De dezembro de 1968 a outubro de 2018

É com o AI-5 que o regime militar se despe de qualquer pudor, bate no peito e assume: ‘eu sou uma ditadura’. Nesse sentido, a eleição de Bolsonaro em outubro passado evoca o ato institucional de 1968: a classe dominante brasileira decidiu abraçar sem disfarce um programa de retrocesso acelerado e violência social.

Jair Bolsonaro em cerimônia de diplomação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na última segunda-feira, dia 10 de dezembro de 2018, três dias antes do cinquentenário do AI-5. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.

Por Luis Felipe Miguel.

Coube a Jarbas Passarinho, então ministro do Trabalho e Previdência Social, pronunciar a frase definitiva na sessão do Conselho de Segurança Nacional que aprovou o AI-5: “Às favas todos os escrúpulos de consciência”.

Não sei quantos ali tinham de fato escrúpulos ou consciência para mandar às favas. Delfim Netto, ministro da Fazenda, manifestou-se dizendo que o AI-5 era insuficiente e pedindo poderes quase absolutos para Costa e Silva. Orlando Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, concordou com ele. Hélio Beltrão, ministro do Planejamento e futuro ícone dos liberais brasileiros, despreocupava-se da concentração de poderes arbitrários, confiando que seriam usados com moderação. Albuquerque Lima, ministro do Interior, julgava que era hora da “revolução” corrigir seu erro, que fora permitir a existência de oposição. Emílio Médici, chefe do SNI, assinalou sua “satisfação” com o Ato.

Escrúpulos: não sei. Mas certamente foram às favas todas as aparências. O discurso oficial do golpe fora o da defesa da democracia contra a “subversão comunista” e a “corrupção”. Embora viceje hoje uma mitografia que adoça os primeiros anos do regime autoritário e enalteça a figura de Castello Branco, o fato é que o arbítrio não esperou para começar. Os expurgos, a censura, as prisões e a tortura datam já de 1º de abril de 1964. Mas é com o AI-5 que o regime se despe de qualquer pudor, bate no peito e assume: “eu sou uma ditadura”.

Nesse sentido, a eleição de Jair Bolsonaro, em outubro passado, evoca o AI-5 – e não apenas porque o candidato, hoje presidente eleito, é um nostálgico confesso da Ditadura e de todos os horrores que ela abrigou. Ao escolher Bolsonaro, investir em sua candidatura, blindá-la contra questionamentos e fechar a porta para qualquer repactuação da ordem democrática fraturada com o golpe de 2016, a classe dominante brasileira decidiu abraçar sem disfarce um programa de retrocesso acelerado e violência social.

Assim como Haddad, representante do PT mais moderado e palatável, não tinha nenhuma credibilidade como encarnação da “ameaça” comunista, o ex-capitão jamais pôde ser acusado de preencher os requisitos de preparo, competência, equilíbrio e probidade necessários para ocupar a Presidência. Sua campanha só prometeu, para o eleitorado em geral, o combate a fantasmagorias (o kit gay, o domínio do “marxismo cultural”) e a tolerância, para não dizer incentivo, à violência contra grupos sociais vulneráveis. Para a casa grande, extinção de direitos e desmonte do Estado, o que exige, como passo lógico, a repressão ao campo popular. As nomeações para o ministério, com destaque para o Torquemada de Maringá na Justiça, comprovam que a criminalização da esquerda continuará sendo prioridade.

2018 não é 1968. As condições para o mergulho em uma ditadura aberta são menores do que eram há meio século. Mas são dois momentos de uma mesma revelação: de como é frágil o compromisso dos grupos dominantes do Brasil com a democracia, com as liberdades ou com a civilidade na disputa política.

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Para aprofundar a reflexão sobre o sentido da democracia e sua relação com os padrões de dominação presentes na sociedade, recomendamos a leitura de Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória, de Luis Felipe Miguel. Mario Benedetti também é o autor selecionado para a seção de poesia da última edição da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, número dedicado à reflexão sobre a crise brasileira.

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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém oBlog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colabora com os livros de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (Boitempo, 2016) e O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018). Seu livro mais recente é Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.

2 comentários em De dezembro de 1968 a outubro de 2018

  1. A analogia com 1964 faz sentido.

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  2. Extra! Extra! Elite brasileira age de acordo com os seus próprios interesses! Extra!
    Provocações a parte, não é como se o Bozo fosse a primeira opção da maior parte (ou pelo menos, da parte mais poderosa) da burguesia nacional, não era, mas ao ver a candidatura do Alckmin parar no primeiro turno e o Bozo ir para o segundo com uma larga margem de vantagem, era óbvio que boa parte dela ia aderir ao mesmo, seja durante o segundo turno ou depois da eleição.
    Voltando as provocações, ao culpar a elite brasileira por “escolher Bolsonaro, investir em sua candidatura, blindá-la contra questionamentos e fechar a porta para qualquer repactuação da ordem democrática fraturada com o golpe de 2016” não só se culpa a burguesia por ser burguesa e por agir de acordo com seus próprios interesses, mas se mostra o caráter gerencial, legalista e de conciliação de classe que a esquerda adquiriu nessas últimas décadas, caráter esse que foi um dos motivos da destruição da base social e a capacidade de mobilização do PT o que abriu caminho para sua queda.

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