Guia de leitura | Tempo esquisito | ADC#32

Tempo esquisito
Maria Rita Kehl

Guia de leitura / Armas da crítica #32

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Tempo esquisito, nova coletânea da psicanalista Maria Rita Kehl, traz para o leitor um conjunto de reflexões e análises feitas durante o período da quarentena da covid-19: “Diante de tanta tristeza, escrever foi uma forma de ocupar o espaço do debate público sem romper o isolamento físico. Uma forma de estar com os outros”, conta a autora no prólogo.

Nos textos, além da questão da saúde pública, Kehl aborda temas recorrentes desde 2019 – início do mandato de Jair Bolsonaro na presidência –, como violência policial, desigualdade social e outros. Há artigos, por exemplo, sobre o linchamento do congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro, em 2021, e também sobre o assassinato de Genivaldo dos Santos, morto pela Polícia Rodoviária Federal, em 2022, em Sergipe. Além, é claro, do olhar sempre voltado à psicanálise, campo principal de atuação de Maria Rita Kehl.

A caixa ainda é acompanhada do livro O que você vê, nova obra do premiado autor e ilustrador Alexandre Rampazo, além de marcador e adesivo em homenagem às lutas LGBTQIAP+.

autora Maria Rita Kehl
apresentação Sérgio Amadeu
orelha e edição Tiago Ferro
diagramação Mika Matsuzake
capa Antonio Kehl
coordenação de produção Livia Campos
páginas 192

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Quem é Maria Rita Kehl?

Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atua, desde 1981, como psicanalista em São Paulo. Entre 2006 e 2011, atendeu na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST, em Guararema (SP). Integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014). Foi jornalista de 1974 a 1981 e segue publicando artigos em diversos jornais e revistas de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Em 2010, ganhou o prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, com a obra O tempo e o cão: a atualidade das depressões publicada por nossa casa. Também pela Boitempo, publicou Videologias: ensaios sobre televisão (em coautoria com Eugênio Bucci), 18 crônicas e mais algumasDeslocamentos do femininoBovarismo brasileiro e  Ressentimento. Pela Boitatá publicou, em parceria com Laerte Coutinho, Neném outra vez! e O disco-pizza.

“Seja o esquecimento uma
obra incompleta. Um dia esse tempo esquisito também será lembrado com saudades.”

MARIA RITA KEHL

As saídas para o Brasil

O tempo esquisito do título atravessa o próprio tecido dos ensaios, num jogo de báscula que remete um texto ao outro, com recuos específicos a diferentes pontos do passado, indo dos dias de pandemia ao lulopetismo, ao governo Dilma, mas também ao abolicionismo, para quando menos esperamos nos lembrar da mola histórica do período em questão: o governo Bolsonaro. Com o perdão da expressão, o balanço é evidentemente dialético. O que nos faz reavaliar não apenas a experiência presente, mas a pretérita, à luz desse ponto de chegada (ou de partida?) que deixa de ser acidente para se transformar em sintoma de uma sociedade que “banalizou a maldade”.

A autora esteve envolvida diretamente em certos acontecimentos discutidos no livro, como a Comissão da Verdade, o que faz ressurgir a difícil relação entre teoria e prática. Despido de ilusões, mas sem jogar a toalha (a todo instante reerguida pela melhor cultura produzida no país), Tempo esquisito coloca questões cabeludíssimas: quem somos nós neste início de século? A experiência brasileira ainda conta? Qual é a função de um intelectual crítico na periferia de um sistema mundial em acelerada decomposição?

Tiago Ferro

Escritor, editor e ensaísta.

“Ao convidar o leitor para o diálogo, Maria Rita amplia o espectro do velho esforço intelectual de encontrar saídas para o Brasil.”

TIAGO FERRO

Lugar de: “Cale-se”!

Uma das razões da minha iniciativa de escrever, em público, para os companheiros do MNU, é que acredito que sejamos iguais também na capacidade de empatia. Não preciso ter sido amarrada ao tronco para ter horror a isso. O país inteiro, até mesmo os indiferentes, sofre de baixa estima por causa de nosso longo período escravista. E nós, brancos antirracistas, somos sim capazes de nos colocar emocionalmente no lugar daqueles que ainda sofrem o que nunca sofremos. No entanto, não tenho dúvidas de que até hoje os descendentes de africanos sofrem, como sofreram no passado, muito mais que os descendentes de europeus em nosso país.

Somos iguais. Não em experiência de vida, nem na cor da pele. Em direitos, em dignidade e, como tento fazer agora, em liberdade de expressão. Eu desrespeitaria os membros do Movimento Negro Unificado se fosse condescendente. Ou se fingisse concordar para não sofrer linchamentos virtuais. A consideração e o respeito é que me autorizam, em casos como esse, a discordar. De igual pra igual. Por isso não aceito que, em função de nossas origens diferentes — e dos privilégios dos quais tenho consciência —, militantes do movimento negro eventualmente possam exigir que eu cale a minha boca.

[TEMPO ESQUISITO, p. 27]

“Este não é um livro de militância política — a não ser na medida em que alguns dos ensaios aqui apresentados tentam resgatar os punti luminosi que ainda fazem de nosso país um lugar viável para se viver e conviver. Os textos aqui reunidos formam uma colcha de retalhos, costurados e remendados a cada vez que a dureza do Real me levou a tentar simbolizá-lo por meio da escrita.”

MARIA RITA KEHL

Pronto, falei

Para Álvaro Santos e Tati Bernardi

Muita gente se pergunta se, nos governos petistas, daria para fazer mais, ou de um jeito diferente. Desconfio que não daria. Não se trata de incompetência do Partido dos Trabalhadores e seus aliados, e sim da força da burguesia, essa sim, organizada desde sempre em torno de seus interesses — com apoio de parte das classes médias arrivistas.

Nem por isso, me desculpem os mais radicais, eu apostaria em uma ditadura do proletariado. Historicamente essas apostas se transformaram em ditaduras, no más. Começaram por oprimir o próprio proletariado e, como sempre, aos poucos a burguesia voltou a comprar seus “direitos”. Por isso discuto as perspectivas da esquerda nos trilhos da democracia. Não dá para ser marxista sem ser materialista, e isso implica tentar entender as condições materiais que determinam o alcance da luta de classes, suas derrotas e os fatores que favorecem suas eventuais vitórias.

[TEMPO ESQUISITO, p. 55]


“Eu sou de esquerda. Mas tenho bode dos esquerdistas que apontam o dedo para o PT sem considerar justamente as condições da luta de classes, neste país apegado ao atraso que os petistas conseguiram, na medida do possível, fazer progredir um pouco.

[TEMPO ESQUISITO, p. 56]

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O vírus mais contagiante

Seria bom escrever que o vírus mais contagiante é o da esperança. Ou o da solidariedade universal. Talvez até seja verdade — haja vista a melhora no ânimo das esquerdas desde o momento em que Lula despontou como candidato apto a derrotar Bolsonaro em todas as pesquisas. Só que não. Mais contagiante que a esperança, que a alegria, que o desejo ou o amor, é o vírus da violência — com sua gama de cepas variantes a provocar vários tipos de sofrimento físico e mental: medo, angústia, desespero, traumas. E mortes, mortes, mortes.

A intensidade dos sintomas depende do CEP do infectado: favelas, periferias e prisões revelam altos índices de contaminação, somados a baixos índices de imunidade. A polícia brasileira, militarizada desde o período da ditadura de 1964-85, e nunca mais desmilitarizada, age como se estivesse em guerra. Fique tranquilo, leitor de classe média, o inimigo não é você. Nem eu. É a população pobre.

[TEMPO ESQUISITO, p. 56]

O mal se banaliza na fala de Bolsonaro a cada vez que ele diz ‘e daí?’, para os efeitos da violência que ele próprio promove. A cada vez que diz ‘não sou coveiro!’, em vez de lamentar a mortandade que, por culpa de seu desleixo em relação às vacinas, hoje coloca o Brasil no topo dos países mais afetados pela covid-19.”

[TEMPO ESQUISITO, p. 80]

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Ressentimento

O mandato de Bolsonaro foi fruto do ressentimento — talvez, por isso, pela primeira vez um presidente em exercício não tenha sido reeleito no Brasil. O ressentimento é uma “paixão triste” (Nietzsche). Não empolga aqueles que não estão ressentidos.

Mas os ressentidos agora estão furiosos. A vandalização do Centro Paulo Freire é só mais uma confirmação da ignorância ativa dessa gente. Não se trata da ignorância daquele que não teve a oportunidade de aprender (e que tentará, se tiver chance), mas daqueles que — como diz o povo — não sabem, não querem saber e têm raiva de quem sabe. Se algumas pessoas merecem a designação de “Mito”, uma delas é Paulo Freire. Não porque pretendesse, vaidosamente, ser mitificado pela genial invenção de seu método de alfabetização de adultos. No entanto, reconhecemos
nele algumas qualidades dos grandes homens que se tornam mitos. Mito é Freire, e não Bolsonaro.

[TEMPO ESQUISITO, p. 89]

“O preço de conviver com o desconhecido não pode ser o desconhecimento de sua existência. O outro é, bem ou mal, um semelhante. Aí reside seu valor, seu poder perturbador e, também, seu caráter problemático.”

[TEMPO ESQUISITO, p. 101]

IMAGEM: SUSANO CORREIA

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O outro

O homem urbano é o homem comum. Para viver com ele de maneira minimamente solidária é preciso reconhecer que somos, todos nós, tão comuns quanto ele. Só assim, em minha banalidade pedestre, estarei disponível para perceber que tudo o que diz respeito a ele também diz respeito a mim.

Os que preferem circular blindados dizem que a vida nas ruas é violenta. Discordo. Andar pelas ruas, de preferência a pé, é um modo de evitar que o medo, cujo principal fundamento é a fantasia, nos torne violentos. Andar pelas ruas nos faz ver os outros de frente, de perto — às vezes, olho no olho. O que pode parecer clichê é na verdade condição de convívio: é necessário olhar nos olhos dos outros.

[TEMPO ESQUISITO, p. 102]

“A triste atualidade de Bacurau, filmado antes da eleição de 2018, reside na constatação de que a grana, hoje, depende mais do que nunca da destruição daquilo que consideramos (estética ou eticamente) belo. Fica difícil imaginar o que poderia ser erguido nesse novo cenário de terra arrasada.”

[TEMPO ESQUISITO, p. 120]

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A família tentacular

A família tentacular contemporânea, menos endogâmica e mais arejada que a família estável no padrão oitocentista, traz em seu desenho irregular as marcas de sonhos frustrados, projetos abandonados e retomados, esperanças de felicidade das quais os filhos, se tiverem sorte, continuam a ser portadores. Pois cada filho de um casal separado é a memória viva do momento em que aquele amor fazia sentido, em que aquele par apostou, na falta de um padrão que corresponda às novas composições familiares, na construção de um futuro o mais parecido possível com os ideais da família do passado.

Ideal que não deixará de orientar, desde o lugar das fantasias inconscientes, os projetos de felicidade conjugal das crianças e adolescentes de hoje. Ideal que, se não for superado, pode funcionar como impedimento à legitimação da experiência viva dessas famílias misturadas, engraçadas, esquisitas, improvisadas e mantidas com afeto, esperança e desilusão, na medida do possível.

[TEMPO ESQUISITO, p. 157]

“A castração simbólica, condição do ato de palavra, é a via para que o obsessivo se liberte do fardo pesado de sustentar com seu sintoma aquilo que, nas relações de poder que costuram o laço social, já fracassou.

[TEMPO ESQUISITO, p. 178]

Leituras complementares

Baixe os conteúdos complementares do mês em PDF!

Este mês trazemos dois textos de Maria Rita Kehl, publicados em seus livros Bovarismo brasileiro e Ressentimento, além de um ensaio de Christian Dunker em Lacan e a democracia.

Clique nos botões vermelhos abaixo para fazer o download!

Maria Rita Kehl

Bovarismo, modernidade a paranoia


Maria Rita Kehl

O ressentimento chegou ao poder?


Christian Dunker

Negacionismos

Vídeos

Este mês trazemos um vídeo e uma aula de Christian Dunker sobre a obra e o pensamento de Maria Rita Kehl e um debate entre a autora da caixa do mês, Guilherme Boulos e Tales Ab’Saber sobre psicanálise e militância.

Para aprofundar…

Compilação de textos, podcasts e vídeos que dialogam com a obra do mês.

O tempo e o cão: a atualidade das depressões, de Maria Rita Kehl

Ressentimento, de Maria Rita Kehl

18 crônicas e mais algumas, de Maria Rita Kehl

Deslocamentos do feminino, de Maria Rita Kehl

Bovarismo brasileiro, de Maria Rita Kehl

Neném outra vez!, de Maria Rita Kehl e Laerte Coutinho

O disco-pizza, de Maria Rita Kehl e Laerte Coutinho

Videologias: ensaios sobre televisão, de Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl

Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, de Christian Dunker

Lacan e a democracia: clínica e crítica em tempos sombrios, de Christian Dunker

Ilustríssima Conversa: Eliane Brum e Maria Rita Kehl, fev. 2023.

Psicanalistas pela democracia: Associações livres, com Maria Rita Kehl e Abrão Slavutzky, ago. 2020.

451 MHz: #39 – Decifra-me ou te desenho, com Maria Rita Kehl e Laerte Coutinho, abril. 2021.

451 MHz: #12 – Cinema, psicanálise, poesia, carnaval, com Maria Rita Kehl e Kleber Mendonça Filho, fev. 2020.

Le Monde Diplomatique: Guilhotina #63: Maria Rita Kehl, mar. 2020.

Ilustríssima Conversa: Brasil sonha em ser outro, mas sem mudar nada, com Maria Rita Kehl, jan. 2019.

Café filosófico: Afeto, psicanálise e política, com Maria Rita Kehl e Vladimir Safatle, mar. 2017.

O que resta da ditadura, com Maria Rita Kehl, Renan Quinalha e Janaína Teles, TV Boitempo.

Por uma cidade sem carros!, com Maria Rita Kehl, TV Boitempo.

O tempo e o cão: a depressão como sintoma social, com Maria Rita Kehl, TV Boitempo.

Melancolia na infância, com Maria Rita Kehl e Julieta Jerusalinsky, TV Boitempo.

Feminismo, feminilidade e a “mínima diferença”, com Maria Rita Kehl, TV Boitempo.

Aceleração e depressão, com Maria Rita Kehl, Café Filosófico.

Maria Rita Kehl, Psicanalistas que falam.

Bovarismo Brasileiro: entrevista com Maria Rita Kehl, Nexo Jornal.

Para conhecer Maria Rita Kehl“, Blog da Boitempo, 2023.

Hipocrisia“, por Maria Rita Kehl, A Terra é redonda, 2022.

Marx feminista?“, por Maria Rita Kehl, Blog da Boitempo, 2021.

Vai pra Cuba!“, por Maria Rita Kehl, A Terra é redonda, 2021.

O viagra do Bozo“, por Maria Rita Kehl, A Terra é redonda, 2021.

O ressentimento no Brasil“, por Maria Rita Kehl, A Terra é redonda, 2020.

Maria Rita Kehl: subversão política e prática“, por Bianca Santana, Revista Cult, 2017.

A mínima diferença“, por Maria Rita Kehl , Blog da Boitempo, 2015.

A edição de conteúdo deste guia é de Isabella Meucci e as artes são de Victoria Lobo.