Guia de leitura | Imediatez | ADC#58

Imediatez, ou o estilo do capitalismo tardio demais
Anna Kornbluh
Guia de leitura / Armas da crítica #58
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Seja você mesmo, sem filtro, fale a real, conte sua própria história, sem artifícios ficcionais ou estéticos, promova uma conexão direta, sem fazer média e sem mediação… Anna Kornbluh identifica que os valores que marcam a paisagem cultural hegemônica do nosso tempo não apenas são enganosos — um estilo caracterizado por uma pretensa “ausência de estilo” —, como são imperativos decalcados da nova fase que o capitalismo ingressou nas últimas décadas.
Atualizando o diagnóstico de Fredric Jameson que marcou época, Imediatez, ou o estilo do capitalismo tardio demais indaga o que vem depois do pós-modernismo e formula uma resposta à altura. Em um momento no qual as urgências econômicas, ecológicas e sociais do presente transformaram em um luxo supérfluo a opacidade das obras de arte, desvios literários e reflexão demorada, este livro aposta no poder de revelação da crítica cultural dialética para reabilitar o espaço da política no século XXI.
Além do livro em edição física e versão e-book, os assinantes do Armas da Crítica de agosto de 2025 receberão adesivo e marcador de páginas, além do livreto Manifesto por uma revolução ecossocialista: romper com o crescimento capitalista, organizado por Michael Löwy e Júlia Câmara.
autor Anna Kornbluh
prefácio à edição brasileira Rita von Hunty
tradução Nélio Schneider
orelha Silvia Viana
edição Artur Renzo
coordenação editorial Thais Rimkus
coordenação de produção Juliana Brandt
assistência editorial Marcela Sayuri
assistência de produção Livia Viganó
preparação Gabriela Marques Rocha
revisão Carolina Hidalgo Castelan
capa Thiago Lacaz
diagramação Antonio Kehl
páginas 272


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Quem é
Anna Kornbluh?
Anna Kornbluh é professora de Inglês na Universidade de Illinois, Chicago, onde pesquisa e leciona sobre literatura, cinema e teoria cultural marxista. Ela é autora de The Order of Forms: Realism, Formalism, and Social Space, Marxist Film Theory and Fight Club e Realizing Capital.
O potencial explicativo dos conceitos
Imediatez, de Anna Kornbluh merece tanto reconhecimento quanto urgência na leitura. Nesta obra, a mediação assume a posição de uma categoria teórica central, e pode ser abreviadamente compreendida em três dimensões: processual, estético-cultural e político-social.
Kornbluh reconstrói os elos de mediação que ligam o avanço da informalidade sobre a força de trabalho global às suas cristalizações culturais nas formas de hiperconectividade, proliferação de “autoidentidades” e multiplicação de discursos ultraindividualistas, que por sua vez podem ser novamente rastreadas nos esvaziamentos institucionais, bem como nos colapsos de modos de vida coletivos/comuns que poderiam fazer frente ao colapso ambiental.
Frente à desintegração das nossas próprias capacidades de imaginar e construir outros futuros, Kornbluh nos convoca a restaurar a mediação como combate à atopia temporal que nossa clausura no presentismo trouxe consigo.
Rita von Hunty
Drag queen, interpretada pelo ator e professor Guilherme Terreri, mantém o canal Tempero Drag no YouTube.


“Theodor Adorno e Max Horkheimer assinalam de modo preciso o “segredo” do estilo: “a obediência à hierarquia social”. No entanto, estilo não é só essa manutenção da hegemonia; como igualmente argumentam, ele abriga a “promessa” de revelar as verdades universais do seu contexto e convocar temas universais.
Por essas e outras razões, a análise do estilo frequentemente intriga críticos e estudiosos de política e do político.”
ANNA KORNBLUH
A artista está presente
Por meio de uma performance que é também uma instalação e que é, acima de tudo, um encontro, a artista Marina Abramović oferece sua mera presença, dez horas por dia, na maioria dos dias da semana, durante três meses, uma arrastadeira customizada assegurando que ela não precisaria se ausentar nem para ir ao banheiro.
A instalação A artista está presente concretiza seu título com exatidão; mais do que um objeto de contornos nítidos ou em forma de mercadoria, o que a estética relacional produz é um evento que desafia a representação: o meio é suprimido.
Na tradição eminente da teoria estética, “mediação” significa o processo ativo de relacionar — conferindo sentido e produzindo significado mediante inserção em um meio; tornando acessíveis em linguagem, imagem e ritmo as abstrações sobrevalentes que de outro modo seriam inacessíveis à nossa percepção sensível — como “justiça” ou “valor”. Agora essa intermediação vacila.


Convencionalmente a arte recorre a um meio discernível e se distancia criativamente da comunicação ordinária ou da funcionalidade banal, fazendo um apelo aos sentidos que muda o rumo do senso comum. Uma pintura não é um modo eficiente de enviar uma mensagem ou alcançar uma meta, mas contemplar a ineficiência do seu caráter indireto pode estimular o pensamento. Na atmosfera atual, no entanto, a arte renuncia ao projeto de mediação que lhe é próprio. Ação direta e literalismo são as técnicas; imersividade e certeza são os efeitos.
O que explica a consistência dessas recentes pressões contra a mediação? O início de uma resposta reside nos pontos comuns entre essas tendências da arte e a dinâmica da produção e circulação capitalistas do século XXI. Pois resulta que a urgência por eliminar o intermediário, em vez de elevar a arte, funde-a com uma torrente avassaladora de outras atividades sociais e comerciais, desde o trabalho temporário até a autopublicação e a corretagem eletrônica.
O grande negócio da “desintermediação” acompanha os acontecimentos estéticos que estamos observando: flexibilidade e fluidez, emanação e conectividade, ação direta e instantaneidade constituem prêmios tanto econômicos quanto artísticos. E é essa confluência que dá coerência a um estilo cultural: o da “imediatez”.
[IMEDIATEZ, p. 19 e 21-22]
“Tudo é arte;
já não há arte.”
ANNA KORNBLUH


Como diz o meme: entra aí, otária
Quanto mais desumanizado nosso mundo se torna, quanto mais flagrantes as falhas da sociedade humana, quanto mais fragmentados os esforços de transformação coletiva, tanto mais se aperta a cilha da imediatez.
A irrefutabilidade material do ecocídio catastrófico, a obsolescência desse capitalismo irracional e pauperizante, a epidemia de depressão e ansiedade, o declínio da expectativa de vida, o abuso doméstico, a violência em massa, o encarceramento em massa e a vulnerabilidade diferenciada por grupos a todos esses terrores (flexionando levemente a definição de racismo de Ruth W. Gilmore) — essas deformidades maculam a sociabilidade existente, engendrando a absorção atomizada e a saída evanescente como únicas alternativas.
Sustar o complexo do ‘eu’ individualizado do contemporâneo privado motivará a convocação de um ‘nós’, de um sujeito mediado da coletividade que urge florescer.
[IMEDIATEZ, p. 33 e 40-41]
A obra de arte na era da proeminência da circulação sobre a produção
A circulação fluida, suave, rápida, seja de petróleo, seja de informação, alimenta a extremização contemporânea do eterno pretexto sistemático do capitalismo: coisas são produzidas com o propósito de serem trocadas; o dinheiro suplanta seu papel como mediador da troca para se tornar seu fim; os meios de circulação se tornam o fim da circulação.
O preço dessa velocidade no presente é uma destruição sem tamanho: vazamentos de oleodutos, carbonização atmosférica, incêndio planetário. E, por sua vez, essas calamidades elementares fazem a imediatez acontecer como estilo cultural. O fluxo como valor essencial para essa estética decorre do fluxo como valor essencial para a economia do século XXI.
[IMEDIATEZ, p. 44]


“A imediatez estiliza a intensificação da circulação e não há nada que circule mais rápido do que imagens.”
ANNA KORNBLUH
A política da cultura algorítmica
Com a consciência algoritmizada, clicar é consumir. Ver é ler. A supervia expressa aclimata faculdades perceptivas à correria, leitura dinâmica, navegação e outras integrações rápidas. O estilo da imediatez incorpora depressa informação acessível na superfície como imanente a si mesma, sem a necessidade de leitura ou interpretação longas e lentas. E a internet como a conhecemos foi construída e regulada para assegurar que essa celeridade do ‘surfar’ esteja em conformidade com o lucro.
As imagens bidimensionais das telas procuram simular a imersividade sensorial da experiência fora da tela […]; a observação de acontecimentos através de imagens em movimento virtualmente coincide com os próprios acontecimentos – quer estejamos gravando a nós mesmos contemplando uma obra de arte famosa em um museu, quer estejamos participando de um protesto, compartilhando um vídeo de violência policial que viralizou. Imagens, cliques, doses de dopamina e sua captura como dados passam a ser as modalidades nas quais vivemos a nossa autopresença. Deslize para a esquerda, deslize para a direita.
Mais de 70% das receitas anuais do Google provêm de anúncios publicitários – em torno de 160 bilhões de dólares em 2019 – e, quer a atividade seja extasiada, quer seja indignada, impressões são impressões. O escaneamento prossegue a todo vapor; tudo são dados.
[IMEDIATEZ, p. 66 e 82-83]


Literatura contra a ficção
O capitalismo tardio demais organizado em torno da circulação não tem tempo para se deter em divagações. Sintonizados com esse estado de coisas, os escritores, no máximo, percebem, como confessa o escritor Karl Ove Knausgård, que “o dever da literatura é combater a ficção”.
A antimediação aglutina o campo literário atual num estilo predominante – um que faz convergir os gêneros até agora distintos de teoria, ficção, memória, ensaio e expressão pessoal informal numa escrita polivalente ubíqua. Azeitados com esse estilo, podemos não conseguir ler de que forma o “auto” de autoficção se inscreve na qualidade automanifestante comum à ideologia governamental do capital humano, como a amorfia englobante da fusão de gêneros carrega, mais do que o gênio de autores, as ruínas submersas de instituições como a universidade ou a editora, como a realidade desfiguradora de pessoas carismáticas sem adornos que sofrem de forma execrável pressagia a distopia que já existe aqui e agora.
A imediatez como estilo literário exerce uma atração incrível, mas ela é muito limitada. Por renunciar ao potencial da escrita de estranhar, abstrair e mediar; por criticar incisivamente a capacidade da escrita de coletivizar e convocar; por esvaziar o poder da escrita de fabricar mais do que o detrito imediatamente tangível da socialidade evacuada, a escrita da imediatez desmorona numa emissão autoidêntica.
[IMEDIATEZ, p. 89 e 139-140]
Streaming como estilo do audiovisual
No campo das imagens em movimento, a imediatez turbilhona “a correnteza [stream]” de conteúdo customizado cada vez mais homogêneo em um ciclo contínuo de absorção desformatada da fluidez de gênero, propelido pelo experimentalismo do tipo “você está aqui”, pelo confessionarismo intimista e por ompantes periódicos. A correnteza [stream] é circulação, é a infraestrutura e a modalidade para a troca de imagens em movimento, e, na era de sua predominância, a torrente faz as próprias imagens retroagirem.
A essência do vídeo como retransmissor instantâneo é emblemática do ciclo imanentizado da realização de valor que tem sido a fonte principal da atividade econômica na estagnação secular, enquanto sua fluidez corre na torrente que mergulha o capitalismo tardio demais em um presente inelutável. Não há futuro, somente fluxo. Na temporalidade da instantaneidade ininterrupta, na pressão fluida da estética da corrente, o que costumava vir depois passou a vir antes: o aparelho circulatório para operar o streaming do conteúdo determina que conteúdo é produzido. O fim é o começo; o colonoscópio é a câmera.
[IMEDIATEZ, p. 143-144]


A sensação de imediatez da televisão é temporal e política, uma propriedade ontológica de sua tecnologia e seu metabolismo do kínesis cinematográfico. O vídeo, então, exacerba essas características, enquanto o streaming, por sua vez, as nivela num atributo hegemônico do meio.
Não vamos mais ao cinema para ver filmes; não portamos mais retratos em nossas carteiras; não nos sentamos mais diante de uma tela única numa hora particular para assistir a nossos programas favoritos, aproveitando o intervalo comercial para dar um pulo no banheiro. Hoje carregamos no bolso telas de vídeo conectadas em rede a enormes arquivos, imergindo-nos em conteúdo de imagem em movimento nos nossos deslocamentos cotidianos, enquanto esperamos em alguma fila, enquanto fazemos malabarismos com três dispositivos ao mesmo tempo no trabalho e em casa. Passamos ao vídeo.
A correnteza não é só como consumimos TV, filmes, jogos e sua crescente indistinção, mas, por isso mesmo, também é o que consumimos.
[IMEDIATEZ, p. 148-150 e 152]
“Diagnosticar o tardio demais à medida que ele se materializa no estilo da imediatez não deveria ser um convite à melancolia, mas, muito mais, uma incitação à cooperação: não é tarde demais – as coisas ainda podem ser menos ruins.”
ANNA KORNBLUH



Leituras complementares
Baixe os conteúdos complementares do mês em PDF!
Este mês trazemos o prefácio de György Lukács à sua Estética; a definição de “Arte” por Raymond Williams, considerada uma das Palavras-chave da crítica cultural materialista; além de um artigo publicado pela Margem Esquerda #23 em que o escritor China Miélville discute o lugar da literatura fantástica e da ficção especulativa dentro da teoria marxista.
Clique nos botões vermelhos abaixo para fazer o download!
György Lukács
Estética: a peculiaridade do estético
Raymond Williams
Arte, palavra-chave
China Miélville
Marxismo e fantasia

Vídeos
Este mês trazemos o lançamento antecipado do livro com Bruna Della Torre, Tiago Ferro e mediação de Matheus Borges; aproveitamos ainda para recordar a conferência “O direito à literatura e a emancipação humana“, uma homenagem de Flávio Aguiar ao grande crítico literário brasileiro, Antonio Candido; e a playlist com a íntegra do curso “Introdução ao pensamento crítico hoje“, realizaddo em 2021 pela Boitempo em parceria com o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.
Além disso, disponibilizamos em primeira mão para assinantes do Armas da Crítica o debate de lançamento de Prisão perpétua, primeiro volume de ensaios do premiado romancista Tiago Ferro, com o filósofo Paulo Eduardo Arantes e mediação de Nathalia Colli.

Para aprofundar…
Compilação de textos, podcasts e vídeos que dialogam com a obra do mês.

Estética, de György Lukács
Palavras-chave, de Raymond Williams
Extinção, de Paulo Arantes
Justiça interrompida, de Nancy Fraser
Ideologia, de Marilena Chaui
Evidências do real, de Susan Williams
Prisão perpétua, de Tiago Ferro
Lacrimae Rerum: ensaios sobre cinema moderno, de Slavoj Žižek
Marx e Engels como historiadores da literatura, de György Lukács
As artes da palavra, de Leandro Konder
Dez lições sobre estudos culturais, de Maria Elisa Cevasco
Margem esquerda #36 | Capitalismo digital

Rádio Boitempo: Coleção Marx-Engels #1: a atualidade de O CAPITAL, com Leda Paulani, jul. 2023.
Rádio Boitempo: Megafone #11: “Trabalho e (des)valor no capitalismo de plataforma, com Ricardo Antunes, out. 2023.
Rádio Boitempo: Megafone #6: PALAVRAS-CHAVE, de Raymond Williams, com Rita von Hunty, jul. 2022.
Rádio Boitempo: Megafone #10: COLONIALISMO DIGITAL, com Walter Lippold, set. 2023.
Future Histories International: Anna Kornbluh on Climate Counteraesthetics [sobre a prevalência da imediatez na arte e a necessidade de contraposições estéticas no enfrentamento à crise climática, em inglês], com Anna Kornbluh, ago. 2025.
New Books in Critical Theory: “Immediacy, Or the Style of Too Late Capitalism” (Verso, 2023) [em inglês], com Anna Kornbluh e David Maruzzella, mar. 2024.

Literatura na periferia hoje, com Adenildo Lima, Helena Silvestre e Maria Vilani Gomes, TV Boitempo.
Literatura e políticas da memória, com Afonso Cruz, TV Boitempo.
Fantasia e utopia a literatura e a transformação do mundo, com Fábio Fernandes, Ronaldo Bressane e Cynara Menezes, TV Boitempo.
On “Immediacy Or, The Style of Too Late Capitalism” (2024) [em inglês], com Anna Kornbluh, Theory underground.
Colapso ambiental e lógica capitalista, com Virginia Fontes, TV Boitempo.
Playlist: Seminário Internacional “A atualidade de György Lukács”, com José Paulo Netto, Miguel Vedda, Ester Vaisman, Vladimir Safatle, Carolina Peters e Ronaldo Vielmi Fortes, entre outros, TV Boitempo.

“Imediatez e autoficção: a literatura sob o capitalismo de plataforma“, por Bruna Della Torre, Blog da Boitempo, fev. 2025.
“Capitalismo comunicativo e a forma revolucionária“, por Jodi Dean, Blog da Boitempo, jul. 2021.
“Entrevista com Anna Kornbluh“, por Antonio Barros, Carbono (UFRGS), dez. 2024.
“A imaginação apocalíptica“, por Bruna Della Torre, Blog da Boitempo, jul. 2025.
“Maior que a vida: notas sobre a morte de Fredric Jameson“, por Slavoj Žižek, Blog da Boitempo, out. 2024.
“Anitta é Larissa: a verdade segue sendo um momento do falso“, por Douglas Barros, Blog da Boitempo, abr. 2025.
“Redes sociais, disciplina e manipulação“, por Mauro Iasi, Blog da Boitempo, mai. 2025.
“KORNBLUH, Anna. Immediacy, or the Style of too Late Capitalism“, resenha do livro por Alysson Oliveira e Matheus Camargo Jardim, Aletria, set. 2024.
“Matar a charada da reificação contemporânea“, por Silvia Viana, Blog da Boitempo, jul. 2025.
“Anna Kornbluh e o potencial explicativo dos conceitos“, por Rita von Hunty, Blog da Boitempo, jul. 2025.
A edição de conteúdo deste guia é de Carolina Peters e as artes são de Mateus Rodrigues.


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