Raimundo Jinkings: coragem e persistência de um livreiro

O Jinkings livreiro foi a consequência de mais um golpe baixo da ditadura militar brasileira. Foi o bendito passo de um leitor exigente, um minucioso pescador de pérolas literárias, que do usufruto próprio e do empréstimo de livros passou a se dedicar à difusão e à venda.

Neste dia 21 de setembro, data em que se celebra mundialmente o Dia da Bibliodiversidade, publicamos um texto inédito de Amarílis Tupiassú sobre o livreiro, jornalista, líder sindical e dirigente comunista maranhense Raimundo Jinkings. A publicação reúne trechos de ensaio escrito para o livro Jinkings, um comunista, previsto para ser lançado pela Boitempo no próximo mês de novembro.

Bibliodiversidade é um conceito criado na América Latina e difundido mundialmente a partir da década de 1990, referente à diversidade cultural no mundo do livro e das editoras. Voltar-se para a Bibliodiversidade é uma forma de tomar consciência sobre a importância para a cultura da existência de escritoras, editoras e redes livreiras independentes. No Dia B, convidamos nossas leitoras e leitores para visitarem uma livraria independente e tomarem contato com a produção cultural disseminada por editoras independentes.

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Por Amarílis Tupiassú.

Livro, política, família, companheirismo e coragem são palavras bastante apropriadas para uma divisa a Raimundo Jinkings. Seu mergulho profundo na seara dos livros decorreu de seu nunca abatido ânimo político a favor da superação de um Brasil tão desigual e descompassado. Mas esse universo foi também uma nave de salvação à qual se agarrou com toda força. Difícil, naquela Belém-Pará-Brasil de tempos tão ásperos, quem não tenha fruído do saber do livreiro: estudantes, pensadores, pessoas das letras, das artes, das ciências, amantes de bom livro.

A travessia ao universo livreiro não se deu por opção estudada. Impedido de exercer seu trabalho no Banco da Amazônia, Jinkings poderia ter sido vencido por nocaute, mas manteve-se de pé. O amor à leitura de todos os gêneros e o devotamento à literatura transformaram-se em tábua de salvação. Diante do vazio livreiro no Pará, acabou por tornar-se pioneiro de uma nova concepção de livraria em Belém. O Jinkings livreiro foi a consequência de mais um golpe baixo da ditadura militar brasileira. Foi o bendito passo de um leitor exigente, um minucioso pescador de pérolas literárias, que do usufruto próprio e do empréstimo de livros passou a se dedicar à difusão e à venda.

Sua estreia no novo mundo foi uma barra. Começou com disposições e locações ocasionais. Dinheiro para a montagem de uma livraria, cadê? Ensaiou-se uma venda na sala familiar, com livros ligados a todos os ramos de conhecimento. Jinkings dedicava-se a escrever cartas a todo o Brasil, não importando a eterna lentidão dos Correios – esforço este quando a internet e as redes sociais eram comunicações inimagináveis. Recebeu resposta de uma editora, depois de outra; as propostas chegavam. O livreiro novato e persistente logo se estabeleceu como distribuidor de companhias como Brasiliense, Civilização Brasileira, José Olympio, Ática, Scipione. Com o ir da atividade, outras foram se chegando.

Jinkings dividia-se entre o trabalho de captação de editoras, a atenção ao freguês e a venda. Dava gosto de ver o entra e sai de gente na sala da casa localizada na rua Mundurucus. O lar dos Jinkings era de livros e mais livros, pacotes, catálogos, faturas, caixas e caixotes de papelão por todo canto, obras a se espalhar e a invadir cada vão, exigindo todo o cuidado – “Este livro de arte, que maravilha, tem de ficar em lugar especial”, dizia.

Quando deu fé, metade da casa estava tomada pelo ativo comércio. Nada a ver com o belo conto “Casa tomada”, de Cortázar. Neste, perde-se o jogo, os dois velhos irmãos solitários vão sendo expulsos rumo ao fim. No lar paraense, os bem-vindos livros invadiam e infundiam vida, alegria – e a renda para o alimento de todos e o estudo dos filhos. No térreo, só não havia livros na sala de jantar – todo o resto era dedicado à venda. Nos altos, dormiam Jinkings, sua companheira Isa e os cinco filhos do casal. Era inevitável a percepção de já não possuírem uma casa; mas reinava a certeza de que, por uns tempos, era assim que havia de ser. Isa também foi de uma resistência exemplar. Entre tantos atropelos, decidiu cursar Letras na Universidade Federal do Pará. Foi copartícipe no sucesso da livraria, dedicando-se à tentativa de pôr ordem à montanha de livros. Vem daí nossa amorosa amizade e de demais colegas apegados, até hoje, estudantes da primeira e mais numerosa turma da UFPA. Vinte estudantes, todos solidários a Isa. A casa dos Jinkings era uma extensão da faculdade, uma constelação de sonhos – e de medos. Que dizer do decreto-lei n. 477, que expulsava (compulsoriamente da universidade) alunos tidos por subversivos, sem qualquer possibilidade de defesa nem de processo legal?

A solidariedade dos amigos e sobretudo dos Tavares, a família de Isa (a de Jinkings era sediada no Maranhão), mostrava-se em apoios desmedidos e constante alerta às perseguições sofridas pelo político-livreiro, perseguições estas que não diminuíam. Também com os livros Jinkings arriscava-se e, dando seu jeito, fazia chegar a Belém até obras de escritores soviéticos, em um tempo em que qualquer menção a isso podia desaguar em inquéritos, prisões, torturas. Um breve episódio ilustra a ousadia: quando da apresentação do Balé Bolshoi no Teatro da Paz, as primeiras fileiras foram tomadas por censores dedicados a captar as mais sutis manifestações antiditatoriais da plateia. E houve: todo o teatro, sem qualquer acerto prévio, sussurrou a melodia de “Noites de Moscou”, para total desespero dos repressores.

Junto com a censura, imperavam no regime militar invasões a casas e instituições sem qualquer mandado judicial, cárceres em endereço desconhecido, degolas inimagináveis, desaparecimentos sumários, torturas de sangue a correr. Foram várias e súbitas prisões. Em uma delas, em Macapá – onde foi para divulgar livros — foi preso de forma violenta ao voltar para o hotel e levado ao forte São José, sob vigilância armada que tinha ordem de atirar “a qualquer movimento suspeito”. Jinkings passou três dias encarcerado, em rigorosa incomunicabilidade, porque o presidente Médici, na volta de uma visita ao Jari, decidira passar pela capital amapaense. “Vi a morte de perto, pensei que não ia sair vivo da lonjura e desterro daquela masmorra”, disse ele, de volta a Belém. A ditadura sabia tecer seus balaios de loucura.

Antes de se tornar livreiro, houve os duros tempos da banca de gêneros alimentícios – café, açúcar, feijão, arroz, entre outros – na feira livre da praça Batista Campos, na extensão da rua dos Tamoios. As mangueiras davam acolhida, com a camaradagem de suas sombras. Já nessa época se destacava a maneira como Isa e Jinkings educavam seus meninos e suas meninas: sem dramas nem dramalhões, o convívio costurado com forte apelo político sobre a desigualdade, a não conformação e a necessidade de extirpar do mundo a injustiça, o poder que anula e traz miséria.

Em uma ocasião, Jinkings estava novamente trancafiado – à mínima passagem dos generais-presidentes por estas paragens paraenses, simplesmente o prendiam. Como não permitissem a Álvaro, então com cerca de sete anos, visitar o “perigosíssimo subversivo” pai prisioneiro, resolveu escrever-lhe um bilhete, encontrado pelos policiais na devassa à bolsa da mãe. O teor era mais ou menos este: “Pai, não se preocupe, quando eu crescer eu pego esses milicos”. Imagine o apuro de Isa. Confiscaram o escrito. “Milico” era um termo proibido, que dava até cadeia.

A ditadura militar propalava existir um perigosíssimo, truculento e diabólico Jinkings, protótipo de comunista que se buscava pintar. “Comunista” era o resumo de todos os males. Bastava conhecê-lo, porém, e a mítica logo se desfazia. Logo essa criatura bacana que é o Jinkings, um cara tão camarada e calmo? Um dos pontos admiráveis no militante era o jeito tranquilo e bonachão no encarar os desastres a que a repressão o sujeitava.

Tantos anos depois do dia de sua morte, 5 de outubro de 1995, impressiona lembrar sua maneira branda de tratar o outro e tocar a vida. A indignação diante da brutalidade da ditadura podia, sim, inflamá-lo; às vezes, exasperava-se, feições contraídas, ao relatar as arbitrariedades na solidão dos calabouços e nos mortificantes interrogatórios. Saía da prisão e seguia no trabalho, sem alterar o ritmo de vida. Não fugia ao enfrentamento da absurda perseguição a que, junto com família e amigos, foi submetido, mas era homem de resolver e tocar a vida adiante.

Incrível como sabia ser solidário. Nos tempos brabos do regime, os militantes dos diferentes grupos de esquerda uniam-se a buscar saídas e apoiar-se. Jinkings fazia coletas, recolhia fundos e arrecadações silenciosas para ajudar companheiros em dificuldades financeiras, também vítimas da ditadura. Parecia ser dotado de um ímã secreto, de tanto que agregava amigos. E como socorria estudantes necessitados de livros! Chegasse um meio perdido, hesitante, à livraria, e o dono se desdobrava a mostrar títulos, a aconselhar – “há este, aquele ali e há um outro”… A atmosfera de afeto, tanto na venda à rua dos Mundurucus como depois, na livraria à rua dos Tamoios, para onde o livreiro se podia varar pelo quintal, pelos fundos de sua casa. Era notável seu volume de leitura: exaltava uma obra, reprovava outra, comparava títulos de um mesmo assunto, destacando as diferenças de propriedade, de linguagem. Falava de poesia, de romances, de tratados de ciências diversas, porque era cônscio de seu ofício de saber sobre seu produto de venda.

Na sua dedicação aos livros, fazia de seus filhos leitores. O pai e a mãe não abriam mão de que as crianças lessem. Eram irredutíveis: escolha uma obra; o brincar vinha depois. Liberava-se o leitor com uma hora de leitura. O que parecia castigo logo virou prazer. E os filhos, todos, fizeram-se leitores e promotores dos livros..

Sobre as crianças recaíam também as crueldades de parte de uma vizinhança hostil, para quem ser comunista era o pior dos defeitos. “Olha, lá vão eles, os comunistas”, acusavam em agressões verbais. A casa-livraria da rua dos Mundurucus era alvo constante de vigilância, ataques, invasões e saques. A repressão lá entrava em horas diversas, remexia estantes, apreendia livros. Em uma ocasião, quando Isa e Jinkings não se encontravam, assisti com Nise, a filha mais velha, à busca realizada por oficiais da ditadura. Reviravam, folheavam, interrogavam-se entre olhares abobalhados, até que decidiram pela periculosidade de uma pilha de livros de Carlos Drummond de Andrade, em cujas capas lia-se o título Reunião. Quase toda a pilha foi levada – salvaram-se uns exemplares que o jovem Álvaro empurrou para debaixo de uma estante. Mas Jinkings não esmorecia: mantinha a ação política num tempo em que todos os partidos de esquerda eram submetidos a riscos impensáveis, e a solidariedade vinha de todas as partes. “Vamos ao Jinkings”, assim se dizia. Inconscientemente, sabíamos que a casa-livraria era ele. Também para a repressão, o livreiro e a loja eram indissociáveis: não cansavam de prender o homem, não cansavam de apreender os livros, que nunca mais eram devolvidos. A tentativa dos incultos obscurantistas de anular a casa de livros era também uma tentativa de anular o homem.

Com o fim da ditadura militar, o ardor político se afirmou. Saídos de barricadas, trincheiras e esconderijos, os comunistas – aqueles que sobreviveram – reuniam-se para debater ideias de reconstrução por vias legais, buscar lideranças e disputar eleições. Nesse cenário de mudanças, Jinkings, sempre em busca de atividades que reforçassem sua prática política, uniu-se a Carlos Augusto da Silva Sampaio, dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN) no Pará e também ex-preso político, para fundar uma editora voltada à publicação de grandes teóricos marxistas. Na ocasião, Jinkings continuava a atuar na direção do Partido Comunista e Sampaio, dizimada a ALN, comandava o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) no Norte.

Depois que os dois amigos idealizaram a nova empreitada, participei das discussões primeiras e fui incumbida de escolher o nome da casa editorial. Ambos planavam nas nuvens, sonhos a mil. Escolhi a palavra “Boitempo”, título de um livro de Drummond. Mas havia um entrave: a permissão do poeta para o uso do termo. Coube-me telefonar de Belém à sua casa, no Rio de Janeiro. Falei da luta de Jinkings e Sampaio nos momentos mais dilacerantes da ditadura e do projeto político da editora. Drummond foi só votos de sucesso e demonstrou rara beleza e humildade na autorização. Emocionou-se e agradeceu por, no distante Pará, termos nos lembrado do nome criado por ele para uma de suas obras. Infelizmente, a primeira editora Boitempo resumiu-se a três títulos – os encargos financeiros impediram seu avanço. Hoje, a filha caçula de Jinkings, Ivana, leva à frente sua própria Boitempo, em São Paulo, cumprindo um desejo vivo de dois ex-presos políticos que penaram no combate à cruel ditadura militar brasileira.

Mesmo que finda sua carreira como editor, Jinkings seguiu na promoção da leitura e da escrita. Há muito a dizer de suas batalhas. Nos anos 1970, após uma reforma escolar que suprimiu determinados campos do saber, fundiu outros e superficializou conhecimentos, instaurou-se a leitura obrigatória. A nova ordem era ler. Obrigatoriamente, no mais das vezes sem prazer. Para cumprir a ordem governamental, professores corriam à livraria, em geral à procura de títulos com poucas páginas e de fácil entendimento, tendo em vista sua inacreditável carga de trabalho. Jinkings dissertava a respeito dos prós e contras de cada obra e não se cansava de recomendar a coleção “Jovens do mundo todo”, direcionada a adolescentes da então escola secundária e que ele próprio havia lido quando jovem.

Outra faceta admirável: o sentido de amizade, a complacência e a paciência do comerciante que não agia como tal. Desde os tempos da sala apinhada de livros da casa na rua dos Mundurucus, Jinkings e Isa trabalhavam com cadernos de fiados. Com eles, fiado não era só amanhã, mas para todos os dias. Anotavam as retiradas, as dívidas, confiavam, sabiam das dificuldades. In dubio pro reu. Havia gente com débitos ciclópicos. Alguns pagavam aos pingos, outros, nem isso: pingavam uns cobres e sumiam. O tímido e sensível Jinkings não cobrava. Esperava, muitas vezes em vão. Era admirável. Se a livraria não tivesse crescido e estabelecido um serviço profissional para listar, contabilizar e cobrar as contas, provavelmente teria ido a pique.

Ao memorar o livreiro para situá-lo nessas linhas, penso na grandeza com que, de forma firme e sutil, ele orientou e abriu os olhos de tantos recém-formados e professores iniciantes; como, sem poses nem estardalhaços, orientou desconhecidos que entravam atrás de um título, mas, cativados pelo livreiro, sempre voltavam. Devotava-se a leituras e, à palavra. Jinkings foi ser de grandezas e agora se transmuta em palavras, cuja matéria são as lembranças, algumas agora em merecida inscrição. Como se equivocam os que não viveram e não sofreram aquelas tensões, os que hoje vêm à cena dizer que combatentes como ele foram movidos por idealismos vazios, como sonhadores sem horizonte. Mesmo sem se dar conta, Jinkings refinou seus atos de coragem, seu mérito de semeador de melhores safras, e guerreou pelo cumprimento da promessa que falta realizar-se: tempos de paz, equidade, fraternidade. A todos nós, no mundo inteiro.

4 comentários em Raimundo Jinkings: coragem e persistência de um livreiro

  1. Denise Silva Macedo // 21/09/2018 às 5:14 pm // Responder

    Ai, que máximo. Lindo e merecido projeto. As crises são propícias para espíritos éticos e inquietos.

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  2. valeria mauricio // 22/09/2018 às 2:13 am // Responder

    Muita coragem para ser livreiro e comunista numa época de violência militar. Ditadura jamais. Valeu Jikings.

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  3. Sergio Romagnolo // 22/09/2018 às 11:40 am // Responder

    lindo texto, consegue-se ver toda a movimentação da família, amigos e estudantes resistindo e lutando contra um governo truculento e violento

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  4. as fotografias , exceto a mais antiga, são de autoria de Leila Jinkings

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