Um ponto de virada na posição dos socialistas sobre a questão judaica: Émile Zola e o caso Dreyfuss

Imagem: Wikimedia Commons

Por Arlene Clemesha

Durante a década de 1880 o antissemitismo se tornaria uma tendência política na França. Se na Rússia o agravamento do antissemitismo recebeu um impulso importante de um fato isolado cuja culpa foi atribuída aos judeus, qual seja o assassinato do tsar em 1881, na França o primeiro grande impulso para o deslanchar do antissemitismo veio da falência, no final do século, do banco Unión Générale, atribuída às manobras dos Rothschild, uma família de banqueiros judeus de influência. Mas o grande golpe desferido sobre essa comunidade judaica assimilada e confiante nos princípios da Revolução Francesa veio com o Caso Dreyfus, em 1894.

[…]

O Caso Dreyfus foi, a grosso modo, o julgamento e a condenação — por “traição à pátria” e “espionagem a favor da Alemanha” — de um homem inocente, porém “condenável” mesmo que sem provas, apenas por ser de origem judaica. O capitão do exército, Alfred Dreyfus, era o único judeu de seu setor quando, no verão de 1894, o serviço de inteligência francês descobriu que um de seus oficiais enviara um documento militar secreto (o bordereau) à Embaixada alemã em Paris. Num processo que contou com a falsificação de provas, violentos distúrbios antijudaicos em janeiro e fevereiro de 18981, e manifestações antissemitas e patriotas por parte da imprensa — como fazia o jornal La Libre Parole, de Édouard Drumont, autor de uma das maiores obras antissemitas da época, La France juive [A frança judaica], de 1886 —, Dreyfus foi por duas vezes julgado “culpado”. Primeiro, em 1895, depois de uma sórdida demonstração pública, o capitão (alegando sempre a sua inocência) foi condenado à prisão perpétua na ilha do Diabo. Em março de 1896 surgiram evidências de que o verdadeiro agente alemão era o major Walsin Esterhazy. Este, no entanto, foi absolvido em julgamento, sendo que os principais dirigentes governistas franceses, entre os quais o primeiro-ministro Jules Méline, jamais aceitaram dar crédito à nova acusação. Em novembro do mesmo ano Bernard Lazare publicou o seu panfleto denunciando “a verdade sobre o Caso Dreyfus”. Mas o impacto maior sobre a opinião pública viria apenas em janeiro de 1898 quando Émile Zola publica “J’accuse!” [Eu acuso!], uma carta aberta ao presidente da República, no jornal L’Aurore, de Georges Clemenceau. Foram feitas 200 mil cópias do artigo, denunciando a armação maliciosa contra Dreyfus (e levando Zola ao exílio). Durante esse ano, os chamados dreyfusards (partidários de Dreyfus) puderam publicar novas provas sobre a participação de altos funcionários do exército e do governo nas fraudes que envolveram o processo contra Dreyfus. Uma investigação foi aberta pelo novo ministro de Guerra, causando a indignação dos grupos conservadores contrários a Dreyfus e inclusive um levantamento antirrepublicano dirigido por Paul Déroulède. Mas a demonstração da falsificação das “provas” utilizadas para incriminar Dreyfus não impediu a sua segunda condenação no processo em 1899 – porém, desta vez com “circunstâncias atenuantes” que reduziram a pena a dez anos de prisão (dos quais cinco já haviam sido cumpridos). Logo em seguida Dreyfus recebeu o “perdão” oficial do então presidente da República (Loubet), mas a absolvição completa e a permissão para que Dreyfus voltasse a assumir o seu cargo no exército veio apenas em 1906.

Dentro da França, o Caso Dreyfus constituiu “o ponto de virada na história da Terceira República”, o embate entre oponentes e defensores do regime republicano (com a separação, em 1905, entre Igreja e Estado) e, em nome da defesa da República, a primeira participação socialista em um governo burguês desde 1848: o chamado Caso Millerand, que agitou os debates na Segunda Internacional durante vários anos2. Segundo Pierre Vilar,

“com razão sublinhou-se a virada especialmente sensível ocorrida com o affaire Dreyfus, que converte a exaltação da nação, da pátria e do exército, em uma atitude de “direita”, não apenas conservadora mas também vinculada às nostalgias monárquicas (Maurras) ou ditatoriais […]. Também é certo que nesses anos de 1890-1913, o movimento operário revolucionário (anarquismo, sindicalismo e algumas correntes do socialismo) se caracteriza não apenas por seu internacionalismo mas por um antimilitarismo e um antipatriotismo violentos.”3

Para diversos autores, a mesma França que um século antes produzira o modelo de “igualdade civil e assimilação” que inspirou a emancipação dos judeus em todas as partes do continente europeu4 revelava agora todo o potencial político do antissemitismo. Segundo Zeev Sternhell, durante o Caso Dreyfus, “o nacionalismo se define e toma as formas que serão as suas durante a primeira metade do século XX. Mas o affaire teve tais dimensões porque durante muito tempo determinadas forças estavam preparadas, apenas aguardando um confronto maior”. O autor refere-se ao nacionalismo e, especificamente, a Maurice Barrès, “encarnação viva” da nova direita que se estruturou nos anos 1890, e precursor dos movimentos de massa que eclodiram na Europa do século XX. “Sob diversos aspectos, ele é uma figura mais ‘moderna’ do que um Maurras: o seu antidreyfusismo contém a maioria dos elementos que seriam explorados pelo fascismo […]. Barrès tem consciência do fato de que ‘o nacionalismo se cristaliza ao redor do Caso Dreyfus’; esse Caso que ele considera, em última análise, uma ‘guerra de raças’”5.

Os efeitos do caso não se limitaram à França. Segundo Moshé Catane, os judeus de todo o mundo estavam chocados com o fato de que tal caso pudesse ocorrer na França, a “pátria da liberdade e da Grande Revolução”. No final do século XIX, não se esperava que o ódio contra os judeus pudesse ainda influenciar o comportamento de uma parte considerável dos franceses, especialmente sabendo que a vítima no caso era um judeu assimilado por completo. Nas palavras de Catane,

“isso parecia provar que a assimilação definitivamente não era garantia contra o antissemitismo. O Caso Dreyfus e a reação que ele causou nas massas francesas abalaram a confiança de Theodor Herzl6 no liberalismo; e a experiência o conduziu ao sionismo. As repercussões do Caso Dreyfus se sentiram por mais de uma geração, e suas consequências ainda podiam ser reconhecidas na linha que dividiu o governo Vichy da França Livre durante a Segunda Guerra Mundial.”7

Antes de analisarmos a reação dos socialistas franceses ao Caso Dreyfus, seria útil conhecer aquilo que foi considerado (em muitos casos com fundamento) o antissemitismo das principais tendências da tradição socialista francesa. Os fundadores do socialismo francês, Henri de Saint-Simon (1760-1825) e Charles Fourier (1772-1837) são considerados, o primeiro, filossemita e o segundo, antissemita. Segundo George Lichtheim, os seguidores de Saint-Simon combinavam socialismo com filossemitismo, em um sistema quase religioso em que a emancipação dos judeus, das mulheres e do proletariado constituía a precondição para a emancipação geral da humanidade. Por outro lado, o antissemitismo de Fourier resumia-se à visão de que os judeus eram os principais beneficiários de um modo de vida “subversivo para os valores comunitários”. A emancipação dos judeus, para Fourier, coincidira com a consolidação de um dos “piores aspectos da sociedade moderna”, o individualismo. Na visão de Lichtheim, encontramos aqui a origem do antissemitismo enquanto um dos “elementos do sistema primitivo de ideias através do qual a reação anticapitalista das décadas de 1830 e 1840 apresentou-se inicialmente”.

No entanto, em um de seus últimos escritos, La Fausse Industrie [A falsa indústria], Fourier troca a retórica antijudaica por um projeto de coloração sionista (!):

“Os judeus (dizia Fourier agora) deveriam receber ajuda para escapar de seus perseguidores na Europa e retornar à Palestina, e “novamente se tornarem uma nação reconhecida, com seu próprio rei, bandeira, cônsules, e moeda”. Ele inclusive achava que algum judeu milionário (tratava-se da Era dos Rothschild) poderiafinanciar o projeto e, ao mesmo tempo, ajudar a causa socialista e os projetos comunitários do próprio Fourier: uma “falange experimental” (o nome que ele deu ao seu projeto de assentamento coletivo) certamente tornaria o projeto, e seu pai espiritual, famosos em todo o planeta.”8

No período seguinte, entre 1840 e 1870, o antissemitismo na esquerda socialista francesa associa-se a três nomes: Alphonse Toussenel (1803-1885), Pierre Leroux (1797-1871), e Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). O primeiro, Toussenel, é, para Lichtheim, melhor descrito como “um antissemita que por acaso era socialista”. Seguidor de Fourier, Toussenel foi o autor do panfleto Les juifs, rois de l’époque [Os judeus, reis da época], de 1845, que transpõe a imagem medieval do judeu usurário ao capitalismo do século XIX, tornando os judeus os “detentores do capital financeiro” e controladores do capitalismo moderno. O caso de Pierre Leroux é considerado mais complexo do que o de Toussenel. Originalmente seguidor de Saint-Simon, Leroux foi estudioso do hebraico e da história judaica, e manteve até o final da vida a amizade de antigos companheiros judeus saint-simonianos, como os irmãos Pereire, importantes banqueiros e competidores dos Rothschild na França. Isso não impediu que Leroux publicasse, na Revue Sociale em janeiro de 1846, uma intervenção com o mesmo título do panfleto de Toussenel, “Les juifs rois de l’époque”. Leroux igualmente consideraria os judeus como um grupo ligado ao capitalismo, e depositaria suas esperanças na conversão dos judeus e no advento de um socialismo cristão (mas rejeitando sempre o antissemitismo racial e a visão de que os judeus pudessem ser inferiores a outras raças)9.

Proudhon, que foi um dos teóricos mais importantes do socialismo antes de 1870, segundo Lichtheim, diferenciava-se dos autores de sua época por um antissemitismo virulento, que incluía a crença de que os judeus eram “incorrigíveis” e impossíveis de serem “regenerados”. Os escritos póstumos de Proudhon revelam que ele via os judeus como inimigos da raça humana: “Essa raça deve ser exterminada ou enviada de volta à Ásia. H. Heine, A. Weil e outros não passam de espiões; Rothschild, Crémieux, Marx, Fould, são seres malignos, invejosos etc. etc., que nos odeiam”10.

As três décadas que seguiram à morte de Proudhon conheceram uma reorientação no movimento operário francês que, na visão de Lichtheim, afetou a sua atitude em relação à questão judaica. Mas antes de passar às últimas décadas do século, em que os principais protagonistas do socialismo francês seriam também aqueles da Segunda Internacional, uma referência deve ser feita a Gustave Tridon (1841-1871), autor do panfleto antissemita Du molochisme juif [Sobre o moloquismo judaico]. Escrito entre 1866 e 1868, o panfleto continha as mudanças em curso na natureza do antissemitismo, incluindo referências à “ameaça representada pelos semitas à raça ariana”. Tridon, nesse aspecto, não é tido como um seguidor muito fiel de seu mestre, Auguste Blanqui, que considerava o catolicismo uma ameaça maior do que o judaísmo, e cujas referências ocasionais a “judeus trapaceiros” (presentes em suas notas não publicadas) “não faziam dele um antissemita no sentido doutrinário”. O representante da herança proudhonista, Benoît Malon (1841-1893) (também organizador da Revue Socialiste, principal veículo do socialismo reformista ou “possibilista” após 1885, e autor do conceito de “socialismo integral” que influenciaria Jean Jaurès e os socialistas independentes), não viveu para ver o Caso Dreyfus. Mas ele já havia se manifestado favorável à publicação das grandes obras antissemitas da década de 1880 na França, Aryens et Sémites [Arianos e semitas], de Reynard, e o já referido La France juive, de Drumont. Nesse mesmo período, cresce a influência do marxismo sobre o movimento operário na França, e Malon não hesitaria em opor-se a ele em termos semelhantes aos de Proudhon e Bakunin, ou seja, enquanto obra de “socialistas alemães, e judeus”11.

Os socialistas, por diferentes motivos, demorariam para assumir uma posição frente ao Caso Dreyfus. Segundo James Joll, no início o affaire não constituiu “um assunto político transcendental, sobre o qual todos os grupos políticos deveriam pronunciar-se”. O que transformou o “problema jurídico” em um “caso político” foi a publicação do artigo de Zola, “J’accuse!”. Nesse mesmo ano de 1898, a posição dos socialistas se define.

* Este é um trecho do capítulo “A questão judaica na Segunda Internacional: 1889-1914”, publicado originalmente no livro Marxismo e judaísmo: história de uma relação difícil, de Arlene Clemesha.

Notas

  1. Como informa Robert Wistrich, “a partir de 17 de janeiro de 1898 ocorreram distúrbios, demonstrações, e o saqueamento de lojas judaicas em Marseilles, Paris, Bordeaux, Nantes, Rennes, Orleans, Grenoble, Toulouse, Montpellier, Lille, Le Havre, entre outras cidades da França. Em Argel, Orã e Constantina houve um verdadeiro pogrom, com a destruição de 158 lojas judaicas, e o estupro e assassinato de mulheres judias. As ruas de Paris foram dominadas por gangues antissemitas, e a casa de Zola teve que ser vigiada dia e noite pela polícia, com medo de que ele fosse linchado por estudantes e monarquistas enfurecidos”. Robert Wistrich, Between Redemption and Perdition: Modern Antisemitism and Jewish Identity (Londres, Routledge, 1990), p. 138. ↩︎
  2. Segundo Cole, a participação de Alexandre Millerand no novo governo de Waldeck-Rousseau, em 1899, não se compara à “entrada de Louis Blanc no governo republicano de 1848, resultado de uma revolução e não de uma mudança no poder parlamentar”. Ver George Douglas Howard Cole, Historia del pensamiento socialista, v. 3, cit., p. 323. ↩︎
  3. Pierre Vilar, Iniciación al vocabulario del análisis histórico (Barcelona, Grijalbo, 1981), p. 174. ↩︎
  4. Enzo Traverso cita a pesquisa realizada por Jacob Katz, “The Term ‘Jewish Emancipation’: Its Origins and Historical Impact”, em que este traça o surgimento do termo “emancipação” em relação aos judeus ao ano de 1828 na Alemanha, onde foi utilizado por intelectuais judeus como Heinrich Heine, Ludwig Börne e Leopold Zunz. Sendo que na França o problema era abordado mais sob o ângulo da “tolerância”. Enzo Traverso, Pour une critique de la barbarie moderne: écrits sur l’histoire des juifs et de l’antisémitisme (Lausanne, Page Deux, 1996), p. 15-6 e 140. ↩︎
  5. Zeev Sternhell, Maurice Barrès et le nationalisme français (Bruxelas, Complexe, 1985), p. 248-9. ↩︎
  6. Nascido em Budapeste em 1860, Theodor Herzl foi jornalista, correspondente do Neue Freie Presse, de Viena, em Paris, e autor de O Estado judeu (1896). A obra foi considerada o impulso definitivo para a organização do sionismo político, e Herzl, o próprio fundador do movimento. ↩︎
  7. Moshé Catane, “The Dreyfus Affair”, em Y. Heinemann, et al., Anti-Semitism (Jerusalém, Keter, 1974), p. 196. ↩︎
  8. George Lichtheim, “Socialism and the Jews”, cit., p. 317-9. ↩︎
  9. Ibidem, p. 320-1. ↩︎
  10. “Notebooks of P.-J. Proudhon”, II, p. 337-8, citado em ibidem, p. 322. ↩︎
  11. George Lichtheim, “Socialism and the Jews”, cit., p. 324. ↩︎

***
Arlene Clemesha é historiadora e professora do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo, onde fundou e dirige o Centro de Estudos Palestinos (CEPal), é mestre e doutora em história econômica pela mesma instituição. Foi pesquisadora visitante na University of Michigan at Ann Arbor (2001) e representante da sociedade civil brasileira na Rede de Coordenação Internacional da ONU pela Palestina entre 2005 e 2015. Pela Boitempo, publicou Marxismo e judaísmo: história de uma relação difícil.


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