A educação sexual das crianças: a enunciação repressiva

Já que o relativismo comportamental é a lei geral, por que não usar a mesma regra para enunciar valores tradicionais? Já que o feminismo está se colocando por toda parte por que não voltar a vestir o machismo escancarado? É esta inversão imaginária que comanda a gramática conservadora contemporânea por meio da moral dupla e da enunciação repressiva.

Por Christian Ingo Lenz Dunker.

* Este artigo é um desdobramento da coluna anterior de Christian Dunker no Blog da Boitempo, intitulada “A educação sexual das crianças: a moral dupla“.

Seria de se esperar que a psicanálise mantivesse uma atitude de respeitosa complacência e admiração pelas variedades antropológicas dos semblantes assumidos pela sexualidade humana, mantendo uma atitude de neutralidade benevolente, análoga à que se espera do clínico diante de seus analisantes. Diante do combate cultural, das políticas sexuais ou das problemáticas de gênero deveríamos adotar a crença de que não há evolução nem hierarquia, mas apenas indiferença. O que se ganha de um lado perde-se de outro. No que diz respeito a valores ou modalidades de educação, todos eles seriam igualmente ruins na medida em que têm por objetivo comum reproduzir a repressão das pulsões. O argumento se encontrará resumido por Freud em O mal-estar na civilização, notadamente em sua ponderação sobre o papel da tecnologia: a mesma época que inventou o telefone, capaz de aproximar as pessoas, popularizou as estradas de ferro, que levaram estas mesmas pessoas para longe de nós.

Contudo, seria preciso lembrar aqui um texto freudiano fora desta curva – e muitas vezes esquecido pelos comentadores, com a notável exceção de Wilhelm Reich – chamado A moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna, de 1908. Para aqueles que estão acostumados a enfatizar o machismo adrocêntrico e familiarista de Freud esquecendo-se convenientemente do argumento do relativismo cultural, seria importante lembrar como nesse texto Freud critica a moral dupla, que incide de forma seletiva para homens e mulheres no que diz respeito à sexualidade, notadamente quando se trata da monogamia e do uso dos prazeres. A tese central é de que o excesso de repressão (ou sacrifício da satisfação sexual) concorre para a produção social dos sintomas neuróticos. Contudo, o ponto crucial é menos o conteúdo da norma do que a rigidez e a demanda de sacrifício que ela carrega em si ou que ela quer impor aos outros.

Se a psicanálise tem alguma contribuição a oferecer ao regime das práticas sexológicas ou erotológicas ela recairá menos na prescrição de certos valores e mais na crítica da sua enunciação repressiva. Em outras palavras: indiferença quanto à diversidade das modalidades de gozo e resistência contra as instâncias que tentam monopolizá-las, quer subjetivamente (como o supereu), quer culturalmente (como as religiões, o Estado e a família). Em última instância, os semblantes são apenas montagens contingentes entre uma coisa e outra.

Cento e dez anos depois do texto seminal de Freud, podemos dizer que a regra se mantém mas nos convida a lidar cada vez mais com a variante invertida desta estrutura. Nossas modalidades de gozo são cada vez mais sensíveis à criação de identidades, segmentações de consumo e orientações políticas. Inversamente, o oligopólio religioso da repressão deu lugar, ao menos nas sociedades ocidentais, ao projeto de auto-empreendimento individual de enunciação da norma. Por isso, podemos olhar para sociedades altamente repressivas, como a indiana, e perceber nelas uma centelha crítica. Ela tornou-se um caso de espelho invertido, de certa maneira anacrônico, de nossa relação com a moral sexual civilizada pós-moderna. Queremos prescrever um kama sutra digital como capítulo preliminar da felicidade compulsória que impomos para nossas crianças. Por outro lado, as tratamos com um equivalente da moral dupla e ambígua que Freud descreveu para as mulheres. Consideramos que elas são nossa posse e extensão, propriedade e investimento, mas também que deveriam ser livres e autônomas. Tudo isso sem nos desobedecer. Terceirizamos sua educação e nos desincumbimos do trabalho cultural de sua formação. Queremos protegê-las do mal, controlando todos os riscos trazidos pelo outro, ao mesmo tempo em que esquecemos dos riscos que nós mesmos representamos para eles como enunciação unilateral da norma. Percebe-se assim que o semblante, como articulação entre a lei e o prazer, é o lugar de uma contradição. Uma contradição que piora e mostra seus efeitos deletérios quando não pode ser reconhecida em sua estrutura de “como se”.

O tema tão importante nos anos 1980 da educação sexual, ainda que combinado com a problemática da reprodução, da prevenção da gravidez precoce e das doenças infecto contagiosas, desapareceu quase completamente nos anos 2010. No lugar disso emerge a obscena Índia que havia ficado adormecida no Brasil profundo da Retomada: cultura do estupro, assédio generalizado, persistência do turismo sexual e da prostituição infantil, retóricas religiosas administrando o sexo antes, durante e depois do casamento, sem falar na cobertura jurídica para tratamentos de “reorientação sexual” ou no controle de museus e universidades.

Tudo se passa como se o discurso conservador do Brasil do Retrocesso estivesse propondo o exato oposto da atitude psicanalítica: semblante composto pela enunciação repressiva, seletiva e “flexível” da norma junto com intolerância radical quanto aos modos de gozo que não lhes são idênticos. “Flexível” aqui não é mais o contrário de rígido, como se usava empregar para qualificar o supereu freudiano. Por isso, “flexível” pode assumir o valor de não ter posição alguma, isentar-se ou decidir que sua posição é a de não ter posição. “Flexível” quer dizer: de acordo com a conveniência de quem aplica localmente a regra. Ou seja: flexível na aparência, opressivo na essência. Enunciados liberais, enunciação repressiva. Exatamente como se diz que as novas leis trabalhistas flexibilizam as relações entre patrões e empregados, facultando que milhares de professores universitários sejam demitidos em nome desta “flexibilização”.

Já que todas as identidades são possíveis, por que não a do meu curral eleitoral? Já que o relativismo comportamental é a lei geral, por que não usar a mesma regra para enunciar valores tradicionais? Já que o feminismo está se colocando por toda parte por que não voltar a vestir o machismo escancarado? É esta inversão imaginária que comanda a gramática conservadora por meio da moral dupla e da enunciação repressiva.

***

A Boitempo acaba de disponibilizar mais um curso completo em seu canal no YouTube! Em “A psicanálise do Brasil entre muros”, o psicanalista Christian Dunker conduz uma leitura comentada de seu aclamado livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. Ao todo, são sete aulas de cerca de 15 minutos cada dedicadas a atravessarem, capítulo a capítulo, a leitura dessa densa e explosiva obra que levou o Prêmio Jabuti na categoria de psicologia e psicanálise. A série pode servir tanto de complemento quando introdução à leitura desta contribuição desafiadora para pensar criticamente o Brasil hoje.

***

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

5 comentários em A educação sexual das crianças: a enunciação repressiva

  1. Muito bacana o texto!!!

    Curtir

  2. Flexível na aparência , opressivo na essência, isso define muita coisa, parabéns pelo texto.

    Curtir

  3. Vicente The Thinker // 16/02/2018 às 12:44 pm // Responder

    psicanalise é uma psedociencia, Freud ja estava superado e hoje é uma excrescencia da criatividade cultural humana. Deve estudar as causas socias como todo e nao isolar fatos torando-os gerais, procedencia absurda em ciencais socias.

    Curtir

  4. Aída Paiva // 02/04/2018 às 4:04 pm // Responder

    Devemos investir em educação, fazer todo o povo brasileiro estudar até a universidade. Emponderar pessoas que não estudaram, que não frequentaram escolas foi um dos erros da Política brasileira. A partir da justificativa que LULA não estudou e foi presidente do Brasil certa classe da Política nacional emponderou pessoas sem estudo que passaram a decidir questões que exigem muita educação. Eu penso que o papel da Educação na formação do indivíduo e o verdadeiro lugar de quem não estudou devem ser conversados. Muitas práticas religiosas falam da riqueza da pessoa humilde desvalorizando o papel da Educação na formação das pessoas, penso que devemos ter muto cuidado quando falamos de que a escola não é necessária.

    Curtir

  5. Hoje dei um pulo até a Unicamp na Educação e na Economia. na Faculdade de Educação um dos temas de debate é a escola em casa ou uma forma de estudar em casa sem precisar ir pra escola. Sabe que eu lembrei do Papa na Páscoa que dizia que preferia se sujar tentando mudar o mundo do que ficar limpo dentro do Papado em Roma. Fiquei imaginando uma criança educada longe das outras de que jeito seria essa criança. Aqui em Campinas existem escolas especiais bem pagas que acolhem crianças que as outras escolas pagas expulsam. As nossas crianças, as crianças pobres, quando expulsas não tem pra onde ir e quem vai acolher é um traficante, um bandido, um louco.

    Curtir

1 Trackback / Pingback

  1. A educação sexual das crianças: a enunciação repressiva – Blog da Boitempo | BRASIL S.A

Deixe um comentário