Che Guevara e o Brasil

Imagem: WikiCommons.

Por Luiz Bernardo Pericás

A partir do triunfo da revolução cubana, jornalistas, políticos, artistas e intelectuais brasileiros começaram a afluir à ilha em número cada vez maior, para ver de perto os desdobramentos daquele que foi um dos eventos mais importantes da América Latina no século passado. O enorme interesse gerado pela luta guerrilheira e pelas possibilidades de mudanças abertas com a vitória dos rebeldes levou muitos compatriotas a visitar o país, a se reunir com suas principais lideranças e a divulgar, em livros, artigos e congressos, os feitos dos barbudos (e, também, pouco tempo depois, o processo de construção do socialismo no país). Durante a ditadura militar no Brasil, Cuba seria vista como um fanal revolucionário e seu exemplo inspiraria centenas de jovens a seguir o caminho da luta armada. 

Vale lembrar que já em janeiro de 1959, Armando Gimenez, repórter dos Diários Associados, visitou a “mayor de las Antillas”, participando da Operação Verdade e do Fórum de Debates sobre a Reforma Agrária, em Havana. Ele entrevistou na ocasião o “líder máximo” e o Che, e escreveu o primeiro livro de um brasileiro sobre aquele momento histórico transcendente, Sierra Maestra: a revolução de Fidel Castro, publicado pelas Edições Zumbi.1 O sucesso foi tal que a obra esgotou rapidamente, com uma segunda tiragem saindo da gráfica na sequência.

Em 1959, por sua vez, o dirigente comunista Pedro Pomar esteve na ilha, onde permaneceu por quarenta dias. Ao retornar, produziu artigos para o semanário Novos Rumos e participou de palestras em defesa da revolução.2 Pomar seria incisivo em seu apoio a Cuba:

“Tudo que diz respeito à revolução cubana, a seus problemas e dificuldades, em uma palavra, a seu destino, interessa profundamente às forças patrióticas e populares do Brasil. A revolução cubana e autenticamente popular golpeia frontalmente o imperialismo americano, eleva a consciência nacional do povo cubano e dos povos irmãos do continente e demonstra a pujança e o crescimento da luta libertadora e democrática na América Latina. O exemplo da revolução cubana alenta a luta que travamos pela emancipação nacional e social de nosso povo, é parte integrante dessa luta e como tal deve também ser por nós defendida e ajudada… Devemos manifestar por todos os meios a nosso alcance, decidido apoio à causa do povo cubano, como se fosse a nossa própria causa, e repudiar provocações, sabotagens e manobras contra os interesses do povo cubano. É tempo de ajudarmos, através de um amplo e ativo movimento de solidariedade, as reivindicações de soberania e de anti-intervenção, de progresso e de reformas sociais do combativo e glorioso povo irmão.”3

Logo depois do triunfo da revolução — ou seja, vários meses antes do artigo de Pomar —, Roberto Morena publicava “A América se liberta” no periódico Voz Operária, no qual dizia que:

“[…] a fuga protegida do conhecido gangster sindical cubano Eusébio Mujal não permitiu que os trabalhadores desse país irmão pudessem julgar seus crimes. Ele e seu grupo espalharam o terror por muitos anos contra dirigentes sindicais honestos e combativos. Ainda não se sabe quantos foram imolados à sanha desses bandidos, acobertados pela ditadura policial de Batista e pelos dirigentes continentes da ORIT e os da CIOSL.”

Ele continuava:

“Assistimos as denúncias dos trabalhadores cubanos em todos os congressos continentais e internacionais contra a ação desses bandidos, descritos palidamente num filme americano Sindicato de ladrões. Mujal e companhia sempre gozaram da proteção dos dirigentes sindicais norte-americanos de seu estilo, acobertados sob a bandeira do anticomunismo, arvorada pelos que dominam a AFL-CIO, donatários da ORIT e CIOSL.

Mujal fez-se rico. Segundo se sabe, riquíssimo. Roubou dinheiro dos trabalhadores. Extorquia os empregadores e o governo. Seu grupo se apoderou do Palácio dos Trabalhadores, construído pelas subvenções diárias dos operários cubanos organizados na antiga Confederação dos Trabalhadores de Cuba. Agora está a caminho da Argentina e naturalmente irá dar seus préstimos aos que esmagam os trabalhadores da nossa irmã República Argentina. 

Necessitamos conhecer profundamente a tragédia e o sofrimento dos nossos irmãos trabalhadores de Cuba. Por muitos anos foram vítimas da tirania de Machado. Libertaram-se na luta heroica contra esse sanguinário ditador. Tiveram um período de liberdade. Realizaram ações heroicas. Souberam sempre prestar a maior solidariedade a todos os povos que lutavam pela sua liberdade. Ajudaram o povo da Venezuela, da Colômbia e de muitas pequenas repúblicas das Antilhas e da América Central. Depois caíram nas mãos do ditador corrupto e assassino Batista. Agora retornaram a desfrutar da liberdade. Mas muitos de seus melhores líderes e dirigentes não poderão gozar dessa redenção. 

Os trabalhadores brasileiros e suas organizações sindicais não podem ficar indiferentes à luta dos trabalhadores de Cuba e de seus companheiros da Argentina. Estamos assistindo às maquinações dos imperialistas norte-americanos em querer criar um clima de malquerença com os que libertaram a terra de Martí e Julio Antonio Mella, com o propósito de impedir que eles possam realizar seu programa de libertação do país das garras do imperialismo americano, que não satisfeito de ganhar grandes fortunas à custa dos trabalhadores de Cuba, ainda os assassinaram com as bombas napalm.

Precisamos conhecer bem a história das lutas dos trabalhadores de Cuba para não permitir que elas se reproduzam em nossa terra. Aqui não devem vicejar os Mujal. Para isso necessitamos defender cada vez mais a liberdade sindical, a unidade e democracia em todas as entidades sindicais.

O movimento sindical do Brasil tem um grande dever: auxiliar aos demais a se libertarem dessa tirania. Sem liberdade e sem democracia o movimento sindical não pode participar ativamente da luta de emancipação de nossas pátrias e do crescente bem-estar dos nossos povos. 

Urge uma reunião continental dos trabalhadores e do movimento sindical da América para unir todas as forças do trabalho, criando um plano de ação, um compromisso, para uma ajuda mútua, entre todos os povos da América que querem se libertar do jugo imperialista, lutar por sua emancipação e pela defesa permanente de sua liberdade. É chegada a hora para essa realização. As forças libertadoras se agigantam e já vai ficando pequeno o terreno para os Batistas, Pinillas, Mujal e companhia.”4

Naquele mesmo ano, Fidel Castro visitou o Brasil, última parte de uma viagem de 25 dias no continente americano. Na ocasião, Carlos Marighella, outro importante líder pecebista, organizou eventos de solidariedade à revolução cubana e delegações político-culturais à ilha caribenha.5 Ou seja, foram vários os intelectuais e dirigentes comunistas que imediatamente se pronunciaram em apoio à revolução, nomes importantes como Pomar, Marighella, Luiz Carlos Prestes, Roberto Morena, Rui Facó, Ana Montenegro e tantos outros.6

A presença de cubanos no Brasil, de fato, despertou grande curiosidade dos leitores. O periódico Novos Rumos, em sua edição de 3 a 9 de abril de 1959, por exemplo, estampou a manchete “Hóspedes do povo — os barbudos cubanos”, cuja matéria informava que “um grupo de oito soldados de Fidel Castro chega terça-feira ao Rio, procedente de Montevidéu”. Dizia o texto que eles haviam partido de Havana e estavam percorrendo a América Latina, tendo como objetivo “explicar as origens e o desenvolvimento do movimento revolucionário chefiado por Fidel Castro”. Continuava: “Sua chegada ao aeroporto do Galeão despertou grande interesse, particularmente entre a juventude estudantil, que recebeu os soldados cubanos com flores, cartazes de boas-vindas e expressões de entusiasmo”.7 Na coluna do Barão de Itararé (na página 9 daquele mesmo número), por sua vez, com seu tom corriqueiramente humorístico, o jornalista comentaria que:

“[…] a diretoria do Sindicato dos Barbeiros deu uma mancada, propondo-se a raspar gratuitamente a barba dos revolucionários cubanos que andam percorrendo os países latino-americanos, explicando os objetivos da revolução libertadora. A proposta foi inoportuna e impertinente, e não deveria ser formulada pelos representantes da digna e humilde classe, tão necessitada de bons ensinamentos revolucionários.”8

Como mais um efeito da visita dos cubanos ao Rio de Janeiro, na edição de número 7, sairia outra reportagem, “O mundo já não é um quintal do imperialismo: o tenente Benitez fala sobre Cuba durante e depois da revolução”, matéria de Renato Arena, que entrevistou Orlando Benitez em seu quarto em um hotel de Copacabana.9

O próprio Fidel veio ao Brasil no final de abril. Esteve em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Brasília (ainda em construção). A primeira parada foi em São Paulo (por causa de um problema no aeroporto do Galeão, o Bristol Britannia da Cubana de Aviación teve de pousar em Congonhas). Daquela cidade, foi para Brasília a convite do presidente Juscelino Kubitschek. Na futura capital federal, ainda não inaugurada, visitou o Palácio da Alvorada com JK. De lá, seguiu para Buenos Aires e, na sequência, após trânsito por Montevidéu, se dirigiu para o Rio de Janeiro, com sua comitiva de 50 pessoas, aonde chegou no dia 5 de maio.10 Hospedou-se no Hotel Excelsior, em Copacabana. Visitou o Batalhão de Guardas, encontrou-se com o ministro da Guerra — o marechal Teixeira Lott — e almoçou com Juscelino e o chanceler Negrão de Lima no Palácio Laranjeiras, um acontecimento que contou com as presenças do vice-presidente João Goulart; dos senadores Filinto Müller e Benedito Valadares; do embaixador do Brasil em Cuba, Vasco Leitão da Cunha; do embaixador cubano no país, Rafael Garcia Bárcena; do deputado Cid Carvalho; do ministro Aluísio Napoleão; do advogado, jornalista e presidente da ABI, o carioca Herbert Moses; e do escritor Antônio Olinto. Na ocasião, Fidel expressou entusiasticamente seu apoio à “Operação Pan-americana” proposta por JK. Além disso, se reuniu com os deputados Carlos Lacerda, San Tiago Dantas, Magalhães Pinto e Neiva Moreira, assim como com o prefeito de São Paulo, Ademar de Barros, que aparentemente manifestou seu desacordo com os fuzilamentos na ilha. Naquela noite, ainda compareceu a uma festa na casa de José e Maria do Carmo Nabuco.11 Castro também daria uma entrevista coletiva na Associação Brasileira de Imprensa (ABI),12 ocasião em que falou extensamente sobre a reforma agrária13 (em torno de 500 jornalistas estiveram presentes em sua conferência). Isso para não falar de conversas que teve com alguns artistas, como Ivon Curi e Angela Maria, que visitaram o líder cubano. Castro também participou do quadro “Esta é a sua vida”, do programa de televisão semanal de Jota Silvestre, da TV Tupi. E em 7 de maio, ainda discursou por duas horas e dez minutos em um comício organizado pela União Nacional dos Estudantes (UNE), onde debateu com a juventude local,14 sendo ovacionado pelo público presente.15 Naquele mesmo dia, ele retornaria a Cuba.16 Vale assinalar que a redação de Novos Rumos foi visitada, durante aquele período, por Lionel Soto, do diário Hoy.17

Em agosto, as movimentações de setores progressistas brasileiros continuaram. Nesse sentido, a matéria “Apoio dos brasileiros à causa cubana”,18 do mesmo jornal, dizia que “na próxima quarta-feira, dia 26, às 20 horas, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa”, seria realizada uma manifestação pública de apoio do povo brasileiro a Cuba. Na ocasião, fez uso da palavra o deputado Coutinho Cavalcanti e o jornalista Luciano Martins, que haviam regressado recentemente daquele país. Já “Solidariedade ao povo cubano” informava que o deputado Salvador Loco (PTB), havia se pronunciado na Câmara Federal, na sexta-feira anterior, em discurso enérgico contra a intervenção americana em Cuba, quando denunciou os Estados Unidos e prestou solidariedade à ilha. Na mesma época, em Porto Alegre, a propósito da intervenção americana contra aquele país, o Movimento Estudantil Nacionalista do Rio Grande do Sul divulgou uma nota que “manifesta a sua solidariedade à luta que o povo cubano através do governo revolucionário de Fidel Castro, trava contra certos grupos econômicos norte-americanos que chegam até a armar aviões com o objetivo de bombardear Havana”. Afinal, “esta posição dos estudantes nacionalistas gaúchos faz-se necessária quando se leva em conta que a luta dos povos latino-americanos tem as mesmas causas e procura alcançar os mesmos objetivos — emancipação econômica e política dos países deste hemisfério”.19 

O fato é que os acontecimentos em Cuba seriam narrados e divulgados amplamente no Brasil tanto pela grande imprensa20 como pelos periódicos comunistas Voz Operária Novos Rumos. Foram muitas as matérias sobre diversos aspectos do que ocorria na ilha naquele primeiro ano após o triunfo da revolução, com destaque para artigos sobre Che Guevara, o PSP, Nicolás Guillén, Juan Marinello, Blas Roca, a reforma agrária, o papel dos Estados Unidos e a situação da economia cubana, entre outros assuntos.21

Daí em diante, a quantidade de concidadãos que visitaria Cuba só iria aumentar. É o caso de Jânio Quadros — então candidato à presidência da República —, que no final de março de 1960 foi a Havana, quando teve a oportunidade de conversar longamente com Fidel, com o Che e com outras autoridades locais. A comitiva, que incluía os escritores Fernando Sabino e Rubem Braga, ficou cinco dias em Havana. No grupo, também constavam nomes conhecidos, como Márcio Moreira Alves, Hélio Fernandes, Murilo Melo Filho, Villas-Bôas Corrêa, Afonso Arinos, Adaucto Cardoso, Quintanilha Ribeiro, Castilho Cabral, José Aparecido, Murilo Costa Rego, Cid Sampaio, Seixas Dória, Paulo de Tarso, Juracy Magalhães Júnior, João Ribeiro Dantas, Augusto Marzagão e Francisco Julião, entre outros.22

Em dezembro, foi a vez do intelectual pecebista Elias Chaves Neto ir àquela capital, onde cumpriu uma intensa agenda de atividades,23 retornando ao Brasil em janeiro de 1961, mesma época em que o poeta e ensaísta Jamil Almansur Haddad andava pelo país, experiência que daria origem ao livro Revolução cubana e revolução brasileira24. Já Almir Matos, após percorrer a ilha conhecendo fábricas e cooperativas, lançou, em maio seguinte, seu Cuba: a revolução na América25.    

As visitas de brasileiros continuavam e se intensificavam. Uma delegação com mais de noventa pessoas, presidida pelo historiador paulista Caio Prado Júnior, chegou ao país em 30 de dezembro de 1961, justo a tempo para assistir às comemorações de aniversário da revolução em 1º de janeiro de 1962. O périplo de ônibus feito pelo grupo, que incluiria cidades como Camagüey, Santiago, Santa Clara e Holguín, duraria aproximadamente cinco semanas.26

Outra viagem naquele ano foi realizada por Nery Machado, que em seguida escreveu Cuba, vanguarda e farol da América (livro que saiu da gráfica em dezembro de 1962, mas com data de publicação de 1963), incluindo um prólogo de Gondin da Fonseca.27

Entre julho e agosto de 1962, nova comitiva foi à ilha, com a participação do então repórter do Diário de Notícias, Luiz Alberto Moniz Bandeira, que teve uma conversa reservada com Che Guevara por várias horas28 (naquele mesmo ano sairia pela Editora Brasiliense Vais bem, Fidel, de Jurema Finamour, com prefácio de Leonel Brizola).

Diversos comitês de apoio a Cuba (com participantes tão distintos como trotskistas, comunistas, petebistas, pessebistas, acadêmicos, sindicalistas e estudantes) começaram a ser constituídos no Brasil. É só lembrar do Encontro Estadual dos Amigos de Cuba, em julho de 1961, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo (faziam parte da Comissão Organizadora deste evento o historiador Caio Prado Júnior e o físico Mário Schenberg, ambos militantes do PCB); do Encontro Nacional da mesma entidade, no Sindicato dos Ferroviários da Estrada de Ferro Leopoldina, no Rio de Janeiro em 26 de março de 1963; ou do Congresso Continental de Solidariedade a Cuba, que ocorreu logo em seguida em Niterói, entre 28 e 30 de março, encabeçado por Luiz Gonzaga de Oliveira Leite e que teve como presidentes de honra Alexandre Barbosa Lima Sobrinho, Francisco Julião, Oscar Niemeyer, entre outros.29 Na ocasião, Luiz Carlos Prestes, “o cavaleiro da esperança”, disse que “após a vitória da Revolução Cubana todos nós latino-americanos participamos da emulação revolucionária: todos nós desejamos ser o segundo país socialista da América. É o que nós, brasileiros, também desejamos!”30 Prestes, naquele ano, visitaria a ilha, onde concederia uma longa entrevista ao jornal comunista Hoy.31

É importante lembrar que o então ministro de Indústrias de Cuba esteve brevemente no Brasil em 1961, para se reunir com o presidente Jânio Quadros, com quem conversara em Cuba. O Che partiu do Uruguai, após alguns dias de acalorados debates na reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social (CIES), em Punta del Este, onde cumprira — naquele balneário e em Montevidéu — uma agenda cheia de discursos, reuniões políticas, coquetéis e entrevistas para a imprensa estrangeira. No Uruguai, o jornalista brasileiro Flávio Tavares, na época com 27 anos e trabalhando como correspondente do jornal Última Hora, acompanhou de perto as atividades do Che, tanto durante as sessões como nos intervalos da conferência, e se tornou bem próximo a ele, chegando a jantar duas vezes com o comandante no hotel onde se hospedava, tirando dezenas de fotos na ocasião32 (anos mais tarde, Tavares participaria da luta armada, seria preso e torturado, e se tornaria um dos prisioneiros libertados em troca do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick — sequestrado por organizações guerrilheiras —, sendo levado em seguida, com outros militantes soltos na época, para o exílio no México). No Uruguai, Guevara teria uma conversa privada com Leonel Brizola.33 E daria uma entrevista para vários repórteres brasileiros, entre os quais, Frederico Heller, do jornal O Estado de S. Paulo, Hermano Alves, do Correio da Manhã e Tarso de Castro, do Jornal do Dia, de Porto Alegre.34 Antes de retornar a Havana, contudo, Guevara ainda tinha dois compromissos importantes: encontrar-se secretamente com o presidente Frondizi, na Argentina e em seguida, partir para o Brasil, onde seria recebido por Jânio.35

O avião da Cubana de Aviación pousou na Base Aérea de Brasília às onze e meia da noite, do dia 18 de agosto de 1961. A viagem de Guevara à capital brasileira fora decidida pouco tempo antes e era basicamente de “cortesia”. O encontro serviria, supostamente, para estreitar os laços de amizade entre os dois países. E, também, para discutir a situação e o destino de 168 exilados cubanos, que se encontravam na residência da Embaixada brasileira em Havana. O ato mais importante e simbólico da visita, contudo, seria a condecoração do Che com a “Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul”, a mais alta comenda do governo.36

Após uma reunião fechada com Jânio, no dia seguinte à sua chegada, Guevara concedeu uma entrevista a jornalistas e, junto com o encarregado de negócios de Cuba e alguns membros de sua delegação, foi para um almoço com o prefeito do Distrito Federal, Paulo de Tarso, na residência oficial do Riacho Fundo. Em seguida, deu uma volta de helicóptero sobre a capital e seguiu para a Base Aérea. Seu avião decolou às três horas da tarde, com destino a Havana.37

A visita do Che durou menos de dezesseis horas, mas deixaria suas marcas. A condecoração de Guevara foi a última solenidade de Jânio no Palácio do Planalto. Poucos dias depois, ele renunciou. Os militares, por sua vez, depois do golpe de 1964, em outro gesto simbólico, iriam retirar aquela comenda do famoso revolucionário.38

O biógrafo do Che, Pierre Kalfon, por sua vez, afirma que:

“[…] em 17 de março de 1964 [o Che] viaja a Genebra para representar Cuba na primeira Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). No avião se senta a seu lado o jovem embaixador (vinte e oito anos) de Cuba no Brasil, filho do ministro cubano de Assuntos Exteriores, Raúl Roa. Chamam-no de Raulito para distingui-lo de seu pai. Fidel lhe encarregou uma missão precisa: transmitir textualmente a Guevara o que acaba de expor confidencialmente em Varadero ante um reduzido comitê. Trata-se do projeto do brasileiro Leonel Brizola, cunhado do presidente Goulart, de organizar no Brasil uma guerrilha ‘a la cubana’, e para isso se requer a ajuda dos cubanos. O Che escuta com suma atenção e lhe confia logo uma significativa mensagem: Diga a Brizola que se necessita de um bom chefe guerrilheiro, ofereço meus serviços.”39

Guevara ainda passaria rapidamente pelo Brasil mais uma vez, em novembro de 1966, por São Paulo, em trânsito, a caminho da Bolívia. Antes disso, houve especulações fantasiosas no país (de jornalistas e órgãos de segurança nacionais) de que o revolucionário argentino estivesse atuando por aqui. Teria sido visto em outubro de 1965 no Acre e em 4 de agosto de 1966, no município de Barracão, no Paraná.  Pouco depois, no dia 19 de agosto do mesmo ano, autoridades militares brasileiras chegaram a organizar uma operação secreta para interceptar um automóvel em que Guevara supostamente se encontrava, já que haviam recebido uma informação de que ele estaria sendo transportado numa Rural Willys por Maurício Grabois e um camarada (ambos do PCdoB) pela estrada entre Curitiba e São Paulo!40 E ainda, houve quem comentasse sobre um encontro — sem nenhuma comprovação — do Che com Marighella e Joaquim Câmara Ferreira em São Paulo, quando ele estava a caminho da Bolívia, em novembro de1966, ou de uma suposta reunião de Guevara com Brizola, desta vez no Uruguai, na mesma época.41 Tudo isso mostra como a desinformação sobre o Che, naquele momento, era grande.42

Por sinal, Régis Debray visitou Guevara quando este já estava atuando no oriente boliviano, em 1967. Na ocasião, o comandante teria mencionado o desejo de fazer uma conexão com Carlos Marighella. Na entrada do dia 27 de março de seu diário, o “guerrilheiro heroico” afirmou que Debray não gostou nem um pouco da ideia de que se tornaria difícil sua partida da base, e no dia 28 indicou que “o francês foi muito veemente quando mencionou o quão útil poderia ser lá fora”.43 De qualquer forma, na ocasião, ele sugeriu ao filósofo parisiense que, antes de ir a Cuba e à Europa, fosse ao Brasil para procurar Carlos Marighella.44 De acordo com Debray, no Brasil “o contato passava por certas forças ‘nacionalistas revolucionárias’, compostas nomeadamente por soldados, sargentos e marinheiros, agrupados atrás de um leader popular do Sul do Brasil” [ele provavelmente se referia a Leonel Brizola; vale lembrar que em seu diário, o guerrilheiro cubano Harry Villegas — também conhecido como Pombo — havia dito, em setembro de 1966, que em um recente Congresso do Partido Comunista do Uruguai, o dirigente comunista boliviano Jorge Kolle havia conversado com membros da “organização de Brizola”, que manifestaram sua decisão de iniciar a luta armada e pediram ajuda de seu partido para comprar armas e equipamentos, assim como pessoal que servisse de guia para entrar no território brasileiro, além do envio de emissários cubanos para discutir o auxílio].45 E continuava:

“Nas fronteiras de Minas Gerais e do Espírito Santo, este movimento estava construindo as bases de um foco guerrilheiro rural nas montanhas de Caparaó, foco que seria surpreendido no estágio de treino e desarticulado por um batalhão do Primeiro Exército Brasileiro, no momento preciso em que o Che metia mãos à obra. A coordenação prevista não teve, portanto, seguimento. As tendências dissidentes no seio do PCB não estavam ainda organizadas nem manifestas, e, se bem que Marighella tivesse já dado sinal de vida e das suas intenções em fins de 1966, o ELN brasileiro não existia ainda e não podia, portanto, haver um contato orgânico com as forças que acordarão mais tarde para lançar em 1968 a guerrilha urbana no Brasil. No entanto, o Che, informado tarde dos preparativos de Marighella que não passavam ainda de intenções, teve o cuidado de incluir a situação existente no seio do Comitê Regional do PCB de São Paulo no lote de informações que me pediu para lhe levar mais tarde, quando eu voltasse à guerrilha, depois de um périplo pelo estrangeiro, que acabou antes de ter começado, com minha captura em Muyupampa, em companhia de Ciro Bustos.”46

O fato é que, especialmente depois do golpe militar de 1964 e do endurecimento da ditadura, o caminho das armas seria a opção de diversos militantes de esquerda brasileiros. A partir daí, o papel de Cuba como o grande exemplo de revolução iria se fortalecer. Homens como o já citado Carlos Marighella, o capitão Carlos Lamarca e tantos outros, inspirados nos exemplos do Che e de Fidel, dariam suas vidas na luta contra a ditadura militar e contra a ingerência imperialista nos assuntos internos nacionais. Toda uma geração de jovens intelectuais militantes iria se formar politicamente dentro da aura da primeira revolução socialista do continente americano. 

[…]

* Leia a íntegra do artigo “Che Guevara, a Revolução Cubana e a esquerda no Brasil: uma visão panorâmica política e editorial“, de Luiz Bernardo Pericás, no Boletim do GMarx.

Notas

***
Luiz Bernardo Pericás é professor de História Contemporânea na USP. Formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México), foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. Seu livro Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo, 2016)lhe rendeu o troféu Juca Pato de Intelectual do Ano e o Prêmio Jabuti de melhor biografia. Pela Boitempo, também publicou Os cangaceiros – ensaio de interpretação histórica (2010), o romance Cansaço, a longa estação (2012), Che Guevara e o debate econômico em Cuba (2018), Che Guevara e a luta revolucionária na Bolívia (2023), as coletâneas Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizada em conjunto com Lincoln Secco, e Independência do Brasil: a história que não terminou (2022), com Antonio Carlos Mazzeo, além da antologia Caminhos da revolução brasileira (2019). É coordenador da coleção Caio Prado Júnior.



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