Crianças, mudanças climáticas e diálogos socioambientais: por um futuro no presente
Foto: Bruno Perez/Agência Brasil
Por Thais Caramico
Enchentes, secas prolongadas, queimadas, ondas de calor e a crescente escassez de água configuram um presente marcado por incertezas ambientais e sociais. Entretanto, mesmo diante dessa urgência, as infâncias quase nunca ocupam o centro do debate climático. São evocadas como promessa de futuro quando, na realidade, já são profundamente impactadas no agora.
Segundo a Unicef, uma em cada três crianças no mundo sofre com escassez de água; 1 bilhão vive em áreas de risco climático extremo; mais de 40 milhões de meninos e meninas brasileiros estão expostos simultaneamente a mais de um risco ambiental; e mais de 1 milhão tiveram seus estudos interrompidos em 2024 devido a eventos climáticos extremos. A infância, que menos contribui para a crise, é a que mais sente seus efeitos.
É fundamental lembrar que crianças e adolescentes vivem realidades muito distintas, e a crise climática aprofunda essas desigualdades. Infâncias indígenas, quilombolas, ribeirinhas, periféricas e negras estão entre as mais impactadas, enfrentando perda de moradia, interrupção da escola e outras consequências do racismo ambiental e da pobreza multidimensional. Em eventos extremos, muitas são afastadas de suas famílias, ficam sem acesso adequado à saúde e tornam-se mais vulneráveis à exploração e a traumas.
Neste mês em que organizações, movimentos sociais e líderes mundiais se reúnem em Belém para a COP30, ganham força iniciativas como a COP das Crianças, do Instituto Alana, que insiste na premissa de que a crise climática é também uma crise dos direitos da infância. Recolocar crianças e adolescentes no centro da agenda climática significa garantir que sejam ouvidos sobre os temas que atravessam suas vidas, reconhecer suas perguntas e seus receios e incorporá-los na formulação das respostas possíveis. A escola, como afirma o próprio Alana, ocupa um papel estruturante nessa transformação, pois é nela que a educação para a ação climática se torna política pública, compromisso ético e prática cotidiana.
Educar para o clima, segundo especialistas dos direitos da infância, exige que a aprendizagem ambiental seja contínua, integrada e baseada na relação direta com o território. Significa criar escolas mais verdes, que ofereçam contato com a natureza, que promovam experiências concretas com o vivo, que incentivem a leitura crítica do território em que estão inseridas e que estimulem a participação das crianças nas decisões que moldam a vida coletiva. Significa também articular currículo e cuidado, ciência e sensibilidade, informação, saberes tradicionais e vínculo, sempre em diálogo com os dilemas contemporâneos. A partir de 2025, as escolas brasileiras passaram a trabalhar em sala de aula os temas mudanças do clima e proteção da biodiversidade, conforme diretriz estabelecida pela Lei nº 14.926. A educação climática e ambiental, portanto obrigatória no currículo brasileiro em acordo com a BNCC, não deve ser entendida como disciplina isolada, mas como modo de compreender o mundo.
Quando a infância é colocada no centro, a escola se transforma em um dos mais importantes instrumentos de adaptação e mitigação da crise climática, promovendo um pacto entre gerações para garantir que exista futuro e que esse futuro aconteça no presente. É nesse contexto que a literatura infantil assume um papel decisivo, pois, ainda que não tenha a obrigação de resolver os problemas do planeta, ela pode transformar nossa maneira de olhar para ele. Ela não traduz catástrofes, mas convoca sensibilidade. Não ensina dados, mas cria vínculos. Ao apresentar rios que falam, florestas que respiram, animais que pensam, árvores que se comunicam e outras narrativas decolonizadoras, menos antropocêntricas e mais ecocêntricas, que deslocam a centralidade das histórias hegemônicas e abrem espaço para outros modos de compreender a vida e o universo, a literatura amplia o campo perceptivo e convida a criança a imaginar-se parte de um tecido vivo e interdependente.
Na última edição da newsletter Papo para Boitatá, apresentamos uma curadoria de livros da Boitatá que conversam diretamente com as questões ambientais e climáticas de nosso tempo. Não são “manuais de urgência”, mas obras artístico-literárias densas, divertidas, diversas e afetivas, capazes de abrir espaços de conversa, escuta e imaginação. Em A jabota poliglota e Teko hypy, a origem do mundo na visão dos mbyá-guarani, a defesa dos territórios indígenas aparece como experiência viva.


Em O invasor e A cidade dos animais, o desequilíbrio ecológico ganha forma por meio de narrativas invertidas, ora com o humano invadindo a floresta, ora com a floresta invadindo a cidade, criando um espelho que convida leitores jovens a refletirem sobre presença, ausência, responsabilidade e pertencimento.


No par formado por O rio dos jacarés e O gambá que não estava, a literatura desestabiliza a hierarquia entre humanos e bichos, questionando a noção de propriedade dos recursos naturais. Já em Mamãe vai para a Antártida e As viagens extraordinárias/A viagem de Roque, a ciência surge como aventura, descoberta e pergunta, incentivando as crianças a desenvolver tanto curiosidade informada quanto sensibilidade poética para compreender o mundo físico por meio de deslocamentos.





Finalmente, em Revolução no galinheiro e O urso que não era, a crítica à exploração capitalista aparece com humor e imaginação, na forma como organizamos trabalho, tempo e produção em um sistema predatório.


Esses livros não pretendem oferecer respostas prontas, e talvez justamente por isso sejam tão queridos e importantes. Ler com as crianças sobre rios, florestas, animais e cidades – sabendo que tudo é natureza, nós somos natureza – é também criar oportunidades para discutir pertencimento, cuidado e responsabilidade coletiva. Não se trata de anunciar o fim, mas de pensar modos de adiar, mitigar e transformar este futuro, apresentando movimentos, possibilidades, projetos bem-sucedidos e pessoas comprometidas com as histórias que ainda queremos contar.
A infância não é um período ingênuo ou protegido. Todos os temas considerados difíceis atravessam a vida das crianças, que, uma vez no mundo, estão sujeitas aos acontecimentos. É por isso que conversar sobre meio ambiente é tão essencial quanto falar sobre separação, perdas, racismo ou gênero. Esse diálogo pede honestidade e cuidado, sempre atentos às diferentes fases, camadas e contextos de cada criança.
A arte preserva, nos adultos e nos pequenos, a capacidade de sentir, pensar e transformar o mundo. Sensibilizar para o clima é, em última instância, educar para perceber o que está vivo. É religar o humano aos outros seres. É garantir o direito de toda criança crescer em um planeta habitável, com rios que correm, florestas que respiram e cidades que acolhem. Talvez seja isso que a literatura com agência da natureza mais ofereça: a possibilidade de imaginar o mundo não como algo a ser salvo, mas como algo a ser vivido com mais atenção, cuidado, reciprocidade e ternura.
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Thais Caramico é mãe, jornalista, especialista em livros para crianças e jovens pela Universidade Autônoma de Barcelona e mestra em Artes pela USP, onde pesquisou a relação entre literatura de infância e meio ambiente na perspectiva ecocrítica. É sócia-fundadora do Estúdio Voador, idealizadora da @bibliotecadefora e, desde 2025, integra a equipe da Boitatá como editora de educação.
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Com uma visão abrangente, a obra apresenta as ideias mais importantes sobre agroecologia, produção associada, ecossocialismo e pedagogia socialista no Brasil e no mundo, juntamente com práticas de movimentos sociais, enfatizando o trabalho do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST.
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