Zohran Mamdani é um de nós 

Foto: Dmitry Shein (via WikiCommons)

Por James Neimeister

Zohran Mamdani é um de nós. Há cerca de 9 anos, eu me filiei aos Socialistas Democráticos dos Estados Unidos (DSA, na sigla em inglês), junto com milhares de outras pessoas — muitos deles jovens, desapontados e indignados com o sistema político estadunidense, em busca de uma alternativa. No mesmo ano em que Donald Trump foi eleito presidente pela primeira vez, Bernie Sanders, o senador independente e socialista, conquistou mais de 13 milhões de votos nas primárias presidenciais do Partido Democrata.

Foi num âmbito de derrota que fomos reconstruindo das cinzas o que é hoje a maior organização socialista na história estadunidense, com mais de oitenta e cinco mil membros. Nesse meio tempo, pouca gente acreditaria que, num dia não tão distante, um de nós iria conquistar mais de um milhão de votos e virar prefeito da maior cidade do país.

Nesse caminho, entre dúvidas e controvérsias, temos discutido a relação entre DSA e Partido Democrata, levantado questões sobre coalizão e independência programática e a relação entre DSA, seus candidatos e mandatos — ao longo dos anos, sem resolver definitivamente essas questões, tanto Zohran quanto todos nós aprendemos muito.

Em 2017, a seção nova-iorquina do DSA votou para apoiar duas candidaturas a vereador: a do pastor luterano palestino Khader El-Yateem, que competiu nas primarias democratas num bairro com grande população de imigrantes árabes e muçulmanos; e a do professor Jabari Brisport, que disputou as eleições gerais como candidato do Partido Verde e numa linha independente socialista. Ambos os candidatos perderam. O pastor El-Yateem fez quase 3.000 votos contra 3.600 de seu adversário; e o professor Brisport, 9.000 votos contra 21.000.

Apesar da derrota, militantes do NYC-DSA ganharam experiência, organizando uma forte campanha de rua, formando novos laços nas comunidades e ganhando novos membros — um deles foi Zohran Mamdani, que havia atuado como voluntário na campanha do pastor El-Yateem.

Naquela época, Seth Ackerman publicou o texto “A Blueprint for a New Party” na revista Jacobin, que até hoje é referência nos debates sobre o DSA e o Partido Democrata. Ele investiga a pergunta clássica: Por que não existe um partido trabalhista nos Estados Unidos, algo que torna o país quase único entre as democracias do mundo? O fato é que o bipartidismo estadunidense é batizado pela lei e peça cultura política. A eleitora democrata média odeia partidos alternativos por serem “sabotadores que só ajudam os republicanos”. Até a constituição estadual de Nova York garante que a gestão das eleições seja controlada por oficiais nomeados pelos líderes dos dois partidos políticos, como se fossem os únicos possíveis.

No texto, Ackerman propõe que candidatos trabalhistas concorram nas primárias democratas, usando a linha que eles têm quase garantida e levando a luta de classes com eles em um eventual mandato, a fim de ampliar uma base socialista. Em média, as primárias são muito mais fáceis de ganhar em termos financeiros e em termos do número de votos necessários, o que dá mais chances pras campanhas insurgentes ganharem com um número menor de eleitores.

“A nossa situação é mais parecida com a dos partidos da oposição em países autoritários, como Rússia e Singapura”, conclui Ackerman. Eu diria que é até mais parecida com a situação da oposição consentida e a oposição antiautoritária dentro do MPB durante a ditadura militar brasileira. Amando ou odiando, e tendemos odiar, estamos juntos num único partido legalizado.

Sem contar toda a história do resto dos últimos 9 anos, essa continua sendo a posição mais ou menos de consenso dentro do DSA no geral, e NYC-DSA, em particular. Em 2018 na cidade de Nova York elegemos a senadora estadual Julia Salazar e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, atraindo uma nova onda de filiações ao DSA, ao redor dos EUA. Em 2019, fizemos campanha a favor de uma série de reformas que fortaleciam o controle sobre o preço dos aluguéis contra a forte oposição dos proprietários e do então governador Andrew Cuomo. Em 2020 elegemos mais quatro legisladores estaduais, sendo um deles Zohran. Logo depois das eleições, lançamos uma campanha para taxar os ricos e financiar políticas públicas para enfrentar a pandemia e a crise econômica. Em 2021 apoiamos seis candidatos a vereador e elegemos dois. Em 2022 apoiamos 11 candidatos, defendendo 6 e ganhando mais um mandato, numa campanha focada no combate à crise climática. Em 2023 aprovamos a lei de energia pública de Nova York, obrigando a autarquia de hidroelétricas do estado a investir diretamente em parques solares e eólicos.

Não é à toa que um grupo de apenas seis deputados e três senadores estaduais, numa legislatura com centenas de membros, conseguiu fortalecer o controle de aluguéis, taxar os ricos e impulsionar o investimento público em fontes energéticas renováveis. Enquanto NYC-DSA, a nossa estratégia é baseada no aumento de pressão dentro e fora do legislativo. Com uma bancada disciplinada e ágil, influenciando outros legisladores progressistas e reformistas a apoiar nossas pautas, com campanhas de rua em apoio a essas ações e lançando candidaturas contra nossos opositores — ganhando e perdendo —, vimos nosso poder crescer.

Durante esse tempo, Zohran serviu informalmente como líder da bancada, sustentando nossas maiores conquistas e lidando com as contradições e controvérsias internas. A relação entre o DSA e seus mandatos, já que DSA não é um partido legalizado nem a única força política no campo progressista, além do fato de que nossos mandatos são ganhos na linha Democrata, é uma questão complicada. Nos momentos de maior tensão em nosso campo, Zohran sempre escutava os seus colegas e o movimento. Ele sempre utilizou sua voz para lembrar a bancada e o nosso movimento do que a gente tem em comum, de que apesar das contradições, nós temos que seguir em frente unidos, porque temos um mundo a ganhar.

Essa campanha começou com escuta — com Zohran entrevistando eleitores e perguntando por que tantos nova-iorquinos haviam votado em Donald Trump. E a resposta foi simples: foi Trump quem mais havia falado sobre os problemas atuais da população, principalmente sobre o custo de vida. E o custo de vida virou o tema principal da campanha, com uma agenda simples de entender e lembrar: tarifa zero nos ônibus, congelamento de aluguéis e cuidado infantil universal.

Durante essa campanha, eu até me questionava: por que a esquerda não critica ele mais? Na minha vida política curta, eu tenho observado que a esquerda tende a ser mais cética e crítica de quem exerce o poder. E com razão. Uma ou outra vez, o Zohran deu respostas e tomou posições que não agradaram todos no nosso movimento e fora dele, por exemplo: Desde o começo, ele falou que, se fosse eleito, ele não iria retirar orçamento da polícia. Recentemente, ele prometeu manter Jessica Tisch, herdeira de uma família bilionária e punitivista que também supervisionou uma queda no crime e combateu a corrupção no alto escalão da força, como Comissária do Departamento de Polícia de Nova York. Perguntado inúmeras vezes sobre Israel, Zohran tende a responder que o Estado de Israel tem direito de existir — como um Estado democratico com direitos humanos para todos.

Muitas vezes durante esta campanha, Zohran citou o ex-prefeito Ed Koch, que falou “If you agree with me on 9 out of 12 issues, vote for me. If you agree with me on 12 out of 12 issues, see a psychiatrist” [se você concorda comigo em 9 de 12 assuntos, vote em mim. Se concorda em todos eles, procure um psiquiatra]. Zohran ganhou tanta nossa confiança porque ele vem falando desde o começo que, ao ser eleito, teria que governar uma cidade diversa, complexa, e lidar com contradições impossíveis de resolver. Dizendo desde o começo que ele não está acima de qualquer crítica, mas sem tergiversar quanto ao tema básico da campanha, o custo de vida, ele inspirou e apaziguou até as pessoas mais céticas que eu conheço.

Em nossa curta história como movimento, nunca elegemos um prefeito e nunca exercemos o poder executivo. E nunca estivemos tão preparados quanto agora. Num cenário em que o governo Trump sequestra nossos vizinhos imigrantes, provoca aumentos surreais no custo de vida e começa novas guerras, não tem como não disputar o poder. Temos que construir um movimento majoritário.

Ontem, Zohran ganhou mais de 1 milhão de votos, a maior votação obtida por qualquer prefeito em Nova York desde 1965. Durante a campanha toda, mais de 100.000 voluntários tocaram mais de 3 milhões de portas, escutando e conversando com o povo.

Zohran é um de nós, sim. Mas ele é só um, e nós somos milhões.

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James Neimeister é membro do DSA e foi diretor da campanha da vereadora Alexa Avilés em 2021.


Prisão perpétua: e outros escritos, de Tiago Ferro
Entre 2016 e 2024, período de turbulência política, social e econômica não só no Brasil, mas no mundo todo, Tiago Ferro escreveu uma série de textos que perpassam o horror e a distopia contemporânea. Prisão perpétua traz ao leitor 27 escritos que vão de ensaios e intervenções a resenhas e experimentações ficcionais.

“Sem requentar dramas existenciais de um século atrás, mas em um clima que não deixa de ser nauseabundo, estamos diante de uma prosa perspicaz que faz um interessante movimento de báscula entre resignação e inconformismo, vindo de uma voz que é ora de um crítico, ora de um narrador — no qual nunca sabemos ao certo se podemos confiar.”
— Felipe Catalani

“Não surpreendem o som e a fúria da prosa de ensaio reunida nesta Prisão perpétua. Transitando aos trancos e relâmpagos entre o diário de bordo e a montagem, juízos finais e paráfrases, alguma crítica literária e cultural comprimida entre imprecações bíblicas dirigidas à conjuntura de fim de linha em que passamos a viver. Numa palavra, um belo pandemônio.”
 Paulo Arantes, autor de O novo tempo do mundo

O texto que dá título ao livro é uma reflexão sobre sua chegada a Princeton, Estados Unidos, cidade onde o autor passou um ano com sua família por conta de uma bolsa de estudos. A experiência do olhar estrangeiro e periférico perpassa outras passagens da obra. O alcance e o fortalecimento da extrema direita no Brasil e no mundo, a precariedade da vida e do trabalho e o aprofundamento da economia neoliberal são também assuntos recorrentes.

Os livros, a música e outras manifestações culturais marcam parte da obra. Ferro passa pela produção de nomes como Chico Buarque, Bob Dylan, Fernando Pessoa, Roberto Schwarz e Judith Butler e os relaciona a temas contemporâneos.

“Estamos diante de uma forma curiosamente outra, que faz da atomização característica de nosso tempo um método de aproximação com a realidade, emprestando elementos da reflexão subjetiva à reflexão objetiva, nem sempre nessa ordem. Dessa outra forma surgem o risco e o desnível de impressões que funcionam como força ordenadora de textos mais longos, como também explodem pequenos fragmentos herméticos, capazes de exigir do leitor tanto a referência teórica quanto a vivida, para o complemento dos recortes”, escreve Nathalia Colli no posfácio.


Margem Esquerda #45 | A crise do imperialismo
As guerras tarifárias de Trump colocaram o Brasil no centro de um debate sobre imperialismo contemporâneo, soberania e os rumos da extrema direita global. Mas quanto há de método e quanto há de desespero nas bravatas do magnata em seu retorno à presidência dos Estados Unidos? Qual é o lugar dos EUA no tabuleiro geopolítico? O termo “imperialismo” ainda carrega poder explicativo nesse quadro? A quantas anda a relação entre Estados nacionais e corporações transnacionais diante da ascensão das big techs? Como interpretar o caldo de conflagração social desse hegemon em declínio ainda assombrado pela desindustrialização? Essas são algumas das questões enfrentadas pelo dossiê de capa desta Margem Esquerda, coordenado por Luiz Felipe Osório e Tiago Ferro. O entrevistado desta edição é o mais importante historiador marxista em atividade no Brasil hoje.

Fernando Novais repassa sua trajetória intelectual e discute os atuais desafios historiográficos do materialismo histórico. Na seção de artigos, Marcos Queiroz faz um balanço da última década do movimento negro brasileiro à luz da obra de Frantz Fanon; Nathalia Colli escreve sobre a trilogia da vida operária de Roniwalter Jatobá; Pierre Madelin pensa a atualidade do conceito de ecofascismo diante da ascensão da extrema direita mundial. Juliana Paula Magalhães contribui com o texto “Pachukanis e Stutchka: forma jurídica e luta de classes”. 

A trajetória exemplar de Amílcar Cabral é tema de um poderoso discurso de Walter Rodney recuperado na seção “Documento”. Francis Vogner dos Reis assina uma comovente “anti-homenagem” ao espírito crítico de Jean-Claude Bernadet e Emir Sader presta tributo ao humanismo de Pepe Mujica. Quatro publicações recentes são foco de apreciações críticas de Natan Oliveira, Frederico Daia Firmiano, Matheus Camargo Jardim e Cecília Brancher Oliveira: O essencial de Marx e Engels, organizado por Marcello Musto, A educação ambiental anticapitalista, de Henrique Novais, Imediatez: ou o estilo do capitalismo tardio demais, de Anna Kornbluh, e Pensar após Gaza, de Franco “Bifo” Berardi. Com ensaio visual da artista plástica australiana Illma Gore e poesia do cantor e compositor Woody Guthrie, a edição conta ainda com ensaio de Michael Löwy.


Lançamento da revista Margem Esquerda #45. Debate com Carlos Eduardo Martins, Cecília Brancher e Daniel Maurício de Aragão. Mediação de Luiz Felipe Osório.


Tiago Ferro, autor de Prisão perpétua e outros escritos, fala ao programa Mundo Político, da TV ALMG, sobre como os chamados “mass shootings“, fenômeno cada vez mais comum nos EUA, revelam o avesso do sonho americano. O autor analisa ainda o governo Trump e as recentes perseguições às universidades, além de comentar os impactos dessas políticas no Brasil.


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