A epopeia de Anthony Steffen, o Django brasileiro

14.08.29_Pericás_Django brasileiroPor Luiz Bernardo Pericás.

Anthony Steffen é certamente um nome conhecido entre os aficionados dos faroestes italianos, acostumados a assistir aos clássicos do gênero. Mas a nova geração de cinéfilos provavelmente nunca ouviu falar deste ator, protagonista de mais de duas dezenas de bangue-bangues, alguns deles, emblemáticos. A real identidade deste leading man, contudo, passou despercebida para boa parte da audiência. Afinal o que muita gente não sabe é que Steffen foi, na verdade, o ítalo-brasileiro Antonio Luiz de Teffé von Hoonholtz, que atuou em mais de 60 filmes, dos quais apenas 26 tinham como cenário o Velho Oeste!

Bisneto do Barão de Teffé e filho do piloto de corridas (e depois, diplomata) Manuel de Teffé, Antonio nasceu dentro da própria Embaixada do Brasil em Roma (o Palazzo Doria Pamphilj), na Piazza Navona, em 1930, época que seu avô Oscar encabeçava a legação brasileira naquela capital. Fruto de um relacionamento fugaz entre Manuel e uma jovem local de ascendência nobre, Wanda Barbini, o menino, que ganhou dupla nacionalidade, cresceu com a família materna, sem contudo receber a atenção e o afeto que gostaria – sua criação, em última instância, ficara a cargo de babás contratadas. Ao que consta, a progenitora passava boa parte de seu tempo em festas e coquetéis do jet set da cidade e, aparentemente, tinha pouco entusiasmo para cuidar do bambino. O pai, por sua vez, foi mandado de volta à pátria assim que o garoto nasceu (o embaixador Oscar de Teffé, ao que tudo indica, não teria aprovado o caso amoroso do filho com a bela italiana, e logo despachou o herdeiro para casa).

O futuro ídolo dos spaghetti westerns seguiria uma trajetória interessante: teria até mesmo participado brevemente, como partigiano, da resistência armada contra o fascismo e a ocupação alemã no final da Segunda Guerra Mundial, quando entrava na adolescência. Pelo menos, era isso que contava nas entrevistas. Seja como for, o fato é que depois do conflito ele acabaria se envolvendo com a indústria cinematográfica do país e já no final da década de quarenta seria assistente de direção (não creditado) de ninguém menos que Vittorio de Sica em seu Ladrões de bicicleta. Nos anos subsequentes, ocuparia a mesma função, desta vez com o seu nome de batismo, em películas de Mauro Bolognini e Lionello De Felice, para então estrear como ator em 1955 no longa Gli shandati [Os revoltosos], de Francesco Maselli. A partir de então, Antonio faria participações menores ou maiores em comédias, dramas históricos, narrativas bíblicas, filmes de “capa e espada” e até épicos do tipo “swords and sandals”.

Só em 1963, entretanto, apareceria nas telas com o pseudônimo que o tornou famoso. O uso de codinomes, como se sabe, não era incomum. Afinal, até Giuliano Gemma, o astro de O dólar furado e sela de prata, teve de seguir essa regra e no início da carreira já era costumeiramente designado como “Montgomery Wood”. O mesmo vale para outros compatriotas. Terence Hill, o inesquecível “Trinity”, se chama Mario Girotti e seu parceiro de tela, Bud Spencer é, em realidade, Carlo Pedersoli. A lista é extensa: Jerry Wilson (Roberto Miali) e Thomas Moore (Enio Girolami) são apenas alguns outros exemplos disso.

O ítalo-brasileiro não chegaria a contracenar com as principais estrelas do gênero, como Clint Eastwood, Lee Van Cleef, Eli Wallach, Tomás Milian e Franco Nero. Ainda assim, teria o privilégio de dividir cenas com outros nomes emblemáticos, como Eduardo Fajardo e Frank Wolff.

Steffen estava longe de ser um grande ator, é verdade. Suas atuações, em geral, eram duras, secas, pouco matizadas, com personagens desprovidos de profundidade dramática. Apesar disso, ele conseguiu imprimir em seus papéis uma marca indelével. O estereótipo do vingador implacável, estoico, estático, que quase não demonstra emoções, ganhou um rosto sempre lembrado, até hoje, pelos espectadores. Algumas de suas fitas são bastante interessantes em termos estéticos (e mesmo em seus enredos), como Sete dólares ensanguentados e Johnny Texas (ambos dirigidos por Alberto Cardone e lançados em 1966), Um trem para Durango (do regente Mario Caiano, em 1967), Uma longa fila de cruzes (de Sergio Garrone, 1969) e seus quatro êxitos de 1970, Shango, uma pistola infalível (com Edoardo Mulargia na direção), A volta de Arizona Colt (Sergio Martino na regência), Um homem chamado Sabata (de Tulio Demichelli) e o interessante Apocalipse Joe, de Leopoldo Savona.

Mais importante e conhecido que esses, entretanto, é Django, o bastardo. É sabido que depois da grande repercussão internacional de Django (1966), de Sergio Corbucci, dezenas de filmes inspirados na trama original se sucederam. Todos, é claro, genéricos, rodados sem a autorização do autor de O grande silêncio. Afinal, muita gente na época queria capitalizar em cima daquele personagem icônico. E Steffen foi mais um que não deixaria essa oportunidade passar. Assim, o “galã” também viveria o pistoleiro enigmático e soturno (ainda que com algumas características bastante distintas daquele levado às telas por Franco Nero), além de ser co-roteirista da película, dirigida por Sergio Garrone. Gravado no estúdio Elios Film e com fotografia de Gino Santini, Django, o bastardo se tornaria uma referência para outras produções do gênero.

Durante poucos dias, um estranho e calado forasteiro em visita a Desert City cria um clima de pânico entre as autoridades do vilarejo. Afinal, o desconhecido sempre deixa em local visível uma cruz de madeira especialmente preparada, indicando sua próxima vítima e a data em que ela será assassinada. Quem vê aquele aviso e lê nele seu nome inscrito, entra em pânico. Mas não há para onde correr. O caubói misterioso aparece, executa o rival, e some em seguida, sem deixar rastros. O objetivo é sempre o mesmo: encontrar os seus inimigos e eliminá-los, um a um, estejam onde estiverem. Boatos correm que aquele indivíduo seria, quem sabe, um fantasma vingador! Mas não. Tratava-se de Django, um ex-soldado confederado, que havia combatido na Guerra Civil americana, mais de uma década antes. E que fora traído por seu comandante e outros oficiais…

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Django (Anthony Steffen) mata o fazendeiro e antigo líder confederado Rod Murdok (Paolo Gozlino).

Uma garrafa de uísque. Este é o catalisador que levará o protagonista a se recordar dos velhos tempos. Em suas memórias, Django estava num acampamento com outros companheiros de armas (entre os quais, um deles, representado pelo paulistano Celso Faria), num momento de descontração e descanso, quando seu regimento, surpreendido, é dizimado por tropas da União. Em troca de dinheiro, os chefes militares sulistas haviam levado seus adversários ianques até o local para massacrar os homens ali estacionados. Uma verdadeira chacina. A fuzilaria acabaria com a vida de quase todos. Quase. Afinal, um deles, Django, ainda que baleado, conseguiria sobreviver e muitos anos depois, voltaria para “assombrar” os insidiosos.

O fazendeiro e antigo líder confederado, Rod Murdock (Paolo Gozlino) e seus lugares-tenentes, Sam Hawkins (Victoriano Gazzara) e Ross Howard (Jean Louis), são impiedosamente executados. Mas Luke (Luciano Rossi), o irmão do proprietário de terras (que claramente apresenta uma personalidade conturbada, beirando a insanidade), não acredita que o forasteiro seja um espectro do além, e irá persegui-lo, chegando a ferir seu contendor. Apesar da insistência implacável do maníaco loiro (um tipo comum nos faroestes de então; neste caso, claramente inspirado em Klaus Kinski), Django irá prevalecer. O “herói” mata o lunático e todos os seus asseclas. A película termina com o protagonista partindo para um futuro incerto, mas tendo cumprindo sua missão.

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Luciano Rossi, no papel de Lu Kamante, o loiro lunático, típico no gênero

Steffen ainda participaria de mais de duas dezenas de fitas após Django, o bastardo, algumas delas, bastante precárias, filmes “B”, como são conhecidas essas produções. Seu último trabalho é de 1990, um “drama erótico” dirigido por Pasqualino Fanetti. Diagnosticado com câncer em 2002, o ator lutou contra a doença por dois anos. Terminou seus dias morando no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Em 2004, deu seu último suspiro, aos 73 anos de idade.

Para quem quiser conhecer melhor a vida deste intérprete emblemático, a recomendação é o livro Anthony Steffen: a saga do brasileiro que se tornou astro do bangue-bangue à italiana (Matrix, 2007), uma pequena (mas muito interessante) biografia escrita por Daniel Camargo, Fábio Vellozo e Rodrigo Pereira. Os autores, grandes conhecedores de westerns, apresentam um panorama rico da trajetória do artista e contextualizam com competência sua vida e obra em relação ao mundo do cinema de sua época. Fica aqui, portanto, a dica.

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Recomendamos a leitura do aclamado Os cangaceiros – ensaio de interpretação histórica, de Luiz Bernardo Pericás, uma análise cultural, política e sócio-histórica da figura mítica do cangaceiro, referência obrigatória para o estudo banditismo rural nordestino e seus desdobramentos na atualidade.

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Chega às livrarias este mês a coletânea Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizada por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco! 27 ensaios sobre Antonio Candido, Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Paulo Freire, Milton Santos, Astrojildo Pereira, Câmara Cascudo, Jacob Gorender, Ruy Mauro Marini, Maurício Tragtenberg, entre outros pensadores críticos do Brasil.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Seu livro mais recente é Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizado em conjunto com Lincoln Secco. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

4 comentários em A epopeia de Anthony Steffen, o Django brasileiro

  1. Análise inteligente do estilo (ou marca) do ator Antônio de Teffé.
    Sua figura, realmente impressionava.
    O presente artigo foi o mais abrangente já escrito sobre o artista.
    Foi muito gratificante voltar a um tempo jamais diluído de todo no
    oceano silencioso da memória

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  2. Análise inteligente do estilo (ou marca pessoal) do ator Antônio de Teffé,
    cuja figura realmente impressionava.
    O presente artigo é o mais abrangente já escrito sobre o artista..
    Foi muito gratificante poder voltar a um tempo jamais diluído de todo no
    oceano silencioso da memória.
    Realmente muito bom!

    Paulo Augusto de Barros.

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  3. Manuel de Teffé // 24/06/2015 às 7:54 am // Responder

    “Steffen estava longe de ser um grande ator, é verdade. Suas atuações, em geral, eram duras, secas, pouco matizadas, com personagens desprovidos de profundidade dramática. Apesar disso, ele conseguiu imprimir em seus papéis uma marca indelével. O estereótipo do vingador implacável, estoico, estático, que quase não demonstra emoções, ganhou um rosto sempre lembrado, até hoje, pelos espectadores. ”
    Escrevendo APESAR DISSO, voce começa a explicar porque meu pai foi um grande actor. Obrigado pelo artigo. Um abraço, Manuel

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  4. Daniel Camargo // 25/01/2024 às 12:00 pm // Responder

    Obrigado por citar noso livro. Grande abraço, Daniel Camargo

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