Moralismo de esquerda e ética evangélica: quase resenha de “O que é identitarismo?” de Douglas Barros

Foto de ABEL MARQUEZ na Unsplash

por André Castro

No que tange à gramática que configura a política como a conhecemos hoje, poucas palavras foram tão repetidamente usadas, sempre em sentidos distintos, quanto “identitarismo”. Alguma coisa nova pairava no ar. E dos muitos que a usavam pressupondo um entendimento comum sobre seu significado, especialmente no que diz respeito aos movimentos de esquerda, poucos gastaram tempo para compreender o fenômeno. Talvez esteja aí o primeiro passo da originalidade de Douglas Barros no seu O que é identitarismo? O livro em questão tenta reverter a situação. Se a palavra estava sendo usada pela direita brasileira na tentativa de sumarizar movimentos à esquerda, já na primeira parte do livro o filósofo deixa claro que a identidade como a conhecemos, e sua ontoepistemologia racial, é uma consequência direta da própria modernidade fundada na invasão colonial. Mas antes ele recorre a sua amiga, psicanálise. 

Indo a Freud e Lacan ele apresenta o que, afinal, é identidade. Que não é uma essência estável que possuímos, mas uma “ilusão subjetivamente necessária”. A identidade do sujeito, argumenta, é forjada a partir de uma cisão fundamental. Barros explica que o “eu” se constitui na relação com o outro, numa busca incessante — e fadada ao fracasso — por uma unidade que nunca existiu. Somos seres em constante devir, e a identidade é esse processo contínuo de identificação, uma fantasia que nos move, mas nunca se completa. Esse sujeito cindido, uma vez estabelecido como premissa filosófica, transita para a arena histórica. Barros traça a genealogia da “identidade cultural” como um produto específico da modernidade. Com o colapso da ordem medieval, onde o lugar de cada um era predeterminado, surge a necessidade de novas formas de administração social. A identidade cultural emerge, portanto, não como uma expressão orgânica dos povos, mas como uma categoria construída para gerir populações no contexto de um novo modo de produção. Ela deixa de ser um dado pressuposto para se tornar algo posto, um produto histórico-social que serve para organizar e administrar as relações no nascente mundo da mercadoria.

A noção de “raça” não é um resquício arcaico, afirma o autor, mas uma invenção central da modernidade, uma construção identificatória criada para justificar e gerir a exploração colonial. A racialização do outro — a coisificação do não-europeu — foi o alicerce sobre o qual se ergueu o imaginário moderno. Essa mesma lógica excludente, por sua vez, é o fundamento da identidade nacional. A nação, definida como uma “comunidade imaginada”, constrói um “nós” coeso e homogêneo precisamente em oposição a um “eles”. Esse “outro”, o estrangeiro, o diferente, é frequentemente o sujeito racializado. Assim, a nação não pode existir sem a raça; uma é a condição de possibilidade da outra.

Ao invés de ser uma bandeira recente da esquerda, a identidade — subjetiva, cultural, racial e nacional — é revelada como a própria gramática do poder na modernidade, um mecanismo de gestão nascido com o capitalismo e o colonialismo. Fica claro que, para entender as disputas contemporâneas em torno do “identitarismo”, é preciso primeiro compreender que a própria arena do debate foi moldada por essa história de exclusão e administração. Mas o que acontece com essa ferramenta quando o próprio arquiteto, o Estado-nação moderno, entra em crise e se transforma? A resposta de Barros é a chave para compreender o fenômeno que dá título à obra: a lógica da gestão não desaparece; ela se radicaliza, se pulveriza e se interioriza no sujeito, criando a “antecâmara do identitarismo contemporâneo”.

O ponto de virada, segundo Barros, é a ascensão do neoliberalismo, que ele não trata como uma mera política econômica, mas como uma profunda mutação ontológica. Figuras como Hayek e Thatcher não propuseram apenas um novo arranjo para o mercado; eles propuseram uma nova concepção do que significa ser. Ao declarar a morte da “sociedade”, o neoliberalismo dissolveu o terreno sobre o qual as grandes identidades coletivas da modernidade (como a de “cidadão”) se sustentavam. Em seu lugar, erigiu uma nova figura central: o eu-empreendedor. O indivíduo deixa de ser parte de um todo social para se tornar uma empresa de si mesmo, um portfólio de competências, um capital humano em que se deve constantemente investir otimizando-o, num cenário de competição universal.

Essa “virtude” neoliberal, no entanto, precisou da “fortuna” para triunfar. Barros argumenta que foram as crises do capitalismo nos anos 1970 — o fim do modelo keynesiano, a crise do petróleo, a reestruturação produtiva — que criaram as condições históricas para que essa nova razão do mundo se tornasse hegemônica. O colapso do welfare state e das promessas de progresso social deixou um vácuo de sentido e segurança. Foi nesse cenário de desagregação que o eu-empreendedor emergiu não apenas como um ideal, mas como uma necessidade de sobrevivência. O Estado, por sua vez, abdicou de seu papel de garantidor social para se tornar um “Estado gestor”, um árbitro cuja função é garantir que as regras da competição sejam cumpridas, mas sem intervir na lógica do mercado. 

A ferramenta administrativa da “identidade”, antes usada pelo Estado moderno para forjar a coesão nacional (apagando as diferenças em nome de um “nós” maior), é agora reconfigurada pelo Estado neoliberal. Se não há mais “sociedade” para gerir, o que se passa a administrar é a própria concorrência entre os indivíduos-empresa. A identidade, nesse novo quadro, deixa de ser um marcador de pertencimento a um coletivo nacional para se tornar um ativo no mercado. Ela se transforma num nicho, numa marca, num capital a ser explorado para garantir visibilidade e, consequentemente, sobrevivência na competição. A lógica da gestão se desloca do todo para as partes. O Estado passa a olhar para as identidades historicamente excluídas não como uma questão de justiça social a ser universalizada, mas como demandas de grupos específicos que precisam ser acolhidas e gerenciadas — através de “políticas públicas focalizadas” — para que possam competir de maneira mais equânime no mercado.

Dessa forma, a segunda parte do livro funciona como a dobradiça que articula todo o argumento. Barros demonstra que o terreno do identitarismo contemporâneo foi preparado pela demolição neoliberal do social. A velha gestão de identidades, que operava pela exclusão e pela assimilação a um projeto nacional, foi substituída por uma nova gestão que opera pelo enquadramento de todas as identidades na lógica do mercado. A “antecâmara” descrita por Barros é esse espaço onde a política se esvazia para dar lugar à administração da vida como uma grande competição, preparando o cenário para o fenômeno que será dissecado na terceira e última parte: o identitarismo como paradigma de gestão do capitalismo de crise.

A política, no sentido radical que o livro reivindica, é o momento do conflito, do dissenso, o evento no qual uma demanda particular (de um grupo sem parte na ordem estabelecida) consegue se universalizar e romper a lógica administrativa que organiza o social. A gestão, por outro lado, é o exato oposto: é o conjunto de técnicas e procedimentos cujo objetivo é neutralizar esse conflito, evitar a ruptura e garantir a fluidez da circulação (de mercadorias). O identitarismo, nesse quadro, é a forma que essa gestão assume na era do capitalismo tardio. Ele acolhe as demandas identitárias, mas apenas para esvaziá-las de seu potencial político. Através da judicialização da vida e da “lógica policial” que, em vez de resolver o conflito, atribui a cada grupo seu devido lugar, sua pauta específica e seu nicho de representação, a gestão identitária garante que nenhuma luta particular transborde e ameace o sistema como um todo.

Essa nova forma de governança não seria possível sem a base material da revolução informacional. As “bolhas identitárias” são o produto direto da tecnologia de captura do imaginário. Os algoritmos de big data não são ferramentas neutras; eles são o motor de uma nova forma de poder que funciona através da eficiência e da otimização. Ao minerar dados, eles não apenas preveem, mas moldam nosso comportamento, reforçando afinidades e criando grupos virtuais coesos em torno de um “egoísmo gregário”. Nesse cenário, a “tecnicização da linguagem” e o “predomínio da imagem” destroem as condições para a experiência e a reflexão. A comunicação se torna uma troca de significantes otimizados e emoções pré-fabricadas, onde a adesão a uma imagem substitui a construção de um projeto político comum. O sujeito, confinado em seu espelho digital, encontra um rebanho virtual que confirma sua visão de mundo, tornando a alteridade algo a ser silenciado ou combatido. O particular de cada grupo subalternizado não consegue se elevar em uma positivação que forme um sujeito político que coloque em xeque a própria realidade, mas se reduz ao primeiro passo dessa subjetivação, que é a identificação. Transforma a política de esquerda em uma moral a partir da qual o “sujeito de direito” exige seu lugar no mercado e seu reconhecimento jurídico; e deixa ao largo o conflito com a forma de organizar socialmente a sociedade, entrando no labirinto ilusório da batalha por fundos estatais e do terceiro setor. 

Quase nas últimas páginas do O que é identitarismo?, Barros vai esboçar o que identifica como os dois lados que operam sob as formas dessa lógica identitária de gestão. O primeiro, o progressista-laico, opera no campo da pós-política. Ele aceita o terreno da gestão e busca, dentro dele, o reconhecimento e a representação. Sua luta é para que as identidades historicamente excluídas sejam incluídas na ordem jurídica e no mercado, transformando demandas por justiça em demandas por visibilidade, direitos específicos e acesso ao consumo. Ao fazer isso, ele aceita a lógica da fragmentação, tratando cada identidade como um nicho a ser administrado, um “lugar de fala” que deve ser garantido, mas sem questionar a estrutura que produz esses lugares. É uma forma de contenção que, sob a aparência da inclusão, neutraliza qualquer potencial revolucionário. O segundo, o reacionário-sagrado, seria a outra face da mesma moeda, operando no campo da ultra política. Nascido do mesmo vazio de sentido e da mesma desagregação social, ele reage à visibilidade conquistada por outros grupos. Ele também se organiza como uma identidade fechada — a dos “homens de bem”, da “nação” mítica —, mas sua coesão é forjada não pela busca de reconhecimento, e sim pela eleição de um inimigo sacrificial (o imigrante, o negro, a feminista). Enquanto o progressismo busca a gestão via inclusão no mercado, o reacionarismo busca a gestão via exclusão violenta. Um é a administração asséptica do capital; o outro, sua face bárbara e sacrificial. 

É curioso observar essa aproximação com o identitarismo reacionário-sagrado, quando a construção do argumento que percorre todo o livro está claramente orientada para uma crítica ao identitarismo enquanto fenômeno de gestão da esquerda hoje, entendido como forma de desestruturação das condições de possibilidade da ação política radical. Ao deslocar o arsenal crítico destinado a esse campo para outro objeto, que poderíamos sintetizar como a extrema direita cristã no Brasil, o gesto identificatório perde a precisão. Quando se volta ao identitarismo progressista-laico, a referência ao objeto é clara e objetiva, não apenas nas páginas finais, mas em quase todo o livro. Sua análise é materialista e fenomenológica, focada na própria forma de vida neoliberal: a aceleração do tempo, a virtualidade das relações mediadas pela imagem, a gestão empresarial de si. Portanto, é imanente. Contudo, quando se volta para o reacionário-sagrado, o que encontramos é uma mudança de método: o fenômeno deixa de ser o objeto de análise em si e se torna ilustração da teoria girardiana. “René Girard já havia alertado sobre o deslocamento operado pelo sacrifício como horizonte: o problema não é a sociedade regulada por uma concorrência universal e pela degradação da vida social, o problema são aqueles que contrariam a lei da concorrência absoluta ao reivindicar ‘salvaguardas especiais’. […] ‘É a comunidade inteira que o sacrifício protege de sua própria violência, é a comunidade inteira que se encontra assim direcionada para vítimas exteriores’”, escreve, citando o autor — e a argumentação se desloca para uma aplicação externa das categorias de violência sacrificial e bode expiatório: “Na comunidade dos homens de bem, o mecanismo da violência coletiva desloca a violência da própria sociabilidade do capitalismo tardio. A vítima sacrificial é eleita em termos de vingança e represália”. Dessa forma, as crenças, teologias e práticas dos reacionários aparecem apenas como analogias breves, enquanto o grosso da argumentação se ancora em teóricos alheios à coisa mesma.

É claro que o livro oferece uma série de considerações que podem nos ajudar a pensar além do progressismo-laico, mas essas variações precisam ser matizadas para dar conta da particularidade da coisa. Se voltarmos nossos olhos para o mundo evangélico, por exemplo, é visível uma dinâmica ego-gregária muito semelhante àquela proscrita pelo crítico, mas que não gira em torno de uma identidade fechada, e sim de uma visão universalizante. Essa visão não está baseada em uma teologia dogmática que influi diretamente sobre a vida dos fiéis, mas é construída nas igrejas a partir de suas próprias dinâmicas internas. Nesse ambiente, produziu-se uma linguagem que, por sua vez, é organizada a partir de uma imaginação religiosa especificamente brasileira e que transcende os signos identitários da igreja evangélica. A passagem histórica ao neoliberalismo, tal como narra Barros, também afetou profundamente os modos de produzir e reproduzir religião no Brasil; e foi o evangelicalismo que soube criar uma gramática interpretativa para essa nova condição, com a qual qualquer outra manifestação de transcendência precisa agora dialogar. Entretanto, o campo progressista foca no crescimento estatístico dos “sem religião”, na esperança de que isso represente um recuo da influência da direita radical, numa associação simplista que iguala evangélico à extrema direita.1

A verdadeira questão não reside na disputa numérica entre denominações, “católico” ou “evangélico”, mas na profunda alteração da própria sensibilidade religiosa brasileira. O ponto-chave é que essa mutação no sentimento coletivo vai além da identidade evangélica. A imaginação religiosa que ela produziu, organizando a existência como uma batalha espiritual contínua, transborda seus limites institucionais e identitários. Foi precisamente isso que Ruan Gomes2 identificou em Frei Gilson: católicos devotos que, na prática, organizam sua imaginação religiosa a partir de uma matriz com nítidas influências evangélicas. O religioso conta com mais de oito milhões de inscritos no YouTube e já passou os 10 milhões no Instagram, produz conteúdo para as redes diariamente mas ficou conhecido por conta da Quaresma de São Miguel arcanjo, a quem se reza para que ele e sua milícia divina combatam todas as forças do diabo que podem afligir o fiel. Para se organizar simbolicamente no seio católico, a batalha espiritual de que tanto se fala se apropriou de um símbolo tradicional do século XIII, o Arcanjo Miguel, mas a forma como essa memória da tradição católica é acessada e organizada hoje é mediada por uma gramática atual.

Se o evangelicalismo produziu uma imaginação religiosa que ultrapassa sua própria organização identitária enquanto crentes, em oposição ao catolicismo e às religiões afro-brasileiras ou originárias, internamente eles se mobilizam em uma identidade que parece não cair nas amarras do identitarismo, mas aponta, mesmo que a partir de ficções delirantes, para um sujeito político-teológico:

“O chamado-de-Cristo, portanto, enquanto experiência religiosa, se firma na relação singular, uma identidade evangélica se forma em expansão. Enquanto hoje vivemos uma gestão dos laços por um pertencimento identitário que se organizam pela essencialidade (seja étnica, sexual ou nacional), o evangélico se organiza pela “anulação dos signos distintivos de diferença social” convocando-os pelo nome (portanto pelo sujeito destituído) e convertendo-se a uma comunidade universal-em-construção, no sentido de que sua experiência de expansão é a garantia de sua universalidade, o assentamento das Boas Novas.”3

A universalidade em construção, enquanto Reino de Deus na Terra ou, em termos mais especulativos, Brasil avivado, é ao mesmo tempo aquilo que dá sustentação ao argumento evangélico enquanto identidade fechada como grupo religioso específico e como gramática, que ultrapassa essas barreiras e começa a fazer parte de outras identidades religiosas. Essa universalidade se funda na crença em um projeto de Deus, em um plano, do qual o sujeito crente se torna parte, nele ganhando agência sobre sua própria vida. As igrejas evangélicas dão contornos, para além de suas paredes, a uma prática de luta constante pelo butim. Essa prática diária de sobrevivência, que não se restringe às classes subalternas, mas se estende até mesmo às classes médias remediadas, é mediada pela imaginação religiosa em questão, na qual se torna possível produzir imperativos práticos para a situação real. Trata-se de uma ética concreta, se quisermos citar um velho teólogo, que por sua vez necessita de uma “lógica de existência” — aqui chamada de imaginação religiosa — na qual essa luta adquire sentido de totalidade. Para esse teólogo, Hugo Assmann, a religião não é um dogma estático, mas um campo de mediação. E nesse campo a “ética concreta”, forjada nos imperativos da luta diária de cada sujeito, suscita e exige uma “lógica da existência” que a organize e lhe dê sentido. Não se trata de uma teologia que desce sobre a vida, mas de uma forma de totalidade que emerge da própria prática para interpretá-la e, ao mesmo tempo, torná-la suportável. A prática não é um mero reflexo da teologia, nem a teologia uma simples justificativa da prática; ao contrário, é no próprio embate com os imperativos da vida que uma lógica de totalidade pode germinar e se tornar uma força material. Não como algo externo ao indivíduo, mas na sua própria interioridade. É aí que a religião se torna espaço de verificação crítica da realidade social.4 

Em outras palavras, uma rede de sentidos muitas vezes anterior aos conceitos produzidos pelos indivíduos para entender sua própria realidade, mas que se estabelece a partir de uma figuração transcendental. Essa figuração transcendental é oferecida pela igreja, organizando uma rede gramatical de sentidos que sempre passa pelo crivo vital da experiência, mas ao mesmo tempo tem nessa rede de sentidos a sua própria explicação interna. Estamos nas voltas da complexa relação entre teoria e prática, ou teologia e prática, sobre a qual é melhor demonstrar do que falar. E é por aí que batalham os cristãos brasileiros, não nos códices de uma suposta antropologia sacrificial girardiana. O que vemos é que a esquerda, enquanto projeto de país, afundou-se em um “presentismo gestor”, tornando-se incapaz de organizar o sentimento de descompasso da própria população com o mundo. Essa valeta, que poderia produzir revolta, foi preenchida por outra forma de perceber o Brasil: uma batalha sob as insígnias do Senhor dos Exércitos, que organiza tudo, da falta de dinheiro para pagar a conta à eleição do presidente, sob a certeza de um projeto divino. Retornamos, assim, ao problema inicial posto por Douglas Barros. Mas o que emerge dali não é o “identitarismo” de gestão que ele corretamente critica — o sujeito que busca um nicho no mercado de reconhecimento —, mas um sujeito político-teológico com um projeto de mundo totalizante: o sonho de um “Brasil Avivado”. Ele não quer ser gerido; ele quer governar. A tragédia da esquerda talvez seja não perceber que seu verdadeiro adversário não luta pelas regras do jogo da gestão, mas pela própria alma do país. Para ver esse sujeito político em sua inteireza, é preciso ir lá onde ele ganha força: na forma como a rede gramatical de sentidos que o pressupõe organiza a vida dos sobreviventes, solidificando nas canções e reverberando nas pregações um sentimento evangélico de Brasil.5 Foi nesse universo simbólico que pôde germinar um projeto de extrema direita, entre evangélicos e católicos, de um Brasil para Cristo.

Notas

  1. Nos referimos a Bruno Paes Manso que, à revelia de suas grandes descobertas em torno da história da violência no Brasil, se tornou crítico de ocasião do fenômeno evangélico. Ao analisar o último filme de Petra Costa, ele se regozija com a notícia de que, no censo de 2025, a expectativa de crescimento evangélico não foi alcançada. Essa seria então uma ótima notícia, uma possível reação em relação à violência das lideranças, levando-o a concluir: “Há uma margem para o otimismo. Afinal, o brasileiro nunca teve vocação para o fundamentalismo”. É claro, é preciso ter muita fé para acreditar que exista alguma vocação, como se houvesse alguém de fora chamando o brasileiro a ser assim. Uma metafísica nacional que, por certo, só existe hoje enquanto negação desse Brasil avivado que está diante de nossos olhos. ↩︎
  2. Ruan Gomes. Ao final dos tempos, Miguel. In: João Marcos Duarte; André Castro; Jayder Roger (Org). O apocalipse na acepção brasileira do termo: formação do movimento evangélico. São Paulo: Autonomia Literária, no prelo. ↩︎
  3. Jayder Roger. Eis-me aqui! In: João Marcos Duarte; André Castro; Jayder Roger (Org). O apocalipse na acepção brasileira do termo: formação do movimento evangélico. São Paulo: Autonomia Literária, no prelo. ↩︎
  4. Para uma aproximação mais clara nessa proposta conferir minha dissertação de mestrado: CASTRO, André Vinicius Souza. Um teólogo na periferia do capitalismo: fé como práxis em Hugo Assmann. 2024. 166 folhas. Dissertação (Ciências da Religião) – Diretoria de Pós-Graduação e Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. ↩︎
  5. A tentativa de dar contornos a este “sentimento evangélico de Brasil”, mapeando sua genealogia desde o transplante de uma sensibilidade religiosa americana para o solo brasileiro, e decifrando sua gramática afetiva  tal como ela se revela nas liturgias cotidianas e na cena interior da música gospel anima as páginas de meu livro, O sentimento evangélico de Brasil, atualmente em preparação. ↩︎

***
André Castro nasceu em Pernambuco, mas cresceu na Bahia. Graduado em Teologia (FLAM) e mestre em Ciências da Religião (UMESP), atua como editor e colunista na Revista Zelota. É autor de A luta que há nos deuses (Machado, 2024) e Breve história da teologia da libertação protestante (Recriar, 2022). Pesquisa os nexos entre imaginação religiosa e processo social na América Latina entre a Teologia da Libertação e o Brasil avivado.


Margem Esquerda #44 | Religião e política não se misturam?
Nos últimos anos, o tema da religião tem comparecido cada vez mais nos discursos de esquerda, seja como enigma, lamentação ou bode expiatório – ou, ainda, pelas suas afinidades eletivas com os traços apocalípticos da conjuntura global. Partindo do mote durkheimiano de que “a religião é coisa eminentemente social”, o dossiê de capa desta Margem Esquerda investiga o fenômeno religioso e sua relação com a política no Brasil para além dos chavões e lugares comuns condescendentes. Organizada por Carly Machado, a seleção traz um rico mosaico de textos que abrangem a alarmante ascensão da extrema-direita católica no judiciário, a questão do movimento negro evangélico, a relação entre religião e o debate sobre as fake news, a retórica salvacionista dirigida contra as mulheres evangélicas e até a influência do papado sobre a política doméstica.

A entrevistada da edição é a cientista social Maria Lygia Quartim de Moraes, figura importante do marxismo feminista brasileiro. Em seu tom caracteristicamente ácido e bem humorado, ela repassa sua intensa trajetória política e intelectual e não mede palavras para comentar os impasses e desafios da esquerda no Brasil. A edição ainda traz artigos de fôlego sobre Malcolm X, Clóvis Moura, Fredric Jameson, Paulo Arantes e Antonio Candido, além de um erudito roteiro de estudos sobre Luís de Camões elaborado por ninguém menos que José Paulo Netto. Na seção de homenagens, prestamos tributo a Beatriz Sarlo, Michael Burawoy e Paula Vaz de Almeida. O artista convidado desta edição é Sérgio Romagnolo; a poesia é de Amiri Baraka.


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1 comentário em Moralismo de esquerda e ética evangélica: quase resenha de “O que é identitarismo?” de Douglas Barros

  1. Avatar de Desconhecido dborapereira // 20/09/2025 às 5:10 pm // Responder

    Acho importante a reflexão, mas me incomoda quando o “evangélico” aparece como uma categoria una, homogênea, quase essencializada. O campo evangélico no Brasil é muito diverso, marcado por disputas internas, diferenças de classe, gênero e raça. Reduzir tudo a um projeto único de poder invisibiliza fissuras e resistências que também existem dentro das igrejas. É uma conduta típica da esquerda brasileira, que acaba criando — como o próprio texto critica — o “nós” (a esquerda esclarecida) e os “outros” (os evangélicos), ignorando que muitos evangélicos têm buscado formas diversas de espiritualidade, legítimas e também politicamente engajadas.

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