Telemedicina e a mercantilização da saúde: do discurso inclusivo à exclusão algorítmica

Telemedicina imaginada em 1925. Imagem: Wikimedia Commons

Por Rafael Cavalcante Lima

Necropolítica e mercantilização da saúde no Brasil

O Brasil apresenta uma contradição estrutural em seu sistema de saúde: criou um dos sistemas públicos mais abrangentes do mundo — o SUS —, mas o sub financia de forma sistemática e deliberada. Apesar do mandato constitucional de acesso universal, o gasto privado supera o público: cerca de 60% dos gastos totais vêm do setor privado, enquanto apenas 40% são direcionados ao SUS, que cobre não só consultas e procedimentos para toda a população, mas também vigilância epidemiológica, regulação e uma imensa gama de serviços.

O SUS é uma conquista civilizatória única: universal, integral e gratuito, em um país continental e profundamente desigual. É o maior sistema público de saúde do mundo, atendendo mais de 200 milhões de pessoas, realizando desde consultas básicas até transplantes, distribuindo medicamentos e sustentando uma rede de vigilância reconhecida globalmente. O subfinanciamento não é um acidente técnico, mas uma política deliberada de necropolítica: o Estado decide, através da escassez, quem terá direito a uma vida digna e quem será empurrado para a morte lenta. O setor privado não é um “mercado natural”: é um projeto de classe que, valendo-se do próprio aparato estatal, cria artificialmente a carência no público para lucrar com sua superexploração.

Essa estratificação fica explícita: o setor privado, com 57% dos gastos, atende pouco menos de 30% da população; o público, com 43%, atende mais de 70%. É a materialização de um apartheid social: saúde plena para poucos, saúde precarizada para muitos. Mesmo em plena pandemia, quando seria racional fortalecer o público, as famílias brasileiras continuaram gastando mais com saúde privada do que o Estado investia coletivamente.

A fuga do público e a violência epistêmica do mercado privado

A deterioração sistemática do SUS alimenta a corrida desesperada ao setor privado. As promessas são sedutoras: rapidez, tecnologia de ponta e inovação. Mas o acesso é rigidamente filtrado. O caso de um pai que tentou contratar seguro saúde para o filho autista expõe a perversidade: após relatar com transparência as terapias necessárias, o plano negou cobertura por “alto custo potencial”. A sugestão velada da corretora: “não fale sobre o caso na próxima vez”.

Esse episódio não é um acidente ou paradoxo, mas o funcionamento normal do capitalismo de seguros. Seguradoras lucram pela exclusão, e entrevistas ditas “humanizadas” são, na prática, instrumentos de violência epistêmica — ou seja, transformam o conhecimento íntimo sobre a saúde em dados usados contra quem mais precisa. O próprio ato de revelar o cuidado vira critério de exclusão. A lógica é clara: os mais vulneráveis são descartados para que a máquina do lucro continue girando.

Telemedicina na pandemia: expansão de mercado travestida de “democratização”

A pandemia acelerou a digitalização da saúde. O Dr. Consulta ampliou a oferta de atendimentos populares, enquanto startups como a Alice emergiram como supostas “revoluções inclusivas”. Essa empresa surgiu prometendo “democratização”, cuidado integral, atendimento 24h e inteligência artificial que reduz custos. Foi celebrada pela Fast Company como símbolo de inovação latino-americana.

Mas o discurso precisa ser desmascarado. A telemedicina não “democratiza”: ela expande mercados privados para territórios antes não lucrativos. O que muda é a interface: consultas via app, algoritmos de triagem, personalização vendida como “humanização”. Na prática, as mesmas barreiras de renda e perfil permanecem. Representando o capitalismo de base popular ou o capitalismo de vigilância sofisticado, em ambos, a lógica é mercantil: vender saúde como serviço a consumidores ideais, enquanto populações vulneráveis seguem descartadas.

A lógica excludente das healthtechs: solucionismo e capitalismo de vigilância

A Alice e modelos de negócio semelhantes são exemplo da captura capitalista das promessas da tecnologia. Sob a lente anarcoprimitivista, trata-se da crença no solucionismo: a ideia de que aplicativos podem resolver problemas sociais complexos, como se a garantia de saúde universal fosse apenas um desafio técnico, apagando determinantes sociais como fome, precarização do trabalho e racismo estrutural.

Sob a lente pós-anarquista, vemos o alinhamento com o capitalismo de vigilância, como defende Shoshana Zuboff em seu livro A era do capitalismo de vigilância. O produto não é só o plano de saúde: são os dados comportamentais minerados, capazes de prever hábitos de saúde, consumo de medicamentos e adesão a tratamentos. O que se vende não é apenas cuidado, mas a própria predição algorítmica da vida. Nesse cenário, a saúde vira commodity de dados, e os corpos se tornam matéria-prima de acumulação.

O apartheid algorítmico do design “centrado no usuário”

As healthtechs anunciam produtos “centrados no usuário” e “humanizados”. Mas o Human-Centered Design (HCD) que aplicam nesses contextos é parte do problema. O HCD otimiza experiências individuais sem questionar o sistema que as produz. Um aplicativo de consultas pode ser “fácil de usar”, mas se atende apenas ricos jovens digitalizados, é cúmplice da exclusão. A materialização perfeita disso: design elegante para privilegiados, sustentado pelo apartheid algorítmico que descarta corpos custosos.

O Society-Centered Design (SCD) propõe a inversão radical: perguntar não apenas “quem é meu usuário?”, mas “quem é sistematicamente excluído desse sistema?”. Um design verdadeiramente emancipatório precisa avaliar como um produto afeta o comum, as redes de cuidado e os direitos coletivos. O HCD, aplicado à saúde, é design como instrumento de segregação.

SCD e a construção de comuns digitais

O Sistema de Crítica à Dependência (SCD) propõe alternativas radicais para a telemedicina:

Autonomia sobre dados: informações de saúde tratadas como bem comum, armazenadas em cooperativas de dados sob controle das próprias comunidades.

Tecnologia convivial: ferramentas que ampliam a autonomia das pessoas para cuidarem umas das outras, não que criam dependência de corporações. Inspiradas nas ideias de Ivan Illich em A expropriação da saúde: nêmesis da medicina.

Economia solidária: plataformas cooperativas, sem intermediação especulativa, que reduzem custos e fortalecem vínculos comunitários.

Cuidado integral: saúde não reduzida a métricas médicas, mas vinculada a habitação, alimentação, trabalho digno e ambiente saudável.

O SCD não é sugestão, mas necessidade política urgente: romper com a lógica do lucro e recolocar a saúde digital como comum democrático.

PPPs: a privatização disfarçada de parceria

As chamadas “parcerias público-privadas” no SUS são apresentadas como solução pragmática, mas sob análise anarquista, são privatizações camufladas: o Estado financia com dinheiro público a lucratividade privada. O setor privado fica com os casos simples e baratos; o SUS, com os caros e complexos. É a socialização do risco e a privatização do lucro.

A retórica da parceria encobre a realidade: são mecanismos de financeirização da saúde, drenando recursos públicos e ampliando a dependência de corporações. Um modelo verdadeiramente centrado na sociedade exigiria gestão comunitária radical, e não conluio entre capital e Estado.

Healthtechs no Brasil: inovação para quem?

O Brasil tem centenas de startups de saúde, mas a maioria inova apenas em modelos de captura de valor, não em inclusão social. Inovam em algoritmos de triagem, escalabilidade dos aplicativos e monetização de dados, não em justiça. Exceções como o Partners in Health (PIH) mostram que é possível subordinar tecnologia a princípios de equidade, priorizando quem mais precisa.

Mas mesmo projetos como “Philips + SAS Brasil” levantam dúvidas: trata-se de transformação comunitária ou filantropia corporativa que mantém a dependência tecnológica? Um olhar SCD exige sempre a pergunta: quem controla a tecnologia, quem se beneficia e quem permanece excluído?

Conclusão: da exclusão algorítmica ao comum digital

O caso do pai e seu filho autista sintetiza o problema: o sistema usa a transparência como armadilha e nega cuidado a quem mais precisa. Healthtechs sofisticam essa exclusão através de algoritmos, vendendo “humanização” enquanto aprofundam o apartheid digital.

Precisamos abandonar a falácia do Design Centrado no Usuário. O futuro da saúde digital depende de um Design Centrado na Sociedade, que coloque a coletividade e os vulneráveis no centro. Só assim a telemedicina pode ser comum digital, não mercadoria.

Enquanto a lógica de mercado ditar quem vive e quem morre, “inovação” será apenas exclusão eficiente. Romper com essa lógica é tarefa urgente — e condição para uma saúde verdadeiramente democrática.

Referências

Agência Gov (2024). “Nova parceria do SUS com rede privada para reduzir filas começa em agosto“.

Brasil de Fato (2024). “Brasil manteve baixo investimento público em saúde mesmo durante a pandemia de covid-19“.

Conselho Nacional de Saúde (2024). “Para além de garantir financiamento, é preciso diminuir o gasto privado em saúde“.

Crypto ID (2019). “Brasil possui 353 startups voltadas para saúde“.

Eretz (2022). “Startups causam impacto social na área de saúde“.

Evgeny Morozov (2014).To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism. New York: PublicAffairs, 2014.

Fast Company (2025). Ranking das empresas mais inovadoras da América Latina.

IEPS (2024). “Saúde Privada no Brasil: estudo inédito do IEPS e Umane analisa setor e suas relações com o SUS“.

IPEA (2024). “Gasto Público em Saúde“.

Ivan Illich (1975). A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

Juliana Oliveira Figueiredo, Nilia Maria de Brito Lima Prado, Maria Guadalupe Medina e Jairnilson Silva Paim (2024). “Gastos público e privado com saúde no Brasil e países selecionados“. SciELO Brasil.

Ministério da Saúde (2024). “SUS impulsiona política industrial com R$ 120 bilhões em parcerias público-privadas nos próximos anos“.

Saúde Amanhã – Fiocruz (2024). “Dados sobre gastos da Saúde mostram uma forte estratificação da sociedade brasileira“.

Saudebusiness (2024). “HIS 2024: parcerias público-privadas impulsionam inovação e acesso no SUS“.

Shoshana Zuboff (2021). A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

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Rafael Cavalcante Lima é UX designer e cientista de dados.


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