Florestan Fernandes e o trotskismo

Imagem: Biblioteca Digital Curt Nimuendajú
Por Michel Goulart da Silva
Em 2025, completam-se cinquenta anos do lançamento do livro A revolução burguesa no Brasil, de Florestan Fernandes. Um dos aspectos que chamam a atenção nessa obra, publicada em 1975, é sua aproximação com o trotskismo — aproximação que se explica pela própria trajetória do autor. Na década de 1940, o sociólogo participou das fileiras do Partido Socialista Revolucionário (PSR), pequena organização trotskista dirigida por Hermínio Sacchetta. O próprio Florestan destacou a importância da militância no grupo para sua formação:
“A militância que ficava ao meu alcance, não era intensa nem profissional. Contudo, o fato de pertencer aos quadros da IV Internacional abriu-me novas responsabilidades e esperanças, outros horizontes. Vargas e sua ditadura eram um alvo imediato. A revolução proletária fixara-se como o objetivo essencial”.1
Essa aproximação com o trotskismo ficou evidente em diversos textos de Florestan Fernandes, inclusive em sua principal obra. Na bibliografia de referência citada em A revolução burguesa no Brasil, observa-se a presença do livro de Trótski sobre a luta dos comunistas e a ascensão do nazismo na Alemanha, traduzido no Brasil por Mario Pedrosa (um dos fundadores da corrente trotskista no Brasil). Observa-se também a menção ao economista belga Ernest Mandel, destacado dirigente trotskista, com seu Tratado de economia política; ao trotskista argentino Jorge Abelardo Ramos, com sua História da nação latino-americana; e ao trotskista mexicano Adolfo Gilly, com seu clássico A revolução interrompida. Florestan Fernandes também menciona um artigo do intelectual trotskista Michael Löwy. Entre os autores brasileiros, são citados estudos de alguns pesquisadores que militaram nas fileiras do trotskismo, como Moniz Bandeira, Boris Fausto e Edmundo Muniz.
Essa aproximação com o trotskismo se evidencia ainda mais quando se analisa o conteúdo de sua obra. Florestan Fernandes, assim como os trotskistas, “apontou para as particularidades do desenvolvimento econômico, que se daria de forma diferente dos esquemas clássicos, colocando para os revolucionários, em seu contexto, tarefas diferentes daquelas a que se propunham”2. O sociólogo entendia que “o sistema colonial forçava um tipo de acomodação que retirava da grande lavoura qualquer poder de dinamização da economia interna”3. Portanto, no conjunto,
“[…] o contexto socioeconômico em que se projetava a grande lavoura no sistema colonial anulou, progressivamente, o ímpeto, a direção e a intensidade dos móveis capitalistas instigados pela situação de conquista animados durante a fase pioneira da colonização. Isolado em sua unidade produtiva, tolhido pela falta de alternativas históricas e, em particular, pela inexistência de incentivos procedentes do crescimento acumulativo das empresas, o senhor de engenho acabou submergindo numa concepção de vida, do mundo e da economia que respondia exclusivamente aos determinantes tradicionalistas da dominação patrimonialista.”4
Essa forma de organização da economia impactou no desenvolvimento da burguesia:
“[…] várias burguesias (ou ilhas burguesas), que se formaram em torno da plantação e das cidades, mais se justapõem do que se fundem, e o comércio vem a ser o seu ponto de encontro e a área dentro da qual se definem seus interesses comuns. É dessa debilidade que iria nascer o poder da burguesia, porque ela impôs, desde o início, que fosse no terreno político que se estabelecesse o pacto tácito (por vezes formalizado e explícito) de dominação de classe.”5
Como consequências dessas particularidades, formou-se uma burguesia que se mostrava incapaz de construir uma perspectiva estratégica autônoma. Nas palavras de Florestan Fernandes, formou-se “uma burguesia dotada de moderado espírito modernizador e que, além do mais, tendia a circunscrever a modernização ao âmbito empresarial e às condições imediatas da atividade econômica ou do crescimento econômico”6.
Essa passagem evidencia o uso da ideia de desenvolvimento desigual e combinado por parte de Florestan Fernandes. Trótski, no que se refere ao desenvolvimento desigual e combinado, afirmava que “o desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada induz, forçosamente, que se confundam nela, de uma maneira característica, as distintas fases do processo histórico”. Ainda segundo ele, o desenvolvimento desigual “não se revela, em nenhuma parte, com maior evidência e complexidade do que no destino dos países atrasados”, afinal, “açoitados pelo chicote das necessidades materiais, os países atrasados se veem obrigados a avançar aos saltos”. Em síntese, quando remete ao desenvolvimento desigual e combinado, Trótski está “aludindo à aproximação das distintas etapas do caminho e à confusão de distintas fases, ao amálgama de formas arcaicas e modernas”7.
Trótski chama a atenção, por um lado, para os diferentes ritmos de desenvolvimento do capitalismo dos países. Por outro, afirma que esses países — com suas diferentes formas de desenvolvimento — se relacionam na economia internacional, estabelecendo ou consolidando relações de dominação. Na economia mundial relacionam-se países mais industrializados e outros onde ainda predominam formas de organização econômica baseadas na agricultura, gerando situações de dominação e exploração entre os países.
Essas ideias tinham sido expressas, ainda na década de 1930, pela primeira geração de trotskistas brasileiros. Suas análises demonstraram que as relações de produção capitalistas se desenvolveram numa interrelação entre as condições econômicas e políticas nacionais e internacionais. Por meio desse processo, “o Brasil integra-se cada vez mais à economia mundial e entra na esfera de atração imperialista. Com a Grande Guerra e o protecionismo, o crescimento industrial acentuou-se, complicando as relações de classe e os problemas decorrentes”8. Nesse sentido, os trotskistas brasileiros afirmavam que:
“A penetração do imperialismo é um revulsivo constante que acelera e agrava as contradições econômicas e as contradições de classe. O imperialismo altera constantemente a estrutura econômica dos países coloniais e das regiões submetidas à sua influência, impedindo o seu desenvolvimento capitalista normal, mal permitindo que esse desenvolvimento se realize de maneira formal nos limites do Estado.”9
Essas elaborações visivelmente influenciaram a interpretação desenvolvida por Florestan Fernandes, entendendo que a análise não deveria se prender a esquemas pré-definidos. O sociólogo discutiu a particularidade e consequente fraqueza da burguesia em suas obras, na contramão do stalinismo, que procurava enquadrar em esquemas preconcebidos o desenvolvimento econômico do Brasil. Conforme escreve Florestan Fernandes em A revolução burguesa no Brasil, além de não existirem “as condições e os processos econômicos que davam lastro ao funcionamento dos modelos econômicos transplantados nas economias centrais”, boa parte desses modelos econômicos “não tinha por meta criar processos econômicos de desenvolvimento interno análogo aos que eram produzidos pela integração das economias centrais”10. Como consequência,
“[…] a modernização econômica associada à extinção do estatuto colonial e à implantação de um Estado nacional independente não tinha por fim adaptar o meio econômico brasileiro a todos os requisitos estruturais e funcionais de uma economia capitalista integrada, como as que existiam no Europa.”11
Esse desenvolvimento econômico tinha como objetivo atender aos interesses econômicos que prevaleciam nas relações do Brasil com os países dominantes, despojando, conforme aponta em outro texto, “a revolução burguesa dos atributos que definiram a sua grandeza histórica na evolução da civilização moderna”12. Florestan Fernandes observa ainda que “os países capitalistas retardatários possuem certas peculiaridades e se defrontam com um novo tipo de capitalismo no plano mundial”13. No caso brasileiro, se moldou ao tipo de capitalismo que nasceu da confluência da economia de exportação com a expansão do mercado interno, processo no qual:
“[…] a burguesia atinge sua maturidade e, ao mesmo tempo, sua plenitude de poder sob a irrupção do capitalismo monopolista, mantidas e agravadas as demais condições, que tornaram a sociedade brasileira potencialmente explosiva, com o recrudescimento inevitável da dominação externa da desigualdade social e do subdesenvolvimento.”14
Como consequência, a burguesia brasileira se mostrou incapaz de conciliar o modelo de desenvolvimento capitalista que se impôs de fora para dentro com os velhos ideais da revolução burguesa. Para Florestan Fernandes, no que se refere aos fatores que influem no desenvolvimento, “essa combinação se processa em condições econômicas e histórico-sociais específicas, que excluem qualquer probabilidade de ‘repetição da história’ ou de ‘desencadeamento automático’ dos pré-requisitos do referido modelo democrático-burguês.”15
Mostra-se, assim, não apenas o combate de Florestan Fernandes contra a estratégia etapista do stalinismo como sua convergência com algumas das elaborações trotskistas. Esse elemento pode ser destacado se levarmos em contra o seu pioneirismo nos estudos sobre o desenvolvimento da revolução burguesa em diálogo com a primeira geração de trotskistas brasileiros. São aspectos que ajudam na compreensão da dinâmica econômica do Brasil e na relação de dominação estabelecida com o imperialismo.
Notas
- FERNANDES, Florestan. Depoimento sobre Hermínio Sacchetta. In: O caldeirão das bruxas e outros escritos políticas. Campinas, Pontes, 1992, p. 76. ↩︎
- SILVA, Michel Goulart da. “Florestan Fernandes e o marxismo”. Boletim de Conjuntura (BOCA), Boa Vista, v. 3, n. 9, p. 01–06, 2020, p. 3. ↩︎
- FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5ª ed. São Paulo: Globo, 2005, p. 42. ↩︎
- Ibid., p. 43. ↩︎
- Ibid., p. 240. ↩︎
- Ibid., p. 242. ↩︎
- TROTSKY, Leon. História da revolução russa. São Paulo: Sundermann, 2007, p. 21. ↩︎
- ABRAMO, Fúlvio; KAREPOVS, Dainis (orgs.). Na contracorrente da história: documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940. São Paulo: Editora Sundermann, 2015, p. 67-8. ↩︎
- Ibid., p. 68. ↩︎
- FERNANDES, Florestan. Op. cit, p. 112-113. ↩︎
- Ibid., p. 114. ↩︎
- Ibid., p. 118. ↩︎
- Ibid., p. 258. ↩︎
- Idem. ↩︎
- Ibid., p. 240. ↩︎
***
Michel Goulart da Silva é doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e servidor técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).
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