David Harvey: trajetória crítica (entrevista ME#16)

David Harvey vem ao Brasil na semana que vem para realizar uma série de conferências de lançamento de seu novo livro, O enigma do capital e as crises do capitalismo (Boitempo, 2011). Confira abaixo um trecho da entrevista concedida pelo geógrafo britânico à revista semestral Margem Esquerda: Ensaios Marxistas, publicada na edição 16 (que acaba de ser lançada em ebook com preço promocional, exclusivamente na Gato Sabido).

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David Harvey é um dos marxistas mais influentes da atualidade, reconhecido internacionalmente por seu trabalho de vanguarda na análise geográfica das dinâmicas do capital. Também se tornaram obras de influência seus livros sobre a questão urbana, da Paris do Segundo Império às lutas sociais em Baltimore, e suas teorias sistêmicas sobre a acumulação do capital. Mais recentemente, está envolvido em um projeto de difusão do pensamento de Marx, ao disponibilizar seus cursos sobre O capital na Universidade da Cidade de Nova York (Cuny) na internet.

Todos os elementos de sua sofisticada pesquisa remontam, diz Harvey nesta entrevista exclusiva à Margem Esquerda, a suas descobertas no doutorado, em Cambridge, quando estudou a produção de lúpulo em seu condado natal, Kent, na Inglaterra. Foi aí que se deparou com a dinâmica do capital, da exploração dos trabalhadores às relações entre capitalistas em diversas partes do mundo.

Na entrevista, Harvey fala de sua juventude, de sua descoberta do marxismo, dos debates acadêmicos com os quais se envolveu e de alguns de seus 22 livros. Harvey é especialmente conhecido por seu trabalho sobre a lógica geográfica da acumulação do capital. Ele cunhou a expressão “acumulação por despossessão” (ou espoliação) para definir as práticas fundantes da busca por lucro no neoliberalismo, incluindo a financeirização, a manipulação de crises e a privatização. Essas práticas atingem de modo diferenciado regiões do mundo, seguindo uma dinâmica geograficamente desigual de acumulação. Em vários de seus livros, ele cita o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) como uma das principais  resistências às práticas neoliberais. Em O enigma do capital, Harvey se propõe a entender a dinâmica da crise financeira de 2008-2009, destacando suas causas e consequências de longue durée; no livro, ele apresenta um renovado modelo de compreensão materialista da história, em que a transformação socialista se torna um processo interativo de diversas dimensões, como relações de trabalho, formas de convívio e exploração da natureza, concepções do mundo e arranjos políticos. 

Os entrevistadores – João Alexandre Peschanski, Sigrid Peterson e David Calnitsky – estudam na Universidade de Wisconsin-Madison, onde integram um coletivo de estudos conhecido como “grupo socialista”.

A entrevista foi concedida em Madison, em novembro de 2010, quando Harvey participou de uma conferência sobre alternativas ao capitalismo e como alcançá-las.

Margem Esquerda – Você pode nos contar um pouco sobre sua família e sua formação?
David Harvey – Meu pai trabalhava em um porto, e isso era sua vida. Ele foi de aprendiz a supervisor, com tarefas mais administrativas. Pode-se dizer que ele começou como parte da classe trabalhadora e se tornou mais classe média com o tempo. Para ser sincero, Gillingham, em Kent, era uma cidade bastante chata, sem muitas divisões radicais de classe. Eu não tinha ideia do que era a classe alta até ir a Cambridge. É engraçado, mas é o mesmo que passou com Raymond Williams, que disse que não sabia o que era a classe rica antes de chegar a Cambridge. Não tinha nada de mais em Kent, a não ser extrema pobreza. O lado positivo era não ser tão longe de Londres, e na adolescência eu fazia idas-e-vindas de vez em quando.

Você fez sua tese de doutorado sobre Kent?
Na faculdade, me interessei muito por paisagens e, em Kent, você ainda encontra resquícios do passado. Descobri os arquivos de Kent, com mapas do uso da terra no século XIX. Não sei por que, mas na época eu me interessei por esse tipo de coisa. Além disso, eu conhecia bem o lugar. Minha tese foi sobre a produção de lúpulo no século XIX, e Kent havia sido desde o século XVI conhecida por sua produção. O problema com essa produção é que era capital-intensivo; em alguns períodos do ano, como na colheita, havia também trabalho-intensivo. Em certo período do ano, havia uma grande migração de trabalhadores desde o leste de Londres, onde se fechavam as escolas, e milhares de pessoas iam a Kent para colher os lúpulos. Interessei--me pela relação entre paisagem e produção agrícola.

Era uma tese mais técnica ou se fundamentava em uma linha teórica?
Foi uma descrição da agricultura em Kent no século XIX. Eu olhei mais para as dinâmicas histórico-geográficas. Na medida em que era capital--intensivo, havia toda uma questão de créditos e financiamentos. O ritmo da produção de lúpulo estava diretamente relacionado às variações do mercado financeiro. Na crise de 1857, que motivou Marx a escrever os Grundrisse, também houve uma crise em Kent. Eu não tinha lido Marx à época. Também havia questões demográficas importantes, relacionadas à migração. Os produtores de lúpulo preferiam empregar pessoas com famílias grandes. Isso era diferente do que passava nas áreas de produção de trigo, onde os casamentos eram evitados. Aí, quando alguém se casava, não conseguia emprego. Na produção de lúpulo, o casamento era estimulado. Havia um contraste demográfico entre os diferentes condados rurais. Além disso, olhei para uma certa aliança em meados do século XIX entre
os fazendeiros de Kent e o comércio das Índias Ocidentais para enviar alimentos com grande proporção de açúcar para os trabalhadores da região. Os trabalhadores recebiam um pão com geleia, cheia de açúcar, e isso era a refeição
para a jornada do trabalho, com açúcar vindo das Índias. Era como se fosse a globalização.

Mas as conexões estavam aí, e não precisei de nenhuma teoria para conectar os pontos entre os elementos que eu descobria. Eu não precisei de Marx para descobrir as relações entre agricultura, finanças, globalização. Quando digo às pessoas que estudei a produção de lúpulo em Kent no século XIX, isso não parece animá-las, mas todo o meu marco de pesquisa saiu daí e minhas subsequentes análises, de certo modo, estão conectadas a essas primeiras descobertas.

Quando você leu Marx? Foi em Cambridge?
Não realmente. Ali, ele era uma figura marginal. Só li Marx quando eu tinha 35 anos. Eu já tinha uma carreira nesse ponto, na ciência dita burguesa. Voltei-me a Marx bastante tarde. Não li Marx por razões políticas. Sempre fui um socialista, mas você pode ser um socialista na Inglaterra sem nunca ler Marx. Voltei-me para Marx porque eu buscava um arcabouço teórico que pudesse ajudar-me a entender o que eu queria estudar. Eu via coisas acontecendo em Baltimore, por exemplo, e tudo o que eu conhecia antes de Marx não me servia para entender o que eu via ali.

Como era o ambiente intelectual em Cambridge?
Eu estava na Geografia, e havia um tipo de dinamismo intelectual, que não era tão vibrante, mas havia um sentimento de que minha geração era a primeira que provinha de escolas do Estado, em um ambiente dominado pelas elites. Isso criou um sentimento de “À merda com essa elite”. A gente trabalhava muito duro, conquistava prêmios acadêmicos, e os estudantes de elite não se importavam. Eles saíam da universidade, conseguiam um emprego em Londres e se tornavam milionários. Para mim, foi um sucesso conseguir ser um professor assistente, em que eu mal e mal ganhava para manter-me. Vencíamos intelectualmente, mas não tinha muito propósito, pois eles não se importavam. Havia a ideia em minha geração de que haveria uma revolução. Meus contemporâneos em Cambridge foram pessoas como as que fizeram o Monty Python, ridicularizando as formas tradicionais de poder, a monarquia. De certo modo, éramos bastante arrogantes, com o sentimento de que íamos mudar todas as estruturas. Esse sentimento era mais importante do que de fato uma linha teórica dominante ou algo assim. A invasão de Suez, que aconteceu em meu terceiro ano em Cambridge, criou uma grande raiva contra o imperialismo entre nós.

Dizíamos que nossa geração, quando chegasse ao poder, não defenderia o império. Meus professores, na Geografia, haviam vindo do exército ou das colônias, e minha geração não aceitava essa ligação entre a nossa disciplina e o império.

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Para conferir o final da entrevista, confira a Margem Esquerda 16 (à venda em livrarias de todo o país) ou adquira a versão eletrônica (ebook) da edição por R$10 no site da Gato Sabido.

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Confira também a entrevista concedida por David Harvey ao Programa Milênio no ano passado:

1 comentário em David Harvey: trajetória crítica (entrevista ME#16)

  1. O site para a compra do ebook está indisponível

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