Egoísmo e cooperação na luta de classes

Por João Alexandre Peschanski.

Em parte da teoria econômica, os atores econômicos são descritos como universalmente racionais e egoístas. De acordo com essa perspectiva, o ser econômico cria estratégias e age para maximizar seus interesses, sejam estes quais forem. Em certos cenários, a interação dos atores econômicos pode levar a resultados nefastos, chamados numa expressão eufemística sub-ótimos, que nos seus exemplos clássicos incluem destruição ambiental, investimentos predatórios e todo tipo de ineficiência na tomada de decisões. O pressuposto ontológico do ator econômico essencial e universalmente racional e egoísta (a partir de agora, PORE) domina ainda hoje o ensino e a produção acadêmica na economia e áreas correlatas.

Há refutações empíricas convincentes do PORE. São especialmente importantes na sociologia e na antropologia, com rejeições categóricas do caráter essencialista dessa teoria econômica, que desconsidera, entre outros elementos, contextos institucionais e culturais, que influenciam estratégias decisórias. Essas refutações geralmente se fundamentam em ricos estudos empíricos. Porque a teoria econômica se diz “abstrata”, isto é, não especifica estruturas, desconsidera refutações empíricas.

A teoria econômica dominante se esfacela quando as refutações surgem de sua própria lógica, usando seu instrumental metodológico. Dentro do marxismo, há pelo menos duas grandes críticas ao PORE, uma clássica e uma mais recente. No consagrado ensaio “Duas lógicas da ação coletiva: notas teóricas sobre a classe social e a forma de organização”, de 1980 (publicado no Brasil em 1984, na coletânea Problemas estruturais do Estado capitalista, pela Tempo Brasileiro, com tradução de Bárbara Freitag), Claus Offe e Hemult Wiesenthal mostram que, no abstrato, há diferentes lógicas de ação coletiva de acordo com a classe social. Teorias que supõem um universalismo nas ações econômicas, dizem, pretendem “equacionar o desigual”, pois não especificam no abstrato a classe social do ator econômico. Copio aqui a paráfrase do argumento de Offe e Wiesenthal do sociólogo Álvaro Bianchi, em sua contribuição crítica ao debate sobre ações econômicas “Empresários e ação coletiva: notas para um enforque relativo” (Revista de Sociologia e Política 28, 2007):

[…] esses autores rejeitam uma “teoria geral da ação coletiva”, destacando a necessidade de diferenciar as lógicas próprias de cada grupo social. […] Para além das semelhanças formais entre associações de empresas e sindicatos operários, esses autores procurarão apontar a diferenciação de classe específicas dos respectivos tipos de fatores input (o que precisa ser organizado) e a natureza dos outputs (condições de sucesso estratégico que precisam ser alcançadas no meio ambiente das organizações).

[…] O capital tem como necessidade combinar o trabalho e os bens de capital, a fim de produzir mais-valia. Ambos os elementos consistem em trabalho social, mas, enquanto um é o resultado de trabalho passado (“trabalho morto”), o outro é força de trabalho como potência presente. Combinar este último, que não é separável dos portadores da força de trabalho, com os demais “fatores de produção” consiste no problema fundamental com o qual o capitalista tem de lidar.

Tal diferença está no fato de que o trabalho pode ser feito somente pelo trabalhador, apesar de ele “pertencer”, legalmente, ao capitalista. Cada trabalhador controla somente uma unidade de força de trabalho que a vende sob condições de concorrência com outros trabalhadores que fazem o mesmo. A força de trabalho viva é simultaneamente viva e não divisível (possui uma individualidade insuperável, na medida em que é “possuída” e controlada por indivíduos discretos). O capital, por sua vez, compreende muitas unidades de trabalho “morto” sob um comando unificado. […] Não podendo fundir-se, os trabalhadores, no máximo, conseguem associar-se para compensar parcialmente a vantagem de poder do capital. (excertos da introdução do artigo, disponível aqui.)

O que Offe e Wiesenthal mostram é que atores econômicos, dependendo de suas classes, podem ter diferentes qualidades – “essências”, segundo Bianchi –, o que afeta seus interesses e capacidades. Há problemas diferentes para capitalistas e trabalhadores na compreensão de seus interesses materiais. Para os capitalistas, os interesses são evidentes, “a necessidade [de] combinar o trabalho e os bens de capital, a fim de produzir mais-valia”. Todo cálculo racional dos capitalistas segue, portanto, esse único critério, a maximização da produção de mais-valia, o que está de certo modo de acordo com o PORE. No caso dos trabalhadores, que “possu[em] uma individualidade insuperável, na medida em que é ‘possuída’ e controlada por indivíduos discretos”, há uma miríade de interesses, na medida em que “cada trabalhador controla somente uma unidade de força de trabalho”, que é “simultaneamente viva e não divisível”, e os trabalhadores precisam desenvolver canais de comunicação para chegar à compreensão de seu interesse material como um coletivo. Os trabalhadores só conseguem agir, pelo menos inicialmente, quando superam o estágio do egoísmo e cooperam, estabelecem formas de solidariedade, dialogam. Do mesmo modo, as capacidades de luta de capitalistas e trabalhadores diferem: os primeiros precisam apenas mobilizar recursos financeiros para tentar maximizar seus interesses; os segundos precisam mobilizar pessoas, como o que ocorre em greves, o que cria toda sorte de dilemas variados, já que, em muitos casos, isso envolve riscos aos que participam de lutas em defesa dos interesses dos trabalhadores.

A segunda crítica diz respeito à ideia de que os atores econômicos são universalmente egoístas, isto é, que a espécie humana tem inerentemente uma propensão individualista racional, segundo o PORE. Em 2011, os economistas Sam Bowles e Herbert Gintis publicaram A Cooperative Species: Human Reciprocity and its Evolution ([Uma espécia cooperativa: a reciprocidade humana e sua evolução], Princeton University Press, sem tradução para o português), em que demonstram, por meio de experimentos, dados etnográficos e genéticos, que os seres humanos são uma espécie generosa. Trata-se de uma obra grandiosa, que traz novas interpretações de esquemas clássicos de interação econômica (modelos formais de teoria dos jogos), que conclui: (1) os seres humanos cooperam não por razões egoístas, mas porque estão genuinamente preocupados com o bem-estar de outros seres humanos e porque motivam suas ações com base em normas sociais que valorizam a reciprocidade; e (2) a cooperação é a estratégia humana por excelência, pois é o meio pelo qual garante sua sobrevivência, o que indica um mecanismo solidário de evolução. Apesar de A Cooperative Species ser a principal obra de Bowles e Gintis, eles têm uma série de artigos influentes anteriores que rebatem o PORE, que fundaram uma escola de pensamento econômico nova. O trabalho de Bowles e Gintis influenciou, entre outros, o importante The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom ([A riqueza das redes: como a produção social transforma os mercados e a liberdade] Yale University Press, 2006, sem tradução para o português), de Yochai Benkler.

O pensamento de Bowles e Gintis, e dos economistas e cientistas sociais que influenciaram, foi sistematicamente marginalizado nos principais departamentos de economia dos Estados Unidos, por mais que progressivamente isso venha se alterando. Numa conhecida carta, publicada no jornal universitário The Harvard Crimson, em 27 de fevereiro de 1973, Bowles comenta sua demissão e a de Gintis da Universidade Harvard, porque não se dispunham a seguir a linha dominante da economia. Traduzo aqui um trecho da carta, que expõe bem o conflito entre as duas visões teóricas da economia:

[…] a evolução do pensamento econômico nos EUA foi moldada pela mesma instituição que trouxe o racismo científico, os defensores do imperialismo estadunidense, a psicologia machista e outras perversões da ciência social. É o chamado mercado livre das idéias; o princípio básico é que aqueles que financiam a pesquisa e o ensino conseguem o que querem. Na minha disciplina, isso significa que os problemas da classe capitalista tornaram-se o objeto central da economia, a saber: a identificação e implementação da alocação mais rentável dos recursos, tanto dentro da empresa individual quanto na sociedade.

[…] Assim, o pressuposto de que a natureza humana, tal como expressa nas preferências ou na consciência individuais, pode ser tratada como independente da estrutura da atividade econômica é um ponto de partida lamentável para uma análise econômica da alienação do trabalhador, do sexismo ou do racismo. Uma disciplina que tem como sua principal ferramenta analítica o conceito de equilíbrio e cujo aparato conceitual não admite a noção de poder é um instrumento enganoso para o estudo da desigualdade ou do imperialismo.

[…] Nossos conceitos analíticos centrais [de Bowles e Gintis] são uma reafirmação moderna da teoria marxista. Entendemos o indivíduo como um produto do sistema econômico em que ele ou ela vive e trabalha. Relacionamos o desenvolvimento das instituições sociais — como a educação — à evolução das relações sociais de produção e à estrutura de classe a que se associa. […] Nossa análise é histórica e dinâmica, orientada para a compreensão e o aprofundamento do processo de mudança social. (tradução minha, disponível aqui.)

O que o PORE estabelece — e o que criticam de maneira distintas Offe & Wiesenthal e Bowles & Gintis — é que a preferência dos atores econômicos é sempre idêntica, no sentido de quererem maximizar de maneira utilitarista seus benefícios, independentemente de suas posições na estrutura de classe. Offe & Wiesenthal mostram que as classes sociais importam para determinar estratégias de ação. Bowles & Gintis rejeitam o universalismo do PORE, ao qual opõem um princípio universal de cooperação, deturpado pelas ineficiências do capitalismo. Pode-se também refutar o PORE num exercício abstrato de ordenamento de preferências de um capitalista e um trabalhador quanto à distribuição dos recursos necessários para garantir uma vida minimamente digna, assumindo que tais recursos estejam disponíveis. Noto que este exercício é em parte inspirado pelo primeiro capítulo de Class Counts: Comparative Studies in Class Analysis ([As classes importam: estudos comparativos de análise de classe] Cambridge University Press, 1996, sem tradução para o português), de Erik Olin Wright.

Como sabemos (ver meu post “Capitalismo, uma definição”, publicado aqui no Blog da Boitempo), o capitalista detém a propriedade dos meios de produção e “usurpa o trabalhador, pois toma para si, para seu lucro, parte do que este produz”; o trabalhador não tem os meios de produção e, “porque não tem outra forma de garantir sua sobrevivência [pelo menos numa sociedade puramente capitalista], o trabalhador é obrigado a trabalhar para o capitalista”. Aqui “capitalista” e “trabalhador” são atalhos para, respectivamente, “a classe capitalista com compreensão de seus interesses materiais” e “a classe trabalhadora com compreensão de seus interesses materiais”. Os dois atores têm diante de si quatro opções: (1) todos recebem os recursos; (2) apenas o trabalhador recebe os recursos; (3) apenas o capitalista recebe os recursos; (4) ninguém recebe os recursos. A distribuição universal dos recursos é, de maneira geral, a proposta de renda básica de cidadania, encampada pelo economista e senador Eduardo Suplicy, especialmente no livro Renda básica de cidadania: a resposta dada pelo vento (L&PM, 2006). As propostas 2 e 3 são distribuição discriminada. A última opção é, de certa maneira, o status quo em muitos países, onde não há assistência social.

Para o capitalista, com base em seus anseios de melhorar sua condição de vida e de garantir seus interesses materiais como capitalista, a ordem de preferências é, da opção que mais prefere à que menos prefere, (3) > (4) > (1) > (2). Ele prefere ter o recurso só para si, já que melhora sua condição de vida; daí, em segundo, prefere evitar que o trabalhador tenha acesso ao recurso, mesmo que isso envolva destruí-lo, pois garantir uma melhora na condição de vida do trabalhador, mesmo minimamente, enfraquece a “chantagem” que existe no contrato de trabalho no capitalismo, em que o trabalhador tem de dispor de sua força de trabalho porque, pelo menos num tipo puro e dominante de capitalismo, não tem outra forma de alcançar sua sobrevivência a não ser aceitar a exploração de sua força de trabalho. O capitalista prefere, com razão, (4) a (1); prefere sacrificar o acesso a um recurso se isso vier às custas do empoderamento do trabalhador. Obviamente, a opção que o capitalista menos prefere é (2), a distribuição do recurso ao trabalhador, sem contrapartida.

A preferência do trabalhador, como diz Wright no livro supracitado, corresponde à realização dos interesses humanos universais, na medida em que sua ordem de preferências é (1) > (2) > (3) > (4). O trabalhador prefere que haja mais, não menos recursos, disponíveis na sociedade, na medida em que esses recursos podem, em algum momento, levar a novos investimentos e mais possibilidades de emprego. Por isso, o trabalhador prefere que o capitalista também tenha acesso ao recurso e, também, prefere (3) a (4).

O exercício de preferências do capitalista e do trabalhador é apenas um insight, na medida em que não leva em consideração o peso das preferências, isto é, quanto cada um dos atores prefere uma opção em relação à outra. Mas, de maneira incompleta, simplesmente abstrata, afirma mais uma vez a importância da classe social na determinação de ações e estratégias. E, apesar dos preceitos da teoria econômica dominante, afirma mais uma vez a importância da teoria econômica marxista, sanada do PORE.

***

João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

5 comentários em Egoísmo e cooperação na luta de classes

  1. Textos assim não deveriam ser apenas publicados num blog. Isso é um texto de estudo; merece estar num livro ou algo assim. Muito bom.

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  2. O pai dessa proposta “encampada” por Suplicy chama-se Philippe Van Parijs?

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    • João Alexandre Peschanski // 10/09/2012 às 6:54 pm // Responder

      Oi, Ribas, é o Van Parijs mesmo, com que o Suplicy chegou a escrever. A proposta de renda básica universal está sendo bastante discutida no contexto da União Europeia, como uma forma “fácil” de repassar assistência social universal às populações do bloco. De toda maneira, a proposta é controversa e precisa ser discutida criticamente, incluindo pela esquerda.

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  3. Na verdade custa a crer que, em pleno século XXI, essa visão essencialista da natureza humana represente (ainda) o cerne do capitalismo a ser combatido – se é que o capitalismo tem cerne…Ou que o espírito colaborativo não esteja também intrinsecamente ligado enquanto valor – mesmo correndo o risco de ainda nos mantermos no terreno dos essencialismos – ao capitalismo.
    Desconfio que o apego a essencialismos desse tipo explique, em parte, o fracasso discursivo da esquerda atual, pelo menos no que se refere à sua falta de popularidade e de penetração nas massas.
    Desconfio que, mais do que dar subsídios a discursos anticapitalistas, os economistas aqui citados no texto tenham na verdade ajudado a querer limpar o próprio capitalismo dessa visão ultrapassada, potencializando-o (e não há como negar o quão colaborativo é o espírito capitalista hoje em dia)

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    • João Alexandre Peschanski // 10/09/2012 às 6:58 pm // Responder

      Caro Gustavo, meu artigo não é exatamente sobre uma defesa do capitalismo, mas sobre teoria econômica, fazendo um contraponto entre a teoria dominante (PORE) e a teoria marxista, que leva em consideração as classes sociais e, a partir daí, deriva no abstrato interesses materiais.
      Sua provocação no último parágrafo é pertinente: é difícil saber a medida em que o não-capitalismo (até no discurso) fundamenta o anticapitalismo — política e prática que se potencializa na contradição com o capitalismo — ou se é funcional para o capitalismo.

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