entre os frequentadores das salas “da frente”, pela oportunidade de desrepressão sexual que ofereciam aos brancos educados pela moral católica. A transação entre os três ambientes de casas como a da Casa da tia Ciata, para Sandroni, recobria essa “polarização entre o espaço público e a intimidade”.

Pixinguinha: “Samba de partido-alto/ só vai cabrocha que samba de fato/ só vai mulato filho de baiana/ e gente rica de Copacabana”.

Nem por isso a polícia deixou de perseguir os sambistas “vagabundos”, e dissolver as rodas de samba, como contam João da Baiana (“preso várias vezes por tocar pandeiro”), Cartola (“O samba naquela época era coisa de malandro e marginal”), Noel Rosa (“A princípio o samba foi muito combatido, considerado distração de vagabundo”).

O tema da malandragem – de origem marginal – acaba por cair no gosto dos brancos de classe média

O jornalista Irineu Marinho, por exemplo, junto com Arnaldo Guinle, foram grandes incentivadores do primeiro conjunto musical popular, “Os oito Batutas”, organizado em 1919 por Donga e Pixinguinha, músicos negros da primeira geração de sambistas que tinham, no entanto, formação musical de conservatório – não eram sambistas improvisadores.

Humberto M. Franceschi relata que os dois músicos apresentaram-se em Paris, junto com Os Oito Batutas, por ocasião do centenário da Independência do Brasil (1922), mas não há registro da passagem deles por lá. Ao ser perguntado por quanto tempo o grupo viajou pela Europa, Donga teria respondido com simplicidade: “desde que saímos até quando voltamos”.

Donga, por sinal, foi o primeiro compositor de sambas a se destacar da tradição comunitária, da música composta no improviso nas rodas de samba, música sem autoria e sem formato fechado, ao assinar em seu nome o primeiro samba gravado sob essa denominação, e que teria nascido numa roda na casa de Tia Ciata: o famoso “Pelo telefone”, gravado pela primeira vez em 1917, tendo alcançado grande sucesso no carnaval daquele ano.

A apropriação individual da criação coletiva por Donga foi alvo de protestos por parte de outros frequentadores da casa de tia Ciata, inclusive o famoso Sinhô, que alguns anos mais tarde se tornaria o mais conhecido compositor popular, apelidado de “Rei do Samba”.

Vale lembrar episódio criado ou recriado por Julio Bressane em seu filme sobre Mário Reis: “A glória é de um tremendo mau gosto”. Tia Ciata, Sinhô e outros sambistas publicaram uma carta no Jornal do Brasil (4/2/1917) protestando contra a apropriação indébita de Donga.

Resposta de Donga: “Recolhi um tema melódico que não pertencia a ninguém e o desenvolvi…”,  e em outro depoimento: “ofereceu-se a oportunidade… porque a hora era aquela”.

Que “hora” era essa? O momento da passagem do samba ingênuo, coletivo e pedestre, ao samba autoral, com partituras vendidas para fazer sucesso no carnaval e, logo mais, ser cantados nos rádios e gravados em discos. Anunciava-se o fim do sambista espontâneo e o nascimento do sambista profissional, do samba moderno “com autor, gravação, acesso à imprensa, sucesso no resto da sociedade” (Sandroni). Nascia o samba-mercadoria no Brasil. E que mesmo assim não deixava de se identificar com a malandragem, como veremos.

A letra de “Pelo telefone” contém uma alusão maliciosa à promiscuidade entre a polícia e a contravenção, a partir do episódio em que repórteres de A noite instalaram uma roleta no largo da Carioca, em frente à sede do jornal, e convidavam os passantes a apostar sem ser incomodados – e no dia seguinte publicaram no jornal: “o jogo é livre”. Duas versões do samba: chefe da polícia/ roleta na carioca e (2ª versão) chefe da folia/ com alegria não se questione para se brincar.

Terceira parte, que foi parodiada para ameaçar Donga, era assim originalmente: “tirar amores dos outros/ depois fazer seu feitiço”. Virou: “assinar o que é dos outros e esquecer o compromisso”. Com esses versos, Sinhô e tia Ciata finalizaram a carta de protesto publicada no JB.

Uma característica dos primeiros sambas, de criação improvisada e coletiva, era a ausência de relação temática e musical. Depois da primeira quadra de “Pelo telefone”, outras estrofes foram acrescentadas, sem nenhuma relação de continuidade entre elas.

“Ai, ai, ai, deixa as mágoas para trás, ó rapaz/ ai, ai, ai, fica triste se és capaz e verás/ olha a rolinha, sinhô, sinhô, se embaraçou, sinhô, sinhô/ pobre avezinha, sinhô, sinhô, nunca sambou”. No final: “Mas este samba/ é de arrepiar/ põe a perna bamba/ mas faz gozar”.

Malandragem também é “roubar” para si a autoria de uma criação coletiva. É importante dizer que a criação coletiva era a marca dos primeiros sambas, compostos de improviso pelos participantes de uma festa ou de uma roda de samba, ao ritmo de palmas, sem preocupação autoral e sem exigência de coerência ou continuidade entre as “partes” do samba, que se emendavam livremente de acordo com a dinâmica do improviso coletivo.

Mas o próprio Sinhô, depois da desavença com Donga (que não constituiu rompimento entre os dois), chegou a defender a apropriação individual de temas coletivos dizendo: “Samba é que nem passarinho: é de quem pegar”

Vejamos uma sequência de sambas da primeira fase (1919-1927), de autoria indeterminada porque coletiva, surgidos no quintal da casa da famosa tia Ciata. Seus autores? Donga, Sinhô, Heitor dos Prazeres, João da Baiana. Na gravação que encontrei, estão assinados por Sinhô.

“Não se deve amar sem ser amado/ é melhor morrer crucificado/ Deus me livre das mulheres de hoje em dia/ desprezam homens só por causa da orgia!

“Gosto que me enrosco de ouvir dizer/ que a parte mais fraca é a mulher/ mas o homem com sua fortaleza desce da nobreza e faz o que ela quer.

Ora vejam só, a mulher que eu arranjei/ ela me faz carinho até demais/ jurando ela me pede, meu benzinho/ deixa a malandragem se és capaz…”

A malandragem eu não posso deixar/ juro por Deus, e por Nossa Senhora/ que é mais fácil ela me abandonar, meu Deus do Céu, que maldita hora”.

Esta pequena sequência de sambas, que na minha infância ouvia meus tios maternos cantarem ao violão, emendando um ao outro como se fossem um só, são na verdade três sambas amaxixados de autoria coletiva, gravados em nome de Sinhô. As invenções coletivas surgiam nas rodas de samba, antes que as gravadoras começassem a comprar dos sambistas essas criações e gravá-los com o nome dos supostos autores (com frequência, com co-autoria do cantor Francisco Alves, que comprava os sambas para gravar e colocava seu nome junto ao do compositor). Os sambas bem conhecidos, gravados como sendo de Sinhô, defendem a orgia e a malandragem contra a tendência disciplinadora das mulheres, contra a boemia e a favor do “batente”.  A alegre recusa do sambista em obedecer aos pedidos da amada (“é mais fácil ela me abandonar”) cativa o ouvinte, que se esquece que a mulher sempre pagou pelos excessos do companheiro malandro.

A mulher que dá duro no batente, preocupada com o que dar de comer aos filhos enquanto o homem escapole de casa e some na orgia, é tema de alguns belos sambas – alguns melancólicos, outros cheios de amorosa resignação (“Camisa Amarela”, “Com açúcar, com afeto” etc). O mais triste deles aprendi com minha mãe, e nem no Google consegui achar o compositor:

“Isso é papel, João/ papel que se faça/ com essa carestia/ jogar meu dinheiro no chão/ Olha pros neguinhos/ barriga vazia/ coquinho pelado, roupinha surrada/ pezinho no chão….” 

“Se você Jurar”, de Ismael Silva e Nilton Bastos (1931) propõe um acordo com a mulher: “se você jurar que me tem amor eu posso me regenerar/ mas se é para fingir, mulher, a orgia assim não vou deixar”. Aqui, o sambista propõe um pacto com a mulher: só vale a pena deixar a orgia por um amor sincero.

 Segunda geração de sambistas: o samba do Estácio

Na primeira década do século passado, a reforma do centro do Rio feita pelo prefeito Pereira Passos (da qual participou, como engenheiro principal, meu bisavô materno Francisco Bicalho…), jogou uma multidão de desabrigados no bairro da Cidade Nova, cujo coração palpitava na Praça Onze, único espaço desocupado para as festas populares – a começar pelo carnaval. Aos despejados de Pereira Passos somaram-se os soldados remanescentes de Canudos, que acabaram por ocupar as encostas do Morro da Providência, a primeira favela do Rio de Janeiro.

A praça Onze foi local onde, desde 1870, os cultos do candomblé se misturavam às rodas de samba; ali se originaram os primeiros blocos carnavalescos que provocaram uma importante transformação no ritmo do samba: o samba “de sambar”. A vadiagem, entre a população da “Pequena África” (quadrilátero demarcado pelo Campo de Santana que se estendia até os limites do Estácio) não era apenas uma opção existencial: era praticamente um destino para os milhares de desempregados e subempregados que moravam em cortiços da região.

Artur Ramos, sobre a Praça Onze: “Perseguido pelo branco, o negro no Brasil escondeu suas crenças nos terreiros de macumbas e nos candomblés. O folclore foi a válvula pela qual ele se comunicou com a civilização branca. (…) Carnaval: “catarse coletiva”. A Praça Onze é uma grande trituradora que elabora o material inconsciente e prepara-o para sua entrada na civilização. A praça Onze é o censor do inconsciente negro-africano. É a fronteira entre a cultura negra e a branco-europeia, fronteira sem limites precisos, onde se interpenetram instituições e se revezam culturas” (Sandroni).

O malandro, personagem popular nos subúrbios e no centro do Rio de Janeiro, era forçado a viver na base do improviso, entre a ilegalidade e a miséria, entre a oferta de pequenos serviços mal pagos, trabalho braçal pesado e igualmente mal pago. Ou, na falta de ambos, a inventar uma série de expedientes à margem da legalidade que consistiam o núcleo material da “malandragem”: jogo, cafetinagem de mulheres, pequenos furtos, pequenos golpes para extorquir algum tostão dos trabalhadores pouco menos famintos que eles. Outra ocupação já estabelecida naquela época entre os ex-escravos mais fortes era a de cabos eleitorais de políticos locais. Segundo Humberto M. Franchesqui, a tradição da malandragem teve origem entre os antigos escravos soldados, “oriundos das revoltas do início da República”, lutadores da capoeira de Angola que prestavam serviços aos políticos locais. “Uma outra geração formada 20 anos depois (já no século XX) toda descendente de ex-escravos e mantida na mesma condição social (…) conduzia-se por conta própria sem mais depender exclusivamente dos políticos locais. Dessa geração surgiu o malandro carioca”.

Entre as diversas origens do malandro, o ponto em comum é a criação de um “mundo sem culpa”, retratado com graça no romance de Manoel Antonio de Almeida, Memória de um sargento de Milícias e  elogiado por Antonio Candido em seu conhecidíssimo ensaio “Dialética da malandragem”.

O sucesso da gravação de “Pelo telefone” no carnaval de 1917 abriu o precedente para uma nova ocupação do malandro talentoso: sobreviver à custa do samba. A inauguração da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 1922, (comemoração do 7 de setembro, governo Epitácio Pessoa) possibilitou que o samba criado no Estácio, na Mangueira, na Vila Isabel, ultrapassasse os limites da transmissão oral e caísse no gosto da classe média branca. As vendas de discos efetuaram a transformação do samba popular em mercadoria.

Mas volto um pouco à origem da segunda geração de compositores cariocas. As rodas de samba e batuque, com ou sem cultos religiosos, que deram origem ao primeiro bloco carnavalesco (o “Deixa falar”), aconteciam nos fundos da primeira Escola Municipal do Rio (demolida em 1938). Ali havia uma balança e um bebedouro para animais de carga que traziam carregamentos vindos do cais. O tablado de madeira da grande balança de pesar carroças carregadas, também usada como palco para rodas de capoeira, facilitava a dança, já que no “piso pé de moleque” que revestia o chão da Escola Benjamin Constant não permitia que os pés deslizavam com a mesma facilidade. No século XX a crescente concentração da população pobre na região da Pequena África fez daquele bairro o berço de um novo tipo de samba: o “samba de sambar” do Estácio, de ritmo compatível com a movimentação dos blocos (Ismael Silva), que segundo Franceschi abalou profundamente os principais compositores até a década de 1920, como Sinhô, Donga e Caninha. Diálogo suposto entre Donga e Ismael Silva: “Isso não é samba, é maxixe” (“Pelo telefone”). “Isto não é samba, é marcha” (“Se você jurar”).  Mais tarde,em entrevista a Sergio Cabral, Ismael – um dos poucos representantes longevos da 2ª geração – resumiu a diferença rítmica assim: “O samba antigamente era assim: “tan-tantantan/ tan- tantantan”. Depois virou: “bumbumpaticunbum burugudun” (tema de um samba enredo do Estácio nos anos 70).

Pertenciam à segunda geração de sambistas Ismael Silva, Bide (Alcebíades Barcelos), Brancura (Silvio Fernands) e Nilton Bastos, da região do Estácio, além de frequentadores de outras regiões, como Cartola (da Mangueira), Noel Rosa (Vila Isabel), Wilson Batista (que veio de Campos para viver na Lapa) etc. O culto à malandragem entre esses sambistas, alguns de classe média baixa como Noel, também vinha do fato, entre real e lendário, de que no Brasil da primeira República os ricos não trabalhavam.

“Ai ai meu Deus, tenha pena de mim /todos vivem muito bem, só eu que vivo assim/ trabalho não tenho nada/ eu vivo num misere/ ai ai, meu Deus/ isso é pra lá de sofrer”. Ciro de Souza e Babáu, 1938 (grande sucesso no carnaval daquele ano).

Se o trabalho não impede que se viva no misere, então mais vale viver na malandragem. Ismael Silva tem duas canções complementares em louvor à malandragem, contra o trabalho.

“Se eu precisar algum dia/ de ir pro batente/ não sei o que será/ pois vivo na malandragem/ e vida melhor não há” (1931).

A ideia de que fazer samba não é trabalho, é prazer que não requer esforço e não encontra dificuldades entre os verdadeiros boêmios é bem ilustrada por um depoimento de Ismael sobre uma de suas composições: “Minha música sai assim, quando não estou pensando em música, como uma coisa que viesse e me botasse na mente, (…) acabei de beber um café, fiquei sentado olhando pra a rua, de repente comecei assim, naturalmente. “Nem tudo que se diz, se faz…” Tá vendo, letra e música, já tudo junto, daí parei aí – “eu digo e serei capaz” – capaz de que? A conclusão, não acabei naquele dia, levei três dias pra encontrar o final, sem poder terminar. No terceiro dia, eu andando na rua e aí veio o final, “de não resistir, nem é bom falar/ se a orgia se acabar”. Nada de forçar, tudo bem espontâneo”. Entre 1828 e 1935 Ismael gravou mais de 50 música, sozinho ou em parceria. O grande cantor de seus sambas, que “comprava” a parceria para ter seu nome de co-autor nos discos, era o cantor Francisco Alves.

“Nem tudo o que se diz, se faz/ eu digo e serei capaz/ de não resistir, nem é bom falar/ se a orgia se acabar” com Nilton Bastos e Francisco Alves.

O tema da malandragem, como lembra Claudia Matos, não é tão simplesmente o reflexo direto das condições de vida dos primeiros compositores de samba do Rio de Janeiro. A preguiça no samba é um discurso, e assim deve ser entendido. O elogio da boemia, da vadiagem e da malandragem seduz o ouvinte de classe média não apenas pela ginga, a cadência, a sensualidade e o remeleixo do samba, mas também pela figura carismática do sambista malandro, que escolhe uma vida de prazeres ao preço de muita pobreza, mas despreza a disciplina, o trabalho e até mesmo o dinheiro

Ao contrário do proletário, cujos interesses estão ligados aos aspectos materiais da vida (e se fizer a revolução, será em nome deles), o boêmio é o anti-filisteu.  Sua pobreza não resulta de um espírito de sacrifício, e sim da experiência positiva com tudo aquilo que o dinheiro não pode comprar.  A começar pela liberdade. O boêmio é capaz de trocar tudo, até o amor, só para não deixar a tal da “orgia”.

Este quadro foi bem nítido pelo menos até a década de 1930, quando o rádio passou a divulgar os sambas para fora do morro e dos becos boêmios da cidade, favorecendo o surgimento de sambistas dos bairros de classe média A inclusão social do samba foi promovida com grande empenho pelo genial Noel Rosa. Ainda assim, persistiu a associação entre os blocos de carnaval, o samba, a vadiagem e a malandragem. Ainda na década de 30 os blocos eram obrigados a fazer registro na polícia antes de desfilar. Para obter a licença, tinham que cumprir algumas condições, como a de não falar de malandragem ou estimular vadiagem.

“Quando Noel se tornou compositor profissional, um tema de larga tradição dominava a música popular: a malandragem. Até a Abolição, a ordem social era rígida: os escravos trabalhavam, os senhores mandavam e o restante da sociedade ficava à margem do processo de produção, sem produzir regularmente nem ter acesso ao poder” (Jorge Caldeira em seu livro Noel Rosa).

Franceschi afirma que um dos preconceitos infundados contra os sambistas era o de que seriam todos analfabetos. O autor cita um auto de prisão revelador dos preconceitos sofridos pelos sambistas:

Perambulava pela cidade sem destino, na mais completa ociosidade, sendo vadio contumaz e jogador de chapinha incorrigível que não tem arte, ofício ou ocupação honesta (…) vivendo exclusivamente do produto de jogos ilícito; sempre encontrado na mais completa ociosidade na zona do baixo meretrício em todas as horas do dia e em companhia de jogadores profissionais e outros elementos nocivos à sociedade.

Franceschi retruca que os tais “marginais que não têm arte” eram artistas que, em menos de quatro ano, mudaram a música carioca e a música brasileira.

Noel, que tentou mostrar ao mundo branco que o samba da Vila Isabel era um “feitiço decente” (sem farofa, sem vela e sem vintém…) não deixou, entretanto, de associar a imagem do sambista à vadiagem, à preguiça, ao avesso do mundo do trabalho: em Vila Isabel, o povo pede pra que o sol “pelo amor de Deus não venha agora que as morenas vão logo embora…”

A paixão pelas noitadas de samba sem limite para terminar, o envolvimento apaixonado com as primeiras Escolas, era motivo de desprezo pelas regalias do mundo dos endinheirados. Esse tema, retomado por Chico Buarque no famoso “Quem te viu, quem te vê”, foi lindamente retratada pelo samba “O X do problema”, de Noel, onde uma mulher recusa deixar a escola do Estácio para casar-se com um pretendente rico: “Você tem vontade que eu abandone o largo do Estácio pra ser a rainha de um grande palácio/ dar um banquete uma vez por semana/ Nasci no Estácio, não posso negar minha raça de sangue/ você pode crer, palmeira do mangue não vive na areia de Copacabana”.

O personagem urbano que corresponde ao universo do samba, além de malandro não poderia deixar de ser… boêmio. O oposto do burguês não é o proletário, escreveu Oswald de Andrade. O oposto do burguês é o boêmio. Só ele encarna o desapreço pelo conforto e pelo dinheiro, a recusa a se deixar explorar, a aceitação da pobreza como preço pago pelo encantamento de uma vida livre ligada à orgia, à poesia, ao amor e à música.

O próprio Noel, que tentava desassociar o samba da vadiagem, não deixou de compor várias músicas em que o personagem narrador é um vagabundo sem dinheiro pra nada. Mas em vez do grande malandro, Noel vai preferir falar das pequenas malandragens do cidadão em meio à grande miséria geral, à “prontidão sem fim”.

“O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu/ e também já vão surgindo as estrelas lá do céu/ tenho passado tão mal, a minha cama é uma folha de jornal”… Assim canta o “poeta da Vila”, com bom humor, a pobreza a que está condenado o sambista – e que só se torna um problema quando ele tem que resolver… com que roupa eu vou ao samba que você me convidou?”. O personagem desse que foi o primeiro samba de sucesso composto (e gravado) por Noel, nem cogita em trabalhar para comprar roupa nova. Contava com “o português” que sustentava sua amada, e que agora “foi-se embora e levou seu capital”, deixando o casal de boêmios a ver navios – e de roupa surrada.

A polêmica de Noel com Wilson Batista ficou mais conhecida por conta dos sambas que discutiam o valor da Vila Isabel. Antes dessa, porém, Batista e Noel compuseram sambas discordantes a respeito, justamente, do valor da malandragem. O jovem mulato recém chegado de Campos dos Goytacazes tentou se entrosar no mundo boêmio da Lapa declarando-se um verdadeiro malandro:

 “Chapéu de lado, tamanco arrastado/ lenço no pescoço, navalha no bolso/ eu passo gingando, provoco e desafio/ eu tenho orgulho de ser um vadio/ eu sou vadio porque tive inspiração/ já me lembro, era criança, tirava samba-canção”.

Não se sabe se por ciúmes, por orgulho de boêmio que recusa imitações ou se por puro espírito de provocação, Noel rebateu o samba do novato posando de moralista, a aconselhar o compositor:

“Deixa de arrastar o seu tamanco/ pois tamanco nunca foi sandália/ arranca do pescoço o lenço branco/ bota sapato e gravata/ joga fora essa navalha, que te atrapalha/ de chapéu de lado deste rata/ da polícia quero que escapes/ tirando samba-canção/ eu já te dei papel e lápis, arranja um amor e um violão/ malandro é palavra derrotista que só serve pra tirar todo valor do artista/ proponho ao povo civilizado não te chamar de malandro/ e sim de rapaz folgado”.

Mesmo assim, observem que o ofício sério que Noel recomenda a Wilson Batista, contra a pecha de malandro, era o de compositor. O conselho do sambista não era para que o suposto malandro procurasse emprego. Noel procura dissociar a imagem do sambista da do malandro sempre sujeito a cair nas mãos da polícia. Malandro, palavra derrotista?

O mesmo Noel, na consagrada “Conversa de botequim”, encarna o sambista vagabundo que passa a tarde na mesa do bar a pedir uma dúzia de favores ao garçon (média e pão com manteiga, recados ao escritório, o placar do jogo e até “algum dinheiro, que eu deixei o meu com o bicheiro”), pra terminar com “vá dizer ao seu gerente/ que pendure essa despesa no cabide ali em frente”. 

Uma ameaça cerca o sambista, escreve Caldeira: nego largou a batucada e já bate a fome. “Agora, o malandro se preocupa no seu samba quase tanto com o dinheiro quanto com a mulher”, disse Noel.

Noel não foi só o “branqueador” do samba carioca, no sentido de ter desvinculado o samba da favela e da cultura negra. Noel criou o samba moderno.  Inscreveu na tradição oral da cultura carioca a crônica cantada da vida da ralé, no Rio de Janeiro, com graça, humor e ironia.  Há quem diga que Noel Rosa está para o samba como Machado de Assis para a literatura.  “Gago apaixonado”, “Tarzan, filho do alfaiate”, de grande comicidade, convivem com “Três apitos” (a moça é operária, seu apaixonado é “do sereno, poeta muito soturno, vou virar guarda noturno e você sabe porquê”), “Último desejo”, “Feitio de Oração”, que nasceram clássicos.

Foi triste destino dos sambistas da segunda geração, que viveram na pele o personagem do malandro e abraçaram a “orgia” como modo de vida: mortes precoces. A folia dos sambistas da antiga geração parece inocente diante da orgia dos malandros das décadas seguintes. Sandroni escreve que, “entre os sambistas do estilo antigo, que no início dos anos 1920 já desfrutavam uma posição profissional relativamente boa, o único que morreu de tuberculose foi Sinhô, aos 42 anos. Pixinguinha, João da Baiana, Donga e caninha chegaram inteiros à casa dos 70 anos, com cachaça e tudo.” A tuberculose matou muito mais sambistas da segunda geração, talvez porque – hipótese minha – a maior concentração urbana na região central do Rio e a falta de políticas de saúde pública por parte do Estado, tenha tornado a vida dos pobres ainda mais insalubre do que no início do século.

Noel, como já se sabe, morreu tuberculoso aos 26; três parceiros seus, Canuto e Antenor Gargalhada e Grandin, morreram da mesma doença antes dos 30 anos. Na turma do Estácio, Rubem Barcelos, irmão de Bide, Nilton Bastos, parceiro de Ismael, morreram tuberculosos, o primeiro com 23, o segundo com 32 anos. Brancura morreu louco aos 27 anos e Baiaco, aos 22, de úlcera.

A violência ceifou outras vidas, como a de outro parceiro de Noel, Ernani Silva, atirado do alto do morro da favela por “adversários desconfiados”. Mano Edgar foi assassinado numa briga de jogo.

Cartola, que chegou aos 72 anos respeitado pelos amantes do samba, por duas vezes caiu na marginalidade e desapareceu da Mangueira, por conta de dívidas, cachaça e, dizem, abuso de cocaína. Ismael Silva também morreu reconhecido, aos 73 anos. Mas também passou por um episódio de decadência e sumiço depois de ter sido preso, entre 1935 e 37, por atirar no amante da irmã, que batia nela. Outra vez, já famoso, foi preso em Paquetá por trapacear no jogo, mas foi reconhecido por um policial que admirava seus sambas e o comissário o soltou. De acordo com o jeitinho bem brasileiro, Ismael não foi inocentado da acusação de trapaça, mas deixou a prisão na condição de compositor e amigo de um policial (Sandroni).

A tradição continua: exemplos da “preguiça no samba” décadas depois da morte da geração do Estácio

Moreira da Silva, cantor e compositor que encarnou o personagem do malandro, compôs desde a década de 1930 até 1995 uma profusão de sambas cujo protagonista é o malandro esperto que não quer trabalhar, engana a polícia e as mulheres (“Na subida do morro” e “Faltava um ás no meu baralho”) e sonha com uma vida burguesa sem que precise trabalhar pra isso (“Acertei no milhar”).

Janet de Almeida e Haroldo Barbosa, em 1956, compuseram o famoso “Pra que discutir com Madame”, ironizando o preconceito dos grã-finos contra o samba.

Madame diz que o samba tem cachaça, é mistura de raça, mistura de cor/ madame diz que o samba democrata, é música barata sem nenhum valor/ Vamos acabar com o samba, Madame não gosta que ninguém sambe/ vive dizendo que o samba é vexame/ pra que discutir com Madame? (Haroldo Barbosa)

Também da década de 50 é o “Mambo da Cantareira”, protesto contra as agruras da vida do trabalhador composto pelo baiano radicado no Rio, Gordurinha, e gravado em 1974 por Jards Macalé (“Aprendendo a nadar”):

Mas ninguém sabe como é que dói, ninguém entende como é que dói/ trabalhar em Madureira, viajar na Cantareira e morar em Niterói”.

Além da vertente humorística, malandra, temos no belo “Sala de recepção”, de Cartola, a versão lírica do repúdio ao mundo do trabalho e a exaltação poética da vida devotada ao samba.

“Habitada por gente simples e tão pobre que só tem o sol que a todos cobre/ como podes, Mangueira, cantar? / pois então saiba que não desejamos mais nada/ à noite, a lua prateada/ silenciosa, ouve as nossas canções…”

Chico Buarque, o grande continuador da tradição do samba carioca, tematizou o fim da malandragem em 1978, na Ópera do Malandro (“A nata da Malandragem”):

“Eu fui fazer um samba em homenagem à nata da malandragem que conheço de outros carnavais/ eu fui à Lapa e perdi a viagem, que aquela tal malandragem não existe mais.”

O malandro, depois da “modernização” do país imposta pela ditadura militar (uma contradição em termos) enfiou a viola no saco e tornou-se trabalhador: dizem as más línguas que ele até trabalha/ mora lá longe, chacoalha/ num trem da central”. Quem tomou seu lugar foi a elite dos aproveitadores que se beneficiaram de todos os esquemas de apadrinhamento e corrupção do governo militar, aproveitando a falta de liberdade que impedia que seus esquemas viessem a público:

“Agora, já não é normal/ o que dá de malandro regular, profissional/ malandro candidato a malandro federal/ malandro com retrato na coluna social/malandro com contrato, com gravata, e tralha, e tal/ que nunca se dá mal”.

No mesmo disco, Chico gravou a belíssima “A volta do malandro” que termina com o brado de triunfo: “o malandro é o barão da ralé”. Encerro deixando vocês com a faixa completa do samba enfurecido, mas de letra irônica, que Chico compôs para o filme Vai trabalhar, vagabundo, de Hugo Carvana, em 1973. A voz que manda o vagabundo trabalhar é a mesma que arrasa com o ideal bem comportado do pobre, porém honesto, e revela que a exploração do trabalho não dá nada ao trabalhador a não ser “terminar moribundo com um pouco de paciência/ no fim da fila do fundo da previdência”. 

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Maria Rita Kehl é psicanalista, doutora em psicanálise pela PUC de São Paulo, poeta e ensaísta. É autora de vários livros, entre os quais se destacam Videologias – Ensaios sobre televisão (Boitempo, 2004), escrito em parceria com Eugênio Bucci, e O tempo e o cão (Boitempo, 2009), ganhador do Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Não-Ficção 2010. Colabora para o Blog da Boitempo esporadicamente.

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Noites de autógrafo de 18 crônicas e mais algumas (SP e RJ)

Maria Rita Kehl participará de duas noites de autógrafo de seu novo livro, 18 crônicas e mais algumas: em São Paulo, na Livraria da Vila (26/10, às 19h) e no Rio de Janeiro, na Livraria da Travessa (03/11, às 19h). O livro já está à venda nas livrarias e em ebook no Gato Sabido e na Livraria Cultura.

Também à venda em ebook:

O tempo e o cão: atualidade das depressões, de Maria Rita Kehl * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)

Videologias: ensaios sobre televisão, de Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl * PDF (Livraria Cultura)

O que resta da ditadura, organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle * PDF * Com artigo de Maria Rita Kehl (Livraria Cultura | Gato Sabido)

1 comentário em Boemia e malandragem: Maria Rita Kehl e a preguiça na cadência do samba

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