Guia de leitura | Terra viva | ADC#41

Terra viva
Vandana Shiva

Guia de leitura / Armas da crítica #41

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Autora de importantes obras que discutem os ataques ao meio ambiente por grandes empresas e o efeito desastroso de um mau uso do solo, Vandana Shiva faz em Terra viva uma volta a suas raízes, revendo uma trajetória que acabaria por definir os movimentos em que se engajou.

O livro traz à tona os desafios que enfrentamos no presente – incluindo aqueles realçados pela crise da covid-19, a privatização da biotecnologia e a mercantilização de nossos recursos biológicos e naturais.

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Quem é Vandana Shiva?

Vandana Shiva é uma mulher de força e de imensas habilidades. Inseriu na arena internacional a necessidade de proteção da biodiversidade e dos direitos de povos indígenas e de comunidades tradicionais, no espírito da Convenção sobre Diversidade Biológica. Fez isso de forma ao mesmo tempo apaixonada e baseada na razão. Sua voz nos encorajou a garantir que biodiversidade e sociodiversidade sejam respeitadas, protegidas e defendidas em todos os cantos do nosso frágil e pujante planeta.”

MARINA SILVA

Vandana Shiva e as sementes como poesia da vida

Inspiração mundial para pessoas, grupos, povos e comunidades que lutam pela terra e com a terra, Vandana Shiva consegue, em Terra viva: minha vida em uma biodiversidade de movimentos, apresentar-nos a um generoso panorama pessoal e político de suas abundantes lutas coletivas.

Seu diagnóstico das violências, explorações e opressões contra a terra é acurado, preciso e politicamente posicionado, em um rigor não apenas metodológico, mas sobretudo ético. Com uma coragem vital, Vandana Shiva vai, a cada página, nomeando as empresas bilionárias e seus dirigentes, os conglomerados e seus interesses, o colonialismo, o capitalismo e demais sistemas opressivos, sem deixar de denunciar explicitamente os grandes responsáveis pela destruição e tentativa de privatização do planeta.

Ao partilhar sua experiência, a autora reforça a importância de considerar as nuances de cada contexto, pois assim como cada solo tem sua especificidade, cada território tem suas características políticas. Reconhecer isso não nos impede, no entanto, de nos inspirarmos nos inúmeros relatos de lutas populares que acontecem em outras partes do planeta – e de aprendermos com eles –, até  porque os inimigos da terra e seus povos, em sua maioria, são os mesmos.

Geni Núñez

Ativista indígena Guarani, escritora, psicóloga, mestra em Psicologia Social e doutora pelo Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC, coassistente da Comissão Guarani Yvyrupa. 

“Que cada pessoa tocada por este livro possa ser semente a dar continuidade às lutas coletivas, pois elas, em sua diversidade, são o único caminho para fazermos frente a uma existência monocromática. Que sigamos irredutíveis na afirmação do direito originário e intransferível de toda a gente, humana e não humana, à saúde, à água, ao alimento de qualidade. Pois é este semear o antídoto contra as tentativas de patentearem o mundo. Como diz Vandana Shiva, as sementes são a poesia da vida.”

GENI NÚÑEZ

Vandana Shiva para sairmos do atoleiro capitalista

Nesta quadra da história, a humanidade se depara com grandes dilemas, provocados pelas agressões do capitalismo: temos o problema da fome, da desigualdade social, dos ataques à natureza que geram desastres e mudanças climáticas. E temos as migrações forçadas.

Vandana Shiva tem sido uma intelectual orgânica dos movimentos camponeses da Índia e de todo o mundo ao nos ajudar a entender as causas desses dilemas e a propor soluções, na defesa da soberania alimentar dos povos e do direito ao controle das sementes, assim como no combate aos agrotóxicos que matam a biodiversidade. Suas contribuições teóricas e práticas, das quais Terra viva é mais um poderoso exemplo, são fundamentais para sairmos do atoleiro em que o capitalismo colocou a humanidade.

João Pedro Stédile

Economista e ativista social, membro do coletivo da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 

Olhando para a frente, olhando para trás

Com as sementes, aprendi lições de auto-organização e renovação, diversidade e democracia; com a teoria quântica, aprendi a não separabilidade e a não localidade, indeterminismo e incerteza, complementaridade e não exclusão, potencial e probabilidade. Tanto os quanta como as sementes levam-nos para além do mundo mecanicista, fragmentado, dividido, inerte, linear e determinista da ciência reducionista, para além da industrialização e da mercantilização da vida que estão destruindo o frágil tecido do planeta e da sociedade.

De maneiras diferentes, tanto as sementes como os quanta criam um mundo de relacionamentos, de conectividade, de evolução dinâmica e de potencial sempre novo. Com a semente, podemos retecer a teia da vida em parceria com outras espécies, aumentando ao mesmo tempo seu potencial para satisfazer as necessidades humanas básicas de forma sustentável e equitativa. Nas sementes livres residem a esperança e o potencial para um mundo melhor, e em cada um de nós residem as sementes da nossa humanidade mais profunda e elevada, a que vem do retorno à nossa condição de membros da família terrestre.

[TERRA VIVA, p.25]

“Minhas memórias de infância mais íntimas são as imagens e os sons, os sabores e os cheiros das florestas do Himalaia onde cresci. Eles se tornaram meu berço físico e intelectual.”

VANDANA SHIVA

[TERRA VIVA, p.8]

Árvores da vida: salvando a floresta

A ideia principal das lutas pela conservação das florestas é que as florestas e as árvores são sistemas que sustentam a vida e devem ser protegidas e regeneradas por suas funções biosféricas. A mente da crise, no entanto, vê a floresta e as árvores como ervas daninhas, ou como valor comercial, e converte até mesmo o florestamento em desmatamento e desertificação.

De sistemas de sustento da vida, as árvores são convertidas em ouro verde – todo plantio é motivado pelo mote: “Dinheiro nasce em árvores”. Quer se trate de esquemas como a silvicultura social ou o desenvolvimento de terrenos baldios, os programas de florestamento são concebidos em nível internacional por “especialistas” cuja filosofia de plantio de árvores se enquadra no paradigma reducionista de produção de madeira para o mercado, e nunca de biomassa para manter os ciclos ecológicos ou satisfazer as necessidades locais de alimento, forragem e fertilizante.

[TERRA VIVA, p.40-41]

A semente é a fonte da vida. A semente cria, recria, regenera e se multiplica.

VANDANA SHIVA

[TERRA VIVA, p.83]

Sementes da liberdade

A semente é autopoiese, a poesia da vida, escrita pela orquestra da vida, em autonomia interligada; é um interser auto-organizado, autorregulado e coerente, da molécula à célula, ao organismo como um todo. Ela contém em si o passado da biologia cultural e da evolução. Envolve o potencial futuro de desdobramento da evolução em diversidade, vibração e resiliência.

A semente não é uma máquina nem uma invenção. A abundância e a diversidade das sementes são cocriação e codesenvolvimento de pequenos agricultores, especialmente mulheres, ao longo dos séculos. A indústria química recolhe gratuitamente as sementes dos agricultores e as transforma em sementes que respondem aos insumos químicos, ou as modifica geneticamente com genes tóxicos e as patenteia, tornando-as não renováveis. As patentes de sementes e a criminalização da conservação e da troca de sementes violam os direitos dos agricultores de semear, guardar, trocar, reproduzir e vender suas sementes.

[TERRA VIVA, p.83]

As mulheres, enquanto ativistas, cientistas e acadêmicas, estão à frente da definição de novos paradigmas científicos e econômicos para reaver a soberania sobre as sementes e a segurança alimentar em todo o mundo. Elas estão liderando movimentos para mudar práticas e paradigmas: como cultivamos e transformamos nossos alimentos.”

VANDANA SHIVA

[TERRA VIVA, p.88]

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Mulheres diversas pela diversidade

A filosofia mecanicista, a ascensão do colonialismo, a construção da natureza como matéria inerte a ser explorada como matéria-prima e a violência contra as mulheres com base na ideia de que são bruxas foram processos contemporâneos. Nove milhões de pessoas, a maioria mulheres, foram queimadas como bruxas na Europa. A mesma visão de mundo e as mesmas estruturas que objetificam a natureza e dominam a terra também objetificam as mulheres.

A agroecologia e o ecofeminismo dissipam essas ilusões, reconhecem a criatividade da natureza, das mulheres e dos agricultores, e criam sistemas de conhecimento e estruturas econômicas que funcionam de acordo com as leis ecológicas da natureza e defendem a justiça social e de gênero com base no princípio de que todos os seres humanos são iguais.

[TERRA VIVA, p.119]

“Do campo à cozinha, da semente ao alimento, a força das mulheres é a diversidade, e suas capacidades diminuem quando essa diversidade é destruída. A diversidade é o padrão de trabalho das mulheres, o padrão do plantio e da semeadura de culturas alimentares pelas mulheres e o padrão do processamento dos alimentos pelas mulheres.

VANDANA SHIVA

[TERRA VIVA, p.119]

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A grande captação de água

A privatização da água é justificada pela lógica da “contabilidade total dos custos”, ou seja, que empresas privadas deveriam ser capazes de recuperar o custo total do seu investimento quando as gigantes da água tivessem acesso ao mercado pela privatização da água. […]

Nosso movimento para proteger a água e defender os direitos de todas as pessoas e de todas as espécies à água é chamado Jal Swaraj Abhiyan: o Movimento pela Democracia e pela Soberania da Água. Faz parte do nosso Movimento pela Democracia da Terra, Democracia Viva, um movimento em defesa da vida, da integridade e da santidade dos rios, das nossas culturas e da nossa capacidade de conservar e guardar o nosso precioso patrimônio hídrico comum. Para nós, a democracia da água é necessária para a paz porque os sistemas centralizados e mercantilizados estão gerando uma guerra pela água. Não queremos sangue pelo petróleo nem sangue pela água.

[TERRA VIVA, p.157-163]

“Todas as emergências estão enraizadas na visão de mundo industrial, mecanicista, militarista, antropocêntrica e patriarcal de que os seres humanos são separados da natureza e superiores aos outros seres, que eles podem possuir, manipular e controlar para obter lucro e poder; que os homens são superiores às mulheres; que os brancos são superiores às outras diversas cores da humanidade. As crises globais são interligadas e também enraizadas em um modelo econômico baseado no extrativismo, na ilusão de crescimento interminável e na ganância ilimitada, que sistematicamente viola a integridade das espécies e os limites do ecossistema.”

VANDANA SHIVA

[TERRA VIVA, p.123]

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Não às patentes da vida!

A jornada da minha vida tem sido uma jornada de biodiversidade, de tentar compreender como tudo é interligado pela biodiversidade – nas florestas, nas nossas fazendas, nas nossas entranhas, nas nossas mentes, nas nossas culturas e nas nossas sociedades. […]

Durante mais de quatro décadas trabalhei com a realidade da interconectividade e da inseparabilidade; para mim, proteger a biodiversidade é proteger tanto a integridade da vida quanto os direitos de soberania, o conhecimento e as necessidades das comunidades locais, que têm sido os conservadores e guardiões da biodiversidade. Ao longo dos anos tenho visto mais claramente as limitações e a violência da mente mecanicista, militarista e monocultural, e é por isso que cultivei conscientemente uma biodiversidade da mente, a capacidade de ver os processos da vida em toda a sua complexidade e multiplicidade. Para mim, conhecimento e ação, ciência e ativismo são um continuum.

[TERRA VIVA, p.165]

“A crise de biodiversidade não é apenas uma crise de desaparecimento de espécies que têm potencial para gerar dinheiro para as empresas; é basicamente uma crise que ameaça os sistemas de suporte à vida e aos meios
de subsistência de milhões de pessoas em todo o mundo
.”

VANDANA SHIVA

[TERRA VIVA, p.169]

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Permanecendo vivas

A agricultura intensiva em biodiversidade, livre de combustíveis fósseis e livre de venenos, produz mais nutrição por hectare, ao mesmo tempo que rejuvenesce o planeta. Ao intensificar a biodiversidade e respeitar a lei de retorno da natureza, podemos regenerar a rede trófica do solo, que é a fonte da reciclagem dos nutrientes, inclusive os ciclos de nutrientes que ligam o solo e as plantas à atmosfera. Como tudo está interligado e somos parte da Terra, quando cuidamos dela, também nos preocupamos com o bem-estar humano. É o caminho para a “fome zero” em tempos de mudanças climáticas.

O que os governos precisam fazer é parar de promover o paradigma do petróleo nas escolas e nas universidades e promover uma forma de pensar centrada na Terra e baseada no solo; precisam parar de subsidiar combustíveis fósseis e agricultura industrial e começar a apoiar as comunidades que fazem a transição para sistemas alimentares e agrícolas locais, ecológicos, biodiversos, livres de venenos e de combustíveis fósseis. Cuidar da Terra é ação climática.

[TERRA VIVA, p.197]

Nossa sobrevivência exige que façamos esse novo pacto com a Terra, e entre diversos povos, baseado em uma nova visão de cidadania planetária. Um pacto baseado na reciprocidade, no cuidado e no respeito, no dar e receber, no compartilhamento equitativo dos recursos do mundo entre todas as espécies vivas. Começa por ver e valorizar o solo como uma entidade viva, uma terra viva, cuja sobrevivência é essencial para a nossa.

VANDANA SHIVA

[TERRA VIVA, p.198]

Leituras complementares

Baixe os conteúdos complementares do mês em PDF!

Este mês trazemos um capítulo de Mulheres e caça às bruxas, de Silvia Federici, além de um capítulo de Abundância e liberdade, de Pierre Charbonier e outro de Enfrentando o Antropoceno, de Ian Angus.

Clique nos botões vermelhos abaixo para fazer o download!

Silvia Federici

A caça às bruxas e o medo do poder das mulheres


Pierre Charbonier

A autoproteção da terra


Ian Angus

Ecossocialismo e solidariedade humana

Vídeos

Este mês trazemos o lançamento antecipado do livro com Ana Rüsche, Geni Núñez e João Pedro Stédile, um vídeo com Michael Löwy explicando o que é o Antropoceno e o trailer do documentário As sementes de Vandana Shiva.

Para aprofundar…

Compilação de textos, podcasts e vídeos que dialogam com a obra do mês.

Enfrentando o Antropoceno, de Ian Angus

Abundância e liberdade, de Pierre Charbonier

O ecossocialismo de Karl Marx, de Kohei Saito

Mulheres e caça às bruxas, de
Silvia Federici

O patriarcado do salário, de Silvia Federici

A questão ambiental, Leila da Costa Ferreira

Margem Esquerda #41 | Terra arrasada

Margem Esquerda #29 | Lutas indígenas

Conversa com Bial: Pedro Bial entrevista Satish Kumar e Vandana Shiva, dez. 2023.

Impacto positivo: Vandana Shiva semeando agricultura familiar, mar. 2022.

Mind & Life: Vandana Shiva – Earth Democracy, [em inglês], ago. 2021.

Campfire Podcast: Vandana Shiva | On Cultivating Fearlessness [em inglês], mar. 2024.

Real Organic Podcast: Vandana Shiva: False Claims of The Green Revolution, Then and Now [em inglês], fev. 2024.

Monoculturas da mente, com Vandana Shiva, Fronteiras do pensamento

Entrevista com Vandana Shiva, Fronteiras do pensamento

As mulheres e a construção do novo mundo, Fronteiras do pensamento

Bela Gil & Vandana Shiva – Ecofeminismo, Canal da Bela

Bela Gil & Vandana Shiva – A exploração da natureza, Canal da Bela

Estão tomando conta de tudo o que é vida, com Vandana Shiva, A vida e a natureza

A batalha das sementes“, por Vandana Shiva, Blog da Boitempo, fev. 2024.

A comida é o que liga a terra, as plantas e as nossas entranhas“, por Vandana Shiva, Blog da Boitempo, fev. 2024.

Vandana Shiva e as sementes como poesia da vida“, por Geni Núñez Blog da Boitempo, mar. 2024.

Vandana Shiva: ‘A comida é o maior problema de saúde no mundo‘”, por Araceli Acosta, Brasil de Fato, abril 2018.

O ecofeminismo tem que ser antifascista“, por Vandana Shiva, Instituto Humanitas Unisinos, abril 2023.